Para que não entendeu o título, uma breve explicação: em 1935, o físico austríaco Erwin Schrödinger criou uma imagem cuja repercussão extrapolou o campo da ciência e passou a ser usada como uma figura de linguagem para as mais diversas situações. Trata-se do “gato de Schrödinger”, uma experiência fictícia inventada pelo cientista para pôr em relevo como a realidade do mundo subatômico, onde determinadas partículas podem existir e não existir ao mesmo tempo, soaria absurda ao senso comum.
A experiência consistia em colocar um gato numa caixa fechada, dentro qual haveria um dispositivo radioativo que poderia ou não ativar a liberação de um veneno, que mataria o gato. Segundo os fundamentos da física quântica, o veneno poderia ou não ser liberado, ao mesmo tempo (conforme o conceito de estados de superposição quântica), de maneira que o gato poderia estar, simultaneamente, vivo ou morto! É apenas uma imagem absurda, mas fez sucesso e ganhou o mundo.
Hoje no Brasil, a gente testemunha o antipetismo de Schrödinger, que existe e não existe ao mesmo tempo. Esse conceito quântico do antipetismo geralmente é formulado – embora de maneira inconsciente – pelos próprios petistas, ou pelo menos por uma boa parte deles, que acredita e defende que o antipetismo é um fenômeno hiperdimensionado, ou seja, que não é tão grave como alguns pensam, e ao mesmo tempo atribuem qualquer manifestação minimamente crítica, ou apenas incômoda às narrativas oficiais do partido, ao… antipetismo.
Como acontece frequentemente, a verdade deve estar no meio. O antipetismo existe, e tornou-se uma força política bastante expressiva no país, mas é muito mal interpretado, e talvez, de fato, hiperdimensionado. É provável que, dentro de alguns anos, se o partido não cometer erros muito graves, o antipetismo se dilua e se normalize em níveis razoáveis. É inevitável, para qualquer grande partido, em especial aqueles que desenvolvem um sentimento forte de pertencimento social, que surja a sua sombra negativa, dialética. Para voltar o campo das analogias quânticas, hoje se sabe que, para cada partícula, há também uma antipartícula. O elétron tem o anti-elétron, também chamado de posítron. E próton tem o anti-próton. E a cada quark, partículas fundamentais que compõem o próton e o neutron, corresponde um antiquark.
Enquanto houver petismo, haverá… antipetismo. É inclusive o que concluíram os pesquisadores Cezar Zucco e David J. Samuels, em livro lançado em 2018, cujo principal objeto abordado é justamente o antipetismo. Depois de muitas análises, enquetes, especulações teóricas, os autores chegam a conclusão que a melhor explicação para a emergência de um antipartidarismo tão sólido e forte no Brasil, é a própria força do petismo. Do ponto-de-vista da filosofia política, não é difícil entender porque isso acontece. Se a população percebe a formação de uma força social importante, que vem ganhando espaços de poder em diversos setores da sociedade, é natural que surja, espontaneamente, um sentimento de reação. No caso do Brasil, o problema do antipetismo foi agravado pelo fato do petismo ter se descolado de maneira desproporcional de outras identidades políticas, fazendo com que as pessoas que pensam diferente, na falta de organizações com força para impor discursos alternativos ao petismo, acabem se coesionando num sentimento coletivo de antipatia e animosidade contra o PT.
Com isso, e continuo citando a obra de Zucco e Samuels, o partido é vítima de seu próprio sucesso.
E agora passamos para o objeto principal desse post, que é falar da Lava Jato, ou melhor, de seu suposto fim.
Ainda segundo os pelos autores citados, o antipetismo original, anterior a 2003, não era fundamentado na corrupção. Outros fatores o explicavam. Mas a partir do escândalo conhecido como mensalão, e depois, com a Lava Jato, o antipetismo encontra um terreno fértil para se expandir e consolidar-se.
Entretanto, que o sentimento anticorrupção não é a essência do antipetismo, pode ser observado facilmente pela indiferença com que a população encarou a participação absolutamente central de partidos como o PP, nas denúncias de corrupção da Lava Jato. Jair Bolsonaro era um deputado do PP pouco antes de se eleger. E o PP foi um dos partidos que, nas eleições de 2020, mais cresceu. Hoje é o segundo partido do país em número de prefeituras, à frente de quase 700 administrações municipais, contra apenas 183 prefeituras hoje lideradas pelo PT.
Na semana que passou, lemos que a divisão paranense da Lava Jato, o quartel general da operação, onde “tudo começou”, foi desativado, ou antes, foi incorporado a outro departamento do ministério público e seus membros perderam poder e influência, tendo agora que se dedicar a vários casos diferentes.
A Lava Jato paranaense deixou de ser o que era, na prática: uma autarquia com notável independência, inclusive financeira, com autonomia para conduzir grandes investigações em qualquer lugar do país e contra qualquer figurão ou empresa.
A grande mídia, sentindo a mudanças de ventos, tem publicado, nas últimas semanas, inúmeros artigos, editoriais e colunas com material bastante crítico a Lava Jato. Foi a mesma mídia que, durante anos, deu sustentação política a operação.
Entretanto, acho pueril culpar somente a mídia pelos erros da Lava Jato. O rol de responsabilidades é vasto, e democrático. Os governos petistas, pra começar, erraram ao incorporarem e adotarem políticas penais conservadoras e fisiológicas, aparentemente sem nenhuma estratégia ou projeto. Indicações para tribunais superiores foram realizadas com base em listas de apoios de deputados (conforme admitido pelo próprio Lula, num de seus depoimentos a Sergio Moro), o que naturalmente abre espaço para a corrupção, pois agora está mais que provado que grandes empresas tinham deputados no bolso.
E agora, no exato momento em que a Lava Jato apaga as luzes, observamos mais uma reação equivocada por parte dos setores da esquerda próximos do PT.
Antes, um disclaimer: desde 2004 eu denuncio a manipulação do discurso anticorrupção, por parte da mídia e da burocracia especializada. Nenhum blog publicou tantos textos com alertas e denúncias contra as mentiras, exageros e abusos da grande mídia em relação a escândalos envolvendo os governos petistas. Quando a Lava Jato começou, rapidamente identificamos seus vícios e interesses – e iniciamos uma grande campanha de denúncias e esclarecimento.
Sempre tomei um grande cuidado, contudo, para que minhas preocupações não fossem confundidas com qualquer sentimento de leniência com a corrupção.
E este é o equívoco que observo hoje: há uma embriaguez excessiva com o fim da Lava Jato, e sobretudo com a exposição de seus vícios e crimes, como se isso representasse o fim de um problema estrutural das instituições jurídicas do Estado brasileiro. Parafraseando Belchior, os juízes ainda são os mesmos, os procuradores ainda são os mesmos, os ministros de tribunais superiores ainda são os mesmos, os barões da mídia ainda são os mesmos – e as aparências não enganam não. A Lava Jato poderia simplesmente renascer amanhã, com outro nome.
A jornalista Malu Gaspar publicou um livro sobre a Odebrecht, recentemente, chamado A Organização, que tive a pachorra de ler com toda atenção.
O livro não aborda os problemas da Lava Jato pelo ângulo de suas vítimas judiciais, ou seja, pesando apenas os abusos e crimes cometidos por procuradores e juiz nos processos penais que levaram a destruição de empresas e prisão do ex-presidente Lula.
De certa forma, é um livro pró-Lava Jato, mas é também um livro mais sério e mais ponderado do que algumas obras publicadas nos últimos anos, que mais pareciam instrumentos de guerra política do que jornalismo. O livro de Gaspar tem seus problemas. Senti falta de um pouco mais de sensibilidade para um aspecto central de empresas de engenharia: a engenharia, enquanto ciência aplicada ao bem estar da sociedade. A demonização das nossas empresas de engenharia se deu também pela incapacidade das mesmas de mostrar ao público a importância de seu trabalho para a própria segurança física e econômica de todos.
Mas é um bom livro, em suma, que compila muitos fatos que, na avalanche dos últimos anos da política nacional, acabam despercebidos ou esquecidos.
A conclusão inevitável a que se chega, ao fim da leitura, é que o nível de corrupção praticado pela Odebrecht e outras empreiteiras, extrapolou todos os limites razoáveis.
No caso do PT, a autora lembra a existência de uma conta-propina para o PT, da qual um dos operadores principais teria sido Antonio Palocci, réu confesso, que ajudou a confirmar sua confissão com a devolução de mais R$ 100 milhões, a maior parte recursos alocados em contas no exterior.
Nada disso é novo. Os brasileiros acompanharam essa novela por anos a fio, e por isso acho um tanto ingênuo, por parte de alguns setores da militância petista, achar que tudo isso será esquecido por causa de diálogos, infames que sejam, entre procuradores e juiz. Numa campanha eleitoral, não será difícil requentar a memória desses fatos.
Além disso, a divulgação dos diálogos roubados pelo hacker precisa ser analisada com mais equilíbrio e sangue frio. Há trechos ali que mostram verdadeiros crimes ou graves infrações a um processo penal justo, no qual um juiz deveria se manter imparcial, e não se confundir com a acusação.
Esses fatos deixam claro a necessidade do STF tomar a decisão justa de anular todas as sentenças do então Sergio Moro. Isso é necessário para o processo de restauração da confiança na imparcialidade da justiça brasileira.
No entanto, há outros que são indevidamente sensacionalizados, como os diálogos divulgados recentemente em que um procurador qualificou as roupas da ex-mulher de Lula, dona Marisa Letícia, de “bregas”. As mensagens revelam pessoas baixas, mesquinhas, mas são mensagens pessoais, trocadas em rede fechada, sem qualquer relevância para o processo (pode-se inferir que procuradores antipáticos aos réus tenderão a cometer abusos, mas seria forçar a barra).
Para reconquistar a confiança de amplos setores da sociedade, não bastará denunciar os abusos da Lava Jato. A população brasileira não é formada por advogados ou juristas, tampouco dessa elite dourada, representantes do garantismo penal no Brasil, pessoas brilhantes, hipercultas, mas cuja mentalidade está anos luz da média da maioria das pessoas.
Para a reconquistar a confiança, será preciso formular um projeto nacional em que o combate a corrupção e o compromisso ético sejam também centrais. Isso não é pueril. Ser honesto e ter uma imagem de honesto são qualidades necessárias para um partido político desde Roma Antiga.
Políticas públicas, discurso e estratégias que lidem com o problema da corrupção não são moralismo, mas constituem uma linha de defesa fundamental contra golpes de Estado e contra o desvio dos objetivos centrais de um projeto de desenvolvimento. Dificilmente conseguiremos convencer a opinião pública da necessidade de algumas políticas industriais verticais, escolhendo setores, sem apresentar antes um discurso e um método para evitar a captura dessas políticas por interesses escusos.
A esquerda precisa reassumir a luta contra a corrupção como uma de suas principais bandeiras, mas sem repetir os erros do passado, quando, por preguiça e falta de projeto, apenas transferiu responsabilidades – e poder – para a burocracia judiciária, como foi o caso das leis da ficha limpa, da delação premiada, ou a escolha do primeiro votado na lista tríplice da PGR. É muito importante que o controle da luta contra a corrupção se mantenha em mãos do poder político, e não da burocracia. Mas para isso o poder político precisará provar, efetivamente, que está comprometido com essa luta.
Esse compromisso será efetivo se houver transparência, boa comunicação e agilidade em todos os processos envolvendo punição ao desvio de dinheiro público. Não precisamos de punitivismo, de linchamento. Não precisamos condenar um servidor a décadas em regime fechado por desvio medíocre, nem executá-lo moralmente na mídia. Sentenças leves, desde que aplicadas com rapidez e, sobretudo, justiça, costumam ser muito mais frutíferas. É o que ensina Beccaria e o que mostra a experiência em democracias humanistas e sólidas, como a Suécia.
Antes de assumir o poder, o PT se caracterizava por ser, essencialmente, um partido “moral”, ou seja, sua reputação se baseava principalmente nas boas intenções de seus dirigentes e filiados, em contraposição a partidos mais ideológicos, centrados em projetos, ideias e programas de governo. Brizola cunhou a expressão “udenismo de macacão” para definir essa característica do petismo original. Após assumir o poder, e depois de tantas tormentas, o petismo de hoje assumiu um certo cinismo em relação a corrupção, procurando sempre justificá-la como inevitável, além da tendência pouco saudável em abraçar qualquer teoria de conspiração. Não é possível, nem talvez aconselhável, voltar a ser um partido “moral”, mas o esforço por apresentar ao eleitor a imagem de uma legenda limpa, ética, comprometida com os mais rigorosos princípios da moral pública, não é moralismo, não é lacerdismo, mas condição sine qua non para ganhar o respeito dos setores mais instruídos da sociedade!
Julio Cesar já ensinava: à mulher de Cesar não basta ser honesta, tem que parecer honesta. Essa é a mais antiga lição da política, desde que o mundo é mundo. Os partidos políticos do campo progressista precisam enfrentar as acusações de corrupção como um desafio tríplice: jurídico, ético e político. É preciso cultivar um arsenal intelectual jurídico sólido o suficiente para sufocar, no nascedouro, os abusos que vimos na Lava Jato.
É preciso também discutir códigos de conduta e de ética severos, fora e dentro da administração pública.
É necessário, por fim, criar ferramentas de comunicação e transparência que não deixem mais a classe política, a militância e os partidos tão vulneráveis a campanhas de manipulação. Os partidos precisam ter escritórios de relações públicas dentro de sua organização, não para enganar o povo e a opinião pública, mas para falar a verdade ao público externo e interno.
Nada disso é invenção.
Democracias modernas já tem cultivado e desenvolvido os instrumentos citados. Afinal agora está claro para todos que precisamos achar soluções objetivas para reduzir a instabilidade da nossa democracia!
Se as pessoas conseguirem confiar mais nos partidos e nas administrações públicas – e confiarem porque elas se tornaram mais confiáveis de fato, e não porque aprenderam a enganar melhor – seguramente o regime político brasileiro será mais estável, e um mínimo de estabilidade é condição necessária para levar adiante um debate racional sobre as políticas públicas mais adequadas para o desenvolvimento do país.