Por Tiago Medeiros
Finalmente, o ano de 2020 chegou ao fim na vida política brasileira. A eleição da presidência das duas casas do Congresso Nacional fechou o ciclo de demorados meses sob especulações. Os dois candidatos apoiados pelo presidente Jair Bolsonaro venceram, e uma pergunta escorregou dessa convicção: quem perdeu?
Abordando os imaginários em disputa, quem perdeu as eleições foi o lavajatismo. Não foi a esquerda, que sequer a disputou; foi uma direita moderna, letrada, branca, liberal, punitivista, e de coração gentílico paulistano/paranaense. Uma direita de mauricinhos.
O lavajatismo não perdeu apenas a votação, perdeu o ano de 2020 e de 2019. Perdeu o prestígio e a relevância. Perdeu os canais de propaganda. Perdeu os seus atores principais. Perdeu tudo. A eleição no Congresso poderia acalmar o coração de Romero Jucá, pois que, com ela, a sangria, para a felicidade tardia do Centrão, foi então estancada.
É claro que o lavajatismo não se esfacelou da noite para o dia. Vem perdendo substância desde a aproximação eleitoral com Bolsonaro. Essas eleições são a culminância de uma separação traumática entre ambos os imaginários, duas das mais fortes e decisivas correntes de opinião e de temperamento da política brasileira recente, cuja história de união, não por virtude, mas por uma convergência episódica de rejeições ao esquerdismo protagonizado pelo PT, chega ao fim em uma vitória eleitoral acachapante, na Câmara e no Senado, determinada pela interferência do presidente.
Enquanto imaginário, o bolsonarismo não é e nunca foi um conjunto orgânico de teses. Foi e é um conglomerado espontâneo de atitudes e crenças, que traduziu os anseios da classe média por segurança, e o sentimento contrário à inércia institucional e à política como linguagem, em um vocabulário curto de slogans e ações intransferivelmente confiado à figura de Jair Bolsonaro.
O lavajatismo, de seu lado, bem mais orgânico e organizado, é um conjunto de expectativas de moralização da vida pública encampadas principalmente pelo símbolo do servidor de carreira, concursado da área jurídica, incompatível com a diversidade vulgar dos homens públicos empossados por diplomação.
Os lavajaistas encaram com tédio ou ódio a rotina política de baixa mobilização cidadã que marca a história de nosso país e se sentem atiçados por revolucionar os nossos costumes políticos e a nossa vida institucional, convictos de que, sem isso, o povo brasileiro, primitivo e ingênuo, permanecerá presa fácil de atores antirrepublicanos.
Mas, assim como o temperamento bolsonarista antecede historicamente à ascensão de Bolsonaro, o temperamento lavajatista antecede à própria para-instituição da Operação Lava Jato (terei oportunidade em outro texto de esclarecer o leitor sobre o que, desde a minha tese de doutoramento, tenho chamado de para-instituições).
Há um carisma que atravessa ambos os imaginários. O embrião do temperamento lavajatista foi o que moveu a imprensa a procurar em um Joaquim Barbosa, no auge da Ação 470, o nosso paladino contra a corrupção.
A mesma imprensa que encontrou no ex-juiz Sérgio Moro e no procurador Deltan Dallagnol gente mais sedenta pelo papel e mais alinhada ao figurino de perseguidores ambiciosos e tecnicamente instrumentados.
Mas o lavajatismo também é o temperamento de certos segmentos do empresariado insatisfeitos com os critérios da política industrial dos campões mundiais, além de, nos idos de 2014, ter sido o que preencheu os corações de artistas, religiosos, profissionais liberais etc., uma horda de pessoas inflamadas com a novelização dos escândalos políticos diários e de quem a esperança de ver os culpados punidos era renovada a cada edição do Jornal Nacional.
Quando o bolsonarismo tomou a sua forma definitiva na pré-candidatura de Bolsonaro, o coração daqueles insatisfeitos se dividiu e muitos ficaram entre as duas mensagens, até que o improvável namoro de Bolsonaro com Sérgio Moro evoluiu para promessas e pactos selando uma campanha de vitoriosos em 2018 em síntese bastante feliz.
O bolso-lavajatismo aí nascido parecia duradouro e o seria não fosse o destino o conduzir à reunião histórica de 22 de abril do ano passado.
Com uma mensagem estritamente moralizadora, o lavajatismo nunca teve a mesma plasticidade que o imaginário bolsonarista, alimentado pelo conflito e capaz de incorporar eixos ideológicos e comportamentais os mais distintos, como os que constituíram o olavismo e o evangelicismo.
A relação do lavajatismo com Olavo de Carvalho, Silas Malafaia e mesmo com liberais da estirpe de Guedes sempre foi meramente incidental. Foi Bolsonaro quem conseguiu fazer do olavismo o vocabulário elementar de descrição da guerra cultural e do evangelicismo o vocabulário elementar da salvação política pela aposta no messias transparente, interconectando-os como a torná-los inconhos, juntamente a um fajuto liberalismo econômico – com o qual, de fato, ele nunca se comprometeu sinceramente, porque sempre escancarou não entender do assunto.
Enquanto o lavajatismo cria surfar em Bolsonaro a onda que o levaria a formar uma República de mauricinhos, Bolsonaro cavalgou no lombo de Moro e da equipe de personagens da Marvel que se pensavam ser os procuradores da Operação.
Isso não foi visto antes de 2019, quando, a partir da Vaza Jato, Bolsonaro estendeu a mão a Sérgio Moro e ajudou a consumar a sua filiação completa, ao sabor das desconfianças geradas quanto a imparcialidade do ex-juiz nos inquéritos que lhe deram fama.
O efeito de corrosão do imaginário lavajatista, entretanto, não abateu apenas os membros do Ministério da Justiça liderados por Moro, mas também toda a imprensa lavajatista, a qual foi se tornando monotemática, ressentida e desmoralizada.
Um exemplo notável disso é a debandada ocorrida, de 2019 para cá, do time de jornalistas lavajatistas da Jovem Pan, empresa que se tornou o reduto oficial do bolsonarismo nas telecomunicações. Apesar de tudo, a imprensa lavajatista ainda sonhava com um novo candidato a renovar os anseios dos mauricinhos do Planalto e ensaiam elogios a Dória, a Huck, a Mandetta, até agora.
A mais recente e dura derrota do lavajatismo foi a que, na ocasião da eleição congressual, devolveu poder ao Centrão, esse odiado condomínio de partidos e caciques. Os mesmos políticos corruptos – um dos quais até réu pela Lava Jato – assumem então o controle das casas legislativas do país, mostrando como a moralização persecutória operada pelos mauricinhos, que serviu para denunciar a corrupção petista, a corroer parte da base das esquerdas pelos seus vínculos ocasionais com o MDB, e a escancarar a porteira para a passagem de um político do baixo clero ao trono do Planalto, chega a um fim – ou, ao menos, a um primeiro eclipse.
Nessas eleições, o agente vitorioso pode ter sido Bolsonaro, pode ter sido o Centrão, ou podem ter sido ambos, vá lá! O imaginário derrotado, me parece certo, foi um só, o lavajatista. O mais derrotado porque o mais pretensioso e presunçoso. O mais derrotado porque o mais irresponsável. O mais derrotado porque o mais ingênuo, no oportunismo midiático, jurídico e político. O mais derrotado porque o que mais impôs custos institucionais e empresariais ao país nesses últimos sete anos de aventura.
Eis que 2021 amanhece para a política ainda cheio de incertezas, anunciando o crepúsculo da era da Lava Jato. Ironicamente, a sangria foi estancada.