Por Felipe Augusto Machado, com base no livro Forging Fordism: Nazi Germany, Soviet Russia, and the Contest over the Industrial Order, de Stefan Link.
Em 1925, um relatório de engenharia apresentado à Associação da Indústria Automobilística Alemã escancarou o atraso da indústria no país. Segundo o relatório, a Alemanha estava muito atrás das grandes potências mundiais na produção de automóveis. Utilizando a razão de habitantes para carros em uso, o país perdia por muito até mesmo para a Argentina.
Enquanto na Alemanha havia 360 habitantes para cada carro em uso, na Argentina a razão era de 101 para 1. O relatório defendia fusões entre os produtores nacionais (majoritariamente pequenas e médias empresas, com baixa escala e tecnologias obsoletas), tarifas alfandegárias e apoio estatal.
Em 1933, logo após sua nomeação como Chanceler, Adolf Hitler discursou na Exibição Automobilística Internacional em Berlim, afirmando que Administrações anteriores causaram muito dano à indústria automobilística alemã. Nesse sentido, iria promover essa que seria “possivelmente a indústria mais importante” da época.
Anunciou, assim, um programa que incluía isenções fiscais, investimentos em estradas e subsídios a esportes motorizados.
No ano seguinte, contudo, no mesmo evento, Hitler estava insatisfeito. A distância entre a Alemanha e os EUA continuava enorme. A Alemanha produzia 500 mil carros ao ano, mas precisava produzir 12 milhões. Na sua visão, se a Alemanha quisesse produzir carros em massa, as empresas deveriam criar e construir um carro adequado para o povo alemão.
Há tempos Hitler entendia que os fabricantes alemães somente produziam carros muito caros para a elite. Assim, Hitler recuperava a antiga ideia de um carro popular na Alemanha, o Volkswagen (carro do povo, em alemão). Começou uma disputa entre as empresas para convencer o governo alemão de que poderiam produzir o carro que receberia a alcunha de “Volkswagen”.
Entre as concorrentes, empresas tradicionais como a Daimler-Benz, a BMW e a Auto-Union, que não se animavam muito com a ideia de um carro popular (e eram o alvo principal da angústia de Hitler), o engenheiro Ferdinand Porsche, que se tornou protegido do Chanceler, e as duas principais multinacionais estrangeiras, a GM e a Ford. “Quem produzirá o carro do povo?”, perguntou a revista Motor und Sport.
As empresas favoritas eram a Ford e a GM. Por um lado, parecia um contrassenso. Tratava-se de um carro popular em um país cujo regime era altamente nacionalista, de modo que multinacionais estrangeiras sofriam resistência interna. Por outro lado, contudo, a distância tecnológica era imensa. Ford e GM estavam na fronteira tecnológica, muito à frente das demais, principalmente devido ao modo de produção em massa que ficou conhecido como fordismo.
Entre as duas, a GM era a mais cotada, pois havia comprado em 1929 a Opel, maior fabricante de carros na Alemanha. A sede da GM nos EUA estava confiante que seu carro 1.2 seria nomeado por Hitler como o “Volkswagen”. O Presidente da GM no exterior, James Mooney, chegou a mandar uma carta a Hitler após uma reunião, elogiando-o pela “liderança forte e visionária”, e por estar levando a Alemanha “à paz, à limpeza e ao trabalho duro”. GM e Ford bajulavam o regime alemão, e o regime alemão aproveitava as multinacionais para avançar o seu projeto de desenvolver a indústria automobilística.
Pressionou as empresas para realizarem novos investimentos (como em novas plantas estrategicamente localizadas, em parceria com as Forças Armadas), joint-ventures com a indústria nacional (Ford com a Ambi-Budd, por exemplo) e assimilação técnica (obrigando as multinacionais a observarem os padrões nacionais, como o sistema métrico).
Precisando desesperadamente de dólares, o Estado alemão obteve a cooperação das filiais das multinacionais. A planta da Ford em Colônia exportava partes e peças para a sede em Detroit e recebia dólares. A conversão para marcos alemães seria realizada a taxas desfavoráveis, com o pagamento de um prêmio de 25%. Importações de tecnologias provenientes da sede em Detroit poderiam ser realizadas sem a necessidade de dólares, por meio da troca por partes e peças ou por nova participação acionária na filial, e essas tecnologias deveriam ser compartilhadas com outros produtores alemães a preços favoráveis.
O mesmo ocorreu com a GM. O Estado alemão, por meio do seu controle de capitais, dificultava o acesso a dólares para a obtenção de máquinas americanas. Assim, os engenheiros da Opel tiveram que ensinar os fornecedores alemães a produzi-las.
A cooperação rendeu à Ford a designação oficial de “empresa alemã” em 1938. No mesmo ano, Henry Ford recebeu do Consulado alemão em Nova Iorque a Ordem de Mérito da Águia Alemã (foto), concedido a engenheiros estrangeiros que “estiveram a serviço do Reich”. Dezoito dias depois foi a vez de James Mooney, da GM.
Mesmo assim, nenhum deles logrou obter a permissão do regime para produzir o Volkswagen. O vencedor dessa corrida foi Ferdinand Porsche. Em 1936, ano em que apresentou o design do Fusca a Hitler, o aspecto nacionalista já estava pensando mais sobre o processo decisório. Segundo Hitler, o Volkswagen agora “era uma questão puramente nacional”, e as “empresas orientadas para os EUA deveriam ser excluídas”.
O financiamento para a planta do Volkswagen viria da Frente Alemã para o Trabalho, ligada ao Regime nazista, e que substituiu os Sindicatos, suprimidos em 1933. Em junho de 1937, Porsche juntou um time de engenheiros e planejadores para estudar o layout e as operações da fábrica da Ford em Detroit, adquiriu máquinas e contratou especialistas da empresa americana.
Antes mesmo de produzir carros em massa, a planta da Volkswagen foi reconvertida para o esforço de guerra, produzindo jipes, carros anfíbios e veículos de comunicação, utilizando inclusive trabalho forçado, de prisioneiros de guerra e de internos de campos de concentração. Porém, até o final da guerra, segundo o US Strategic Bombing Survey, a planta jamais chegou a atingir 50% de sua capacidade instalada.
O sucesso da Volkswagen, que se confundiu com o sucesso da indústria automobilística alemã, somente viria no pós-guerra. Com a ameaça soviética, era fundamental para os EUA a reconstrução econômica da Europa. Nesse contexto, os americanos aceitaram abrir o mercado doméstico para as exportações da Europa Ocidental e toleraram restrições às importações e controles de capital nos países europeus.
Em 1960, a Alemanha Ocidental já representava um quinto das exportações globais de produtos industrializados. A participação alemã na produção mundial de carros quintuplicou entre 1950 e 1962, exportando para 141 países neste último ano, sendo que um quarto das exportações foram destinadas aos EUA. As exportações permitiram à indústria alemã superar o limitado mercado interno e catalisar o aprendizado tecnológico adquirido nas décadas anteriores.
É difícil superestimar a importância da Volkswagen nesse feito, que representou no período mais de metade das exportações de automóveis do país. Conforme um historiador, no final da década de 1950, “aproximadamente metade do superávit comercial da Alemanha Ocidental se devia somente à Volkswagen”. Nesse contexto, foi fundamental a atuação de Heinrich Nordhoff. Nordhoff trabalhou na Opel entre 1929 e o final da Guerra, e foi fundamental na intermediação entre a subsidiária da GM e o Estado alemão.
Em 1942, comandou a planta da Opel que produzia caminhões para o Exército alemão em Brandenburg. Ao final da Guerra, foi banido de trabalhar no setor da Alemanha Ocidental ocupado pelas tropas americanas. Seria recrutado à Volkswagen por um Major britânico em 1948 e liderou a empresa até 1968.
Nordhoff manteria o design do Fusca apresentado por Porsche a Hitler em 1936 e, aproveitando ao máximo a ideia de economia de escala, tal como Henry Ford fez com o seu Modelo T, produziu em massa um carro familiar forte, firme e acessível com o objetivo de superar as empresas americanas.
Como uma empresa estatal sem acionistas, a Volkswagen pôde reinvestir sua ampla receita enquanto reduzia os preços e aumentava os salários. Nordhoff seguiu enviando representantes para aprender com os americanos, e a crescente automação elevou a produtividade de 6,2 carros por trabalhador em 1950 para 20,8 em 1962, mesmo com o número de trabalhadores tendo triplicado no mesmo período.
Em 1986, a Volkswagen financiou uma pesquisa sobre o período nazista, que gerou o livro “A fábrica da Volkswagen e seus trabalhadores no Terceiro Reich”. Na sede alemã há uma exposição permanente sobre o período nazista.
A empresa é a maior produtora mundial de carros atualmente. A indústria automobilística alemã é hoje reconhecida pela excelência na produção de carros de combustão interna, mas enfrenta um desafio existencial com o rápido desenvolvimento dos carros elétricos.
Texto publicado originalmente no blog do economista Paulo Gala em 26 de janeiro de 2021
LUPE
27/01/2021 - 16h18
E ainda dizem que a interferência do Estado na economia é (sempre) danosa, traz o atraso…
Hitler, um psicopata. Mas, também um gênio nacionalista. Sabia que o Estado tem que interferir na economia (dentro de limites), para promover o progresso e o bem estar do povo.
Com ele o Estado passou a deter mais de 30% da economia.
No primeiro ano de seu governo o PIB da Alemanha cresceu incríveis 32%, que só foi (quase) igualado pela China no início dos anos 50.
Em seis anos a Alemanha passou a ser a maior potência militar da Europa. E, aí, o psicopata Hitler destruiu tudo que havia construído…
Dio
26/01/2021 - 18h49
Só faltou colocar o ponto de que o Ferdinand com o seu Fusca é um plágio do T97 da Tatra Motors, do contrário é “economicismo desonesto intelectual”! E que um dos motivos da invasão da Tchecoelováquia era justamente testar a força militar alemã e se apossar do seu parque industrial, a Volkswagen já pagou até multa por causa disso!