Na entrevista concedida hoje ao jornal Valor Econômico, o presidente do IPEA, o economista Carlos Von Doellinger, disse que “a gente precisa se conscientizar que o Brasil precisa apostar em suas vantagens comparativas, suas vantagens competitivas. Não somos bons em produzir materiais de transporte, não somos bons nisso (….) nosso caminho não é a indústria manufatureira, a não ser aquela ligada a beneficiamento de produtos naturais, minérios”.
O Presidente do IPEA, fiel a tradição liberal brasileira de Bulhões et caterva acha que indústria é algo que está acima da capacidade cognitiva dos brasileiros.
Ele diz que devemos nos contentar com nossas vantagens comparativas na produção de soja e minério de ferro (até porque a vantagem competitiva na produção de café já perdemos para outros países, para ver isso é só passar numa loja da Nespresso e ver quantas linhas de cápsulas de café são produzidas com café brasileiro).
Esse é um argumento rídiculo e totalmente contrário a evidência empírica disponível. Entre 1930 e 1980 o Brasil cresceu a uma taxa média de 8% a.a. puxado pelo crescimento do setor manufatureiro, que ampliou a sua participação no PIB de 16% em 1948 para 27% em 1974 (vide figura abaixo).
O período de redução do crescimento e posterior estagnação da economia brasileira coincidiu precisamente com a desindustrialização, ou seja, a perda de participação da indústria de transformação na economia brasileira. Além disso, vantagens competitivas não são um dado da “natureza”; mas são construídas ao longo do tempo a medida que se acumula conhecimento técnico e científico (complexidade econômica) e o crescimento do tamanho do mercado interno permite a obtenção de economias estáticas e dinâmicas de escala, as quais levam a redução do custo marginal de produção dos produtos manufaturados (A esse respeito ver Ros, 2013, capitulos 7 e 8).
Eventualmente o tamanho do mercado interno se torna insuficiente para o desenvolvimento da indústria de transformação, o que exige que o país passe da fase de industrialização por substituição de importações para a fase de industrialização liderada pela exportação de produtos manufaturados (Kaldor, 1967).
Austrália, Canadá e Nova Zelândia foram países que passaram por um processo de industrialização, mas cuja elevada renda per-capita e elevada acumulação de capital humano permitiram a transição para uma economia de serviços sofisticada. Sobre o caso de como a Austrália e a Nova Zelândia conseguiram escapar da “maldição dos recursos naturais” sugiro a leitura deste excelente post de meu colega Paulo Gala (Austrália, Nova Zelândia e Canadá conseguiram escapar da maldição dos recursos naturais – Paulo Gala / Economia & Finanças)
A desindustrialização ocorrida na economia brasileira não é um fenômeno natural, mas precoce, como argumentei no artigo ” Deindustrialization, economic complexity and exchange rate overvaluation: the case of Brazil (1998-2017)” publicado no numero de dezembro da prestigiosa PSL Quarterly Review (os interessados podem obter o artigo em ( 3d45ce8fcb6c3444952951dea88388c7dc012729.pdf (joseluisoreiro.com.br).
Além disso a evidência empírica disponível, publicada em diversas revistas científicas que o presidente do IPEA parece desconhecer, mostra que a participação da indústria de transformação no PIB tem um impacto positivo e estatisticamente significativo sobre a taxa de crescimento da renda per-capita de uma amostra de países.
Com efeito, na tabela 2 abaixo reproduzida no artigo “MANUFACTURING, ECONOMIC GROWTH, AND REAL EXCHANGE RATE: EMPIRICAL EVIDENCE IN PANEL DATA AND INPUT-OUTPUT MULTIPLIERS” escrito por Luciano Ferreira Gabriel, Luiz Carlos de Santana Ribeiro, Frederico Gonzaga Jayme Jr e José Luis Oreiro e publicado no número de março da PSL quarterly Review (ver Manufactoring, economic growth, and real exchange rate: Empirical evidence in panel data and input-output multipliers | Gabriel | PSL Quarterly Review (uniroma1.it) observa-se que para uma amostra de 84 países (desenvolvidos e em desenvolvimento) para o período 1990-2011 a variável participação da manufatura no PIB (vamanu) mostrou ter um impacto positivo e estatisticamente significativo tanto na amostra ampla, como nas amostras recortadas pelo nível de hiato tecnológico, sendo mais forte no caso dos países com nível intermediário de hiato tecnológico como é o caso do Brasil.
Os economistas estruturalistas Raul Prebish e Celso Furtado, considerados como (sic) “comunistas” pela corja de incompetentes e ignorantes sobre princípios elementares de economia que comanda a política econômica hoje no Brasil, advertiam nos anos 1940 e 1950 que a industrialização e a consequente diversificação da pauta exportadora era absolutamente necessária ao desenvolvimento econômico sustentado.
Isso porque produtos primários como soja e minério de ferro possuem uma baixa elasticidade renda da demanda, ao passo que os produtos manufaturados possuem uma elevada elasticidade renda da demanda. Assim se a renda mundial crescer, digamos, 3% a.a as exportações de produtos primários deverão crescer, no longo-prazo algo como 1,5 a 2% a.a porque a elasticidade renda da demanda é inferior a um.
Já se a renda doméstica de um país exportador de produtos primários crescer 4% a.a (como deseja o Presidente do IPEA), as importações de manufaturados irão crescer entre 5 a 7% a.a, dado que a elasticidade renda da importação é muito superior a um.
Dessa forma, um ritmo de crescimento de 4% a.a é insustentável no longo-prazo porque implica num aumento das importações num ritmo superior ao das exportações e, consequentemente, num aumento do déficit em conta-corrente; o que irá implicar num aumento do endividamento externo.
Ao contrário do endividamento interno, o qual é feito na moeda corrente do país, existem limites estreitos para o endividamento externo, como bem nos lembra a crise da dívida externa de 1980, a qual deu origem a “década perdida”.
Em suma, se queremos que o Brasil volte a crescer de forma sustentada a um ritmo de 4% a.a (o que é bem diferente de crescer 4% em 2021, valor que eu acho superestimado, mas que embute um carregamento estatístico de 2,6% do ano de 2020, sendo portanto bem menos impressionante do que o presidente do IPEA nos quer levar a acreditar), não há outra alternativa do que a reindustrialização do país.
Nesse contexto, a única reforma que pode atuar nesse sentido é a proposta de reforma tributária baseada no estudo do Centro de Cidadania Fiscal, elaborada, entre outros, pelo economista Bernard Appy. O que o Presidente do IPEA defende é o retorno do Brasil ao período pré-1930, o período da República Velha, no qual os bancos, o capital estrangeiro e os grandes fazendeiros controlavam, com mão de ferro, os destinos desse país. Cabe aos bons brasileiros impedir tamanho retrocesso.
Referências
Kaldor N. (1967), Strategic factor in economic development. Ithaca, NY: New York State School of Industrial and Labor Relations, Cornell University.
Ros, J. (2013). Rethinking Economic Development, Growth and Institutions. Oxford University Press: Oxford.