Países latinoamericanos como México, Costa Rica, Equador e Chile podem receber as primeiras doses da vacina da Pfizer ainda em dezembro, e começar a vacinação em seguida. Em Porto Rico, mais de 17 mil pessoas já foram vacinadas.
Enquanto isso, no país mais rico e poderoso da América Latina, exatamente o nosso, o ministro da saúde – um militar improvisado, porque ninguém da área aceitou associar seu nome às insanidades presidenciais – não compreende o porquê da “ansiedade” e da “angústia” da população em relação à vacina. Talvez comece em fevereiro a vacinação. Quem sabe?
Temos mais de 185 mil mortos oficiais, sem contar a subnotificação, especialmente dos casos registrados como “síndrome respiratória aguda”. Embora sejamos a sexta maior população do mundo, temos o segundo maior número de mortes, atrás apenas dos Estados Unidos. “Coincidentemente”, ambos os países são governados por dois negacionistas de extrema-direita.
No número de mortes por milhão de habitantes, estávamos no macabro 4º lugar mundial em 31 de outubro, e agora caímos para o 16º lugar. (Fonte: Poder360.) Mas a melhora se deve, na verdade, à piora dos outros países, e de todo modo não deve durar, dado o aumento galopante de casos e mortes nos últimos dias e o clima de “o pior já passou” incentivado pelas autoridades – de Bolsonaro a Bruno Covas, que disse exatamente isso durante a campanha eleitoral.
A responsabilidade de Trump e Bolsonaro nas tragédias dos seus países é ainda maior se considerarmos que tivemos tempo, pelas bandas americanas do globo, de observar o vírus se alastrando pela Europa e, portanto, tomar as medidas necessárias. Especialmente nos aeroportos e fronteiras, que deveriam ter sido preparados para testar toda e qualquer pessoa que chegasse em cada país. Jair e Donald, do alto de seus conhecimentos epidemiológicos, escolheram minimizar o que vinha pela frente, e o resultado é uma pilha impensável de cadáveres.
Veja-se o caso do Uruguai. O pequeno país ao sul do Brasil contabiliza 109 mortos. Com uma população de 3,4 milhões de habitantes, o número de mortos por milhão está em 31. O do Brasil está em 877.
Esta entrevista com um cientista uruguaio ajuda a elucidar o case de sucesso do país. Qual foi a diferença para outros países latinoamericanos? O Uruguai desenvolveu seus próprios testes para a Covid-19, para não depender de nenhum outro país. Separei dois trechos importantes da entrevista de Gonzalo Moratorio:
Nas mesas dos políticos foi preciso tomar decisões muito importantes. Tínhamos duas opções: trazer absolutamente tudo da Coreia do Sul, técnicos, insumos, centenas de milhares de testes, ou apostar que nós no Uruguai poderíamos fabricá-los sem depender de ninguém. O país escolheu a segunda. Conseguimos fazer milhares de teste desde o dia da primeira infecção. Isso serviu para fazer diagnósticos em massa, rastrear as infecções e isolar os positivos.
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(…) para nós o mais importante foi poder capacitar muitos alunos de mestrado e doutorado para que se espalhassem pelo país e nos ajudassem a montar laboratórios de diagnóstico em todos os hospitais públicos. Cada local nos fazia um inventário dos equipamentos que tinha à disposição e com isso montávamos pequenos centros de detecção para conter a disseminação do vírus.
Não é uma maravilha? Um exemplo evidente de como o investimento estatal em inteligência leva um país a ser mais soberano e, neste caso, a salvar muitas vidas de seus cidadãos. Detalhe: o governo do Uruguai é de direita.
Agora imaginem o potencial do Brasil, uma das maiores economias do planeta, com uma população gigantesca e recursos naturais abundantes, para criar os medicamentos, os testes, desenvolver as tecnologias, fazer o necessário, enfim, para enfrentar situações como esta. O resultado do entreguismo atávico dos nossos governantes é o desperdício de um potencial monstruoso de sermos um país grande para seu povo, e que ainda dê o exemplo para os demais países.
Cabe mencionar também o caso da Argentina. Nesta matéria da BBC de outubro tenta-se encontrar as explicações para a piora brutal no número de casos e de mortes por lá, após um início de combate à pandemia exemplar. O elevado tempo de confinamento, com o consequente relaxamento dos protocolos, e o fato do vírus ter se espalhado pelo interior são duas das explicações apontadas. Atualmente, a Argentina tem 915 mortes por milhão de habitantes, um pouco acima do Brasil.
Defensores do Bolsonaro estão usando a Argentina como exemplo de que a quarentena era uma furada, e que o nosso presidente é que estava certo o tempo todo. Contudo, se Bolsonaro queria evitar uma quarentena, deveria investir em testes para conseguir isolar os contaminados. O presidente passou longe de fazer isso: seu plano era basicamente deixar os velhos em casa, continuar vivendo normalmente e ver o que acontece. Seu modelo era a Suécia, que agora pede socorro aos países vizinhos.
Decerto houve erros graves na condução da crise sanitária na Argentina após os primeiros meses, considerando a escalada dos números. Nada comparável, contudo, ao que aconteceu no Brasil.
Serão necessários alguns bons livros para documentar todas as diatribes de Bolsonaro que dificultaram o combate à pandemia – ou, não raro, trabalharam a favor do vírus. Vou ficar só nas mais recentes: a guerra da vacina contra João Doria, quando o presidente da República tentou boicotar uma vacina para não favorecer um adversário político, e agora o incentivo explícito à não vacinação, com alegações bem ao seu estilo tiozão do churrasco – como a possibilidade de virarmos um jacaré, hahaha, é um ótimo momento para o humor sofisticado do presidente.
O resultado é uma população que naturalizou a morte de mais ou menos mil compatriotas por dia. Não há comoção social, a preocupação com os protocolos despenca, não há vagas nas UTIs. E isso tudo é, em larga medida, responsabilidade do cidadão que foi eleito para liderar a nação, e a está incentivando a pular no abismo.
As atitudes de Bolsonaro têm nome: crime. E o fato de os crimes do presidente terem contribuído para a morte de milhares de brasileiros também têm nome: genocídio.
A política tem o seu tempo, e com o apoio que Bolsonaro conserva na população é difícil imaginar uma punição para logo. O dia em que sua popularidade se dissipar, contudo, assim como se dissiparam os escrúpulos do presidente e do seu entorno, ou as seringas, ou o plano de vacinação nacional, Bolsonaro será julgado. E precisa ser punido exemplarmente, para que nenhum futuro governante ouse brincar dessa forma com a vida dos brasileiros.
Estes elegeram Bolsonaro, é verdade, e o nosso país está aprendendo a lição mais amarga da sua história. Não se elege um imbecil para comandar o país – e nem se deixa de fazer o necessário para que um imbecil não seja eleito.
Sermos pegos pela pandemia do século bem quando o imbecil nos governa pode, ao menos, nos ensinar algumas coisas. Que a partir de 2021 construamos com inteligência a queda definitiva de Jair Bolsonaro e da política da morte que ele representa.