À DIREITA
Jair Bolsonaro é mesmo um presidente sui generis, para o bem ou para o m… quer dizer, mais para o mal, mesmo. O cara se tornou presidente do país para em seguida brigar com o próprio partido, abandoná-lo, tentar criar outro e, por fim, não conseguir. O bolsonarismo, contudo, consolidou-se como uma força política difusa, espalhada por muitos partidos e lugares do Brasil.
O que torna a análise sobre o desempenho do bolsonarismo nas eleições municipais um pouco mais complexa do que parece.
É verdade que os candidatos apoiados de forma explícita pelo presidente perderam e que sua aprovação caiu na maioria das capitais do país durante o processo eleitoral. Nesse sentido as eleições foram, não há dúvidas, desastrosas para o presidente. O fato de Bolsonaro negar que apoiou seus próprios candidatos, em mais uma de suas mentiras compulsivas e demonstrações de falta de caráter, indica que ele não digeriu bem o resultado.
Ainda assim, é difícil mensurar a força do bolsonarismo para 2022. Primeiro, porque muita água vai correr até lá. Segundo, porque não parece que a tendência conservadora tenha refluído significativamente no Brasil em apenas dois anos – o que seria, de resto, improvável. O bom resultado dos partidos tradicionais de direita, em que pese não ser exatamente bom para Bolsonaro, indica que o conservadorismo permanece robusto.
É inegável que MDB, PP, DEM, PSD e PSDB são bichos papões nas eleições municipais. Se terão forças para derrotar Bolsonaro (provavelmente com uma chapa com dois do trio Moro, Doria e Huck) em uma eventual disputa por vaga no segundo turno em 2022, é outra história. Até porque muitos dos candidatos vitoriosos desses partidos são as forças políticas mais identificadas com o bolsonarismo nas disputas locais. Em 2018 estavam todos juntos no segundo turno. Se Bolsonaro chegar forte em 2022, pode atrair muito prefeito e vereador da direita tradicional para o seu lado.
A imagem abaixo, com o resultado das zonas eleitorais de São Paulo no segundo turno de 2018 e de 2020, é impressionante:
O voto bolsonarista parece ter migrado em peso para Covas, enquanto a esquerda permaneceu confinada aos mesmos lugares e ao mesmo percentual (com uma pequena diferença de 1% a mais para Boulos em relação a Haddad). Não é difícil imaginar esses votos tucanos migrando novamente para Bolsonaro, caso este vá para o segundo turno.
A tendência é que Bolsonaro parta pra cima do seu futuro adversário da direita tradicional com fúria igual ou superior à reservada para a esquerda. Se ele garantir o Renda Brasil, uma mistura de Bolsa Família com auxílio emergencial, se souber manter sua base de apoio ideológica mobilizada – e isso ele e Carluxo sabem fazer muito bem – e se sair ileso dos problemas com a Justiça, é um candidato bastante competitivo em 2022.
Na direita tradicional – que alguns veículos de mídia tentarão pateticamente empurrar como “centro” – Doria tem o jogo armado para ser candidato com o apoio do DEM, apoiando seu vice, que é do Democratas, para o governo do estado em 2022. Mas Luciano Huck pode se filiar ao DEM e sair candidato pelo partido, o que embolaria o meio de campo. Sergio Moro, que está se mudando para os EUA após mais uma operação assaz ética em sua carreira, não está dando pinta de que vai topar a pancadaria de uma eleição.
Me parece que o ex-juiz teria mais cacife para disputar com Bolsonaro, ao menos os votos da classe média/alta, do que Doria. O governador de São Paulo está disposto a brigar com o presidente, mas é difícil imaginar sua imagem de playboy fazendo sucesso entre o grosso do contingente populacional. Huck tem uma imagem parecida, embora seu “trabalho social” em seus programas na Globo possam ser um trunfo eleitoral. O apresentador tem ainda uma série de esqueletos no armário, os quais começaram a ser expostos mal ele ameaçara se candidatar, e esse é o tipo de coisa que pode complicar sua vida em uma eleição.
Dentre muitas incertezas e possibilidades, uma coisa é previsível: a briga entre os atores da direita será encarniçada.
À ESQUERDA
Não é impensável que o segundo turno se dê entre a extrema-direita e a direita daqui a dois anos. É o temor expresso por Flávio Dino, por exemplo, ao afirmar que isso “seria um desastre“. O governador do Maranhão, que também viu boa parte dos seus candidatos naufragarem nas eleições municipais, conclama a uma “frente ampla progressista” para “não correr o risco de ficar fora do segundo [turno]”.
Jilmar Tatto, candidato derrotado do PT à prefeitura de São Paulo, publicou uma declaração forte em seu Twitter:
Precisamos abrir um diálogo franco com Ciro, com PSB, PSOL, PCdoB e setores do MDB para discutirmos um candidato para 2022 de uma forma muito transparente e aberta.
É significativo que o primeiro nome mencionado por Tatto – o único, aliás, visto que os demais são siglas partidárias – é o de Ciro Gomes. Tatto foi rifado por Lula no dia da eleição, numa atitude que recebeu críticas até mesmo de um adversário, Orlando Silva (PCdoB). E o fato de Jilmar Tatto ter “curtido” a crítica que Silva fez a Lula nas redes sociais é também significativo – às vezes uma curtida vale mais que mil palavras.
Jaques Wagner, que em 2018 já tensionou pelo apoio do PT a Ciro, foi outro a afrontar, de forma pouco sutil, a liderança de Lula sobre o Partido dos Trabalhadores: “Sou amigo do Lula, mas vou ficar refém dele a vida inteira? Não faz sentido.” Wagner falou isso quando elogiava o desempenho das candidaturas jovens do campo progressista. Junto com Boulos, Manuela e Marília Arraes, o senador citou João Campos (PSB), que foi tratado quase como um bolsonarista por parte da militância e dos dirigentes petistas nestas eleições.
Essas manifestações são reflexos da derrota do PT nas urnas. O partido viu seu número de prefeitos e vereadores diminuir, além de ficar sem nenhuma capital pela primeira vez em 35 anos. É um partido ainda forte, especialmente no número de vereadores em grandes cidades, mas não há sinal de que a tendência de queda será revertida no curto prazo.
Em Porto Alegre, mesmo com Manuela D’Ávila escondendo seu vice (Miguel Rossetto – PT) no horário eleitoral, o antipetismo pode ter pesado na derrota da candidata do PCdoB. Seu adversário (Sebastião Melo – MDB) abusou dos clichês antipetistas, transparecendo até um certo desespero com a subida de Manuela nas pesquisas – o último debate foi um festival quase nonsense de “Mas e o Lula? E o PT?”. O bolsonarismo de Porto Alegre apoiou Melo, e Manuela ressaltou isso na sua campanha. Ao final, o emedebista levou a eleição com 6 pontos percentuais de vantagem. Também em Vitória o candidato do campo petista (este do próprio PT) perdeu para o bolsonarista, com uma margem um pouco mais folgada.
Resultados como esses e a ausência de capitais vencidas pelo PT indicam que o antipetismo segue firme e forte. Esta leitura óbvia do cenário deve motivar outras dissidências internas, além das dos quadros de peso Tatto e Wagner, em relação à política hegemonista tradicional do partido.
Até por uma questão de sobrevivência. Lançar candidato a presidente em 2022 pode resultar em uma catástrofe eleitoral ainda maior para o PT, inclusive com uma diminuição considerável das bancadas de deputado. Lula não parece mais ter a força de outrora (é o que apontam as últimas pesquisas para a presidência), e portanto também não tem mais o poder que tinha de transferir votos. O “melhor” cenário para o PT é chegar ao segundo turno, porém com altas chances de experimentar mais uma derrota para a direita. Apesar disso tudo, é provável que o PT não abra mão de sua candidatura.
O campo capitaneado por PDT e PSB, embora tenha perdido prefeituras e cadeiras de vereador, conquistou algumas capitais e, mais importante, consolidou sua aliança para 2022. Somados, os números desses dois partidos os colocam como a quarta força “partidária” do país. Ainda assim, o realinhamento ideológico de PDT e PSB à esquerda parece estar cobrando seu preço, com uma espécie de depuração e consequente perda de espaços de poder em alguns locais do país.
O problema em 2022 será, novamente, chegar ao segundo turno. Para resolvê-lo, o PDT tenta “rachar o centrão”, convencendo ao menos um naco dele a estar na chapa trabalhista nas próximas eleições. É uma tarefa complicada, considerando as diferenças ideológicas entre os atores envolvidos. Mas não impossível – e Ciro Gomes tem o mérito de revelar sua estratégia, sem duplo discurso como costumava fazer o PT ao manter uma pose de “esquerda pura” para os militantes e eleitores enquanto muitas vezes negociava com a direita às escondidas (e adotava políticas de direita no governo).
O PSOL, por sua vez, conquistou sua primeira capital com Edmilson Rodrigues, em Belém, e viu suas bancadas de vereadores crescerem vigorosamente em cidades importantes, como São Paulo e Porto Alegre. Embora ainda seja um partido pequeno em número de prefeitos e vereadores – por conta principalmente da falta de capilaridade nos interiores do Brasil.
A campanha de Guilherme Boulos mobilizou uma militância de esquerda orgânica e não partidária como há muito não se via – talvez desde o segundo turno de 2014, quando a campanha de Dilma foi abraçada pelo campo progressista para que Aécio não vencesse a eleição. (Ah, se soubéssemos o que estava por vir…) Boulos esteve muito melhor que na campanha presidencial de 2018: mais preparado, mais afiado nos debates e com uma estratégia mais ampla, disposta a buscar votos fora da bolha da esquerda. O que não foi suficiente, visto que Bruno Covas (PSDB) o derrotou no segundo turno com uma boa margem de votos.
A tendência é que o nome de Boulos seja lançado novamente para a presidência em 2022. O governo do estado, em tese mais acessível para quem acabou de ser derrotado em uma eleição para prefeito, é complicado para Boulos, porque o interior de São Paulo é consideravelmente mais conservador que a capital do estado, o que torna uma vitória do PSOL bastante improvável.
Com uma chapa pura, o caminho para a presidência é igualmente pedregoso, mas o PSOL deve alimentar as esperanças de que um fenômeno como o de 2018, quando Bolsonaro ganhou sem tempo de televisão e a bordo de um partido nanico, se repita com o sinal ideológico invertido. O que dificulta as coisas para uma candidatura vista como radical de esquerda é que ainda estamos em um momento de alta do conservadorismo.
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O temor de Flávio Dino de que a esquerda sequer vá para o segundo turno em 2022 até tem razão de ser, mas há vantagens e desvantagens de um bloco unitário. A vantagem óbvia é a de concentrar as forças em uma só candidatura, mas ela vem com a desvantagem de concentrar também as altas rejeições, como ao petismo e à imagem da esquerda em geral.
A existência de três candidaturas no campo da esquerda pode pulverizar os votos e abrir o caminho pra um segundo turno horroroso, mas também pode atrair um eleitorado mais amplo, bem como, no caso da candidatura de Ciro Gomes, permitir alianças com setores do Centrão ainda no primeiro turno. Isso resultaria em mais tempo de TV, fundo eleitoral e estrutura para a campanha, o que pode ser decisivo na eleição. Se uma candidatura do PT ou do PSOL passasse ao segundo turno, um eventual apoio de Ciro seria impactante, diferentemente do que aconteceria se estivessem todos juntos desde o primeiro turno. Neste caso, aliás, é difícil pensar em partidos eleitoralmente relevantes que apoiaram o PT ou o PSOL para enfrentar Bolsonaro ou outro candidato de direita.
Além disso, a guerra surda entre ciristas e lulistas, ou petistas e pedetistas, ganhou ainda mais intensidade após o segundo turno, o que parece inviabilizar uma composição já no primeiro turno em 2022. Se um não quer, dois não brigam, mas se os dois querem brigar, bem, há briga. Mas sobre esta disputa visceral escreverei em um próximo artigo.
Dois anos depois da vitória de um candidato protofascista nas eleições presidenciais, em um momento de ascensão da direita inédito no pós-ditadura, encolher de forma “não trágica” nas eleições municipais e ainda conquistar algumas posições importantes é, para a esquerda, um resultado até, sem querer ser otimista demais, animador. Ou, em três palavras: podia ser pior. Se o campo progressista trabalhar com inteligência, pode acelerar a volta do pêndulo ideológico para um lugar mais próximo das causas populares.