Por Jaques Wagner
Quando um Papa morre ou renuncia, os cardeais da Igreja Católica se reúnem no conclave, e o mundo espera pelo anúncio vindo da chaminé da Capela Sistina. Para além dos católicos, é um ato que desperta a expectativa de todos.
Algumas decisões tomadas no Brasil de hoje merecem a mesma atenção. A análise, pelo Supremo Tribunal Federal, da ação que questiona a possibilidade de reeleição para as presidências do Senado e da Câmara diz muito sobre o país e nossa democracia. A decisão a ser tomada tem efeitos profundos, duradouros, que não se limitarão ao Congresso Nacional, repercutindo também nos estados e municípios.
Aqui, não se trata de avaliar o trabalho dos atuais presidentes. E as decisões tampouco podem ser tomadas com esse embasamento. Sou um fundamentalista da democracia e me orgulho deste dogma, pois considero que preservá-la é nossa maior tarefa, acima de qualquer interesse. A democracia não admite arremedos, que podem até fazer chegar mais rápido ao objetivo, mas com consequências futuras nefastas. E ela se solidifica com a perenidade das suas normas; por isso, é sempre importante não driblar o que está estabelecido.
A Constituição de 1988 é absolutamente assertiva sobre este tema em seu artigo 57. Não há outra interpretação possível. Qualquer mudança só pode ser feita por proposta de emenda à Constituição, com uma discussão que respeite os ritos, cuja aprovação depende do voto de três quintos dos deputados e senadores. Lembremos que até mesmo o conturbado processo de aprovação da reeleição do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso respeitou a liturgia jurídica e foi feito por meio de uma emenda constitucional.
De toda forma, é equivocada essa tentativa de equivalência. Os eleitos para o Poder Executivo o são a partir de um programa de governo. E pelo conjunto da população. Presidentes das casas legislativas são escolhidos por um colégio eleitoral, entre iguais, com uma proposta de gestão interna. São responsáveis por mediar e buscar o equilíbrio do Parlamento. A alternância é garantidora dessa atribuição.
Quem deseja mudar a regra, que tenha a grandeza de trabalhar para a aprovação de uma emenda constitucional, com todas as discussões necessárias. Qualquer outro caminho é um atalho democrático, algo inadmissível. Estranho, inclusive, membros das casas legislativas irem ao STF para tentar referendar um desvio jurídico tão flagrante. Vejamos que mesmo a democracia americana, sempre invocada como exemplo, resistiu às tentativas de revés do atual presidente. A Justiça de lá corretamente fez a lei ser cumprida.
Por isso, a decisão a ser tomada pelo STF é ímpar e definidora de onde iremos. Também é uma condição para que as pessoas sigam acreditando na democracia e na sua estabilidade. Que Deus ilumine nosso conclave de 11 ministros, que se reunirá amanhã sob orientação do mais nobre espírito democrático. E que, ao final da reunião, o Brasil olhe para a Praça dos Três Poderes e possa comemorar a fumaça branca: habemus democracia!
Senador pelo PT da Bahia, foi ministro da Defesa (Governo Dilma)
Artigo publicado originalmente no jornal O Globo, em 3 de Dezembro de 2020