Clichês

Erundina, em seu "papamóvel", cumprimenta Boulos. Foto: RS via Fotos Publicas

A espetacular ascensão de Guilherme Boulos na corrida pela prefeitura de São Paulo fez ressurgir alguns clichês da às vezes irritante, muitas vezes decepcionante, porém jamais monótona política brasileira.

O primeiro é a clássica ausência de escrúpulos dos veículos de mídia conservadores. Seus editoriais bradam aos quatro ventos os valores da República, os colunistas defendem a democracia contra os autoritarismos, as reportagens zelam pela livre vontade de cada eleitor.

Mas aí, sabe como é: se um líder de movimento popular aparece com chances reais de ganhar a eleição, por um partido da “esquerda radical” ainda, chute-se o balde para o ar, com imparcialidade e tudo.

Teve repórter fazendo pergunta de infinitos segundos para o candidato responder em 3 (três!) e ainda “emendar considerações finais”. Teve o último debate cancelado porque o Boulos pegou Covid – alguém apresente o Zoom aos manda chuvas da Globo. Teve olhada pro outro lado e assobios distraídos quando os carros da prefeitura distribuíam cestas básicas enquanto tocavam, como quem não quer nada, o jingle do Bruno Covas.

É a velha mídia de direita em ação, implorando para que o próximo governo progressista comece a falar sério em democratizar as comunicações no Brasil.

Mas teve revival de clichê bom, também.

O engajamento espontâneo de uma militância não partidária na campanha de Boulos é impressionante. Lembrou os anos 90, quando o petismo surgia como uma força renovadora na política brasileira e empolgava as pessoas. Quando se podia fazer frente ao derrame de dinheiro nas campanhas com luta, garra, coração. Quem sabe seja ainda possível fazer isso? A campanha de Boulos indica que sim, é possível.

O fato do candidato ser líder de um movimento por moradia, o MTST, e de ter tido papel destacado nas grandes lutas políticas dos últimos anos é, com certeza, um dos fatores a gerar esse entusiasmo. O seu partido ser o PSOL, que começa a dar sinais de que pode crescer com consistência, é outro fator importante. São pontos que explicam a vitória avassaladora de Boulos sobre Covas entre os jovens – o que dá um senhor alento em relação ao nosso futuro político.

E tem sua vice, é claro. Luiza Erundina, que completa 86 anos amanhã, dia 30/11, parece estar em seu auge político. Não quanto ao cargo – ela foi prefeita de São Paulo no início dos anos 90, deputada federal etc. –, mas quanto a algo ainda mais relevante: o sentido nobre, quase metafísico da política. Veja que pérola inspiradora a fala de Erundina neste vídeo aqui. Transcrevo um trecho:

Por que essa campanha tá despertando, tá dando certo? Porque tá tocando num momento sensível das pessoas. Aí contagia e aí junta gente. Portanto toda ação transformadora se alimenta desse sentimento de esperança. A esperança é acreditar que o momento é pleno, o presente é pleno. E é neste momento pleno que as coisas acontecem. Sobretudo se esse momento é vivido coletivamente. É a energia humana, do espírito mesmo. É o outro lado do ser humano. Ser humano não é só isso [olha pro corpo], isso aqui é o envelope velho e que acaba logo. Vai sobreviver a você. Não é isso tudo? Esse cosmo incrível, esses trilhões de astros que não se chocam ou pelo menos nesse pedaço que a gente alcança. Tem uma ordem, uma perfeição, uma beleza. É isso, sabia que o ser humano é isso, é um cosmos, né? É o além daquilo que é a vida, a vida material, a vida das necessidades humanas. É um processo que extrapola os limites do tempo, da vida, da idade. É outra coisa, você vive num outro plano. Mas não é um plano abstrato, né? É uma outra forma de ser gente. De ser humano, sabe? É a utopia! E a vida só vale viver assim. No fundo é amor, é a energia do amor. Amor por si mesmo, amor pelos outros, amor pela vida.

Transcendental.

E então chegamos ao derradeiro clichê que a chapa Boulos/Erundina fez ressurgir. Muito se tem falado e escrito que não importa o resultado: a candidatura do PSOL na maior cidade do país já pode ser considerada vitoriosa. É uma frase padrão, muitas vezes usada apenas como consolo para uma derrota sofrida, ou mesmo por quem quer passar um pano nas falhas cometidas em uma empreitada qualquer.

Não é o caso, contudo.

Boulos e Erundina começaram a campanha lá embaixo, sem estrutura, sem tempo de TV. Mas souberam encantar a juventude, principalmente usando as redes sociais sem apelar para alguma baixaria asquerosa qualquer.

Souberam também ser estratégicos. O Boulos demarcando a posição esquerdista e antibolsonarista de 2018 – papel importante e necessário em diversos momentos – deu lugar a um candidato muito mais tático, que conseguiu adequar a forma de fazer campanha e de pedir votos à pluralidade do eleitorado de uma cidade como São Paulo.

Se na campanha para presidente em 2018 Boulos abusou de frases de efeito para repercutir na internet, desta vez se preparou melhor, demonstrando conhecimento dos problemas da cidade e apontando caminhos concretos para corrigi-los. Esta faceta ficou evidente nos debates, onde Boulos esteve, em geral, afiadíssimo.

Contra muitas previsões – inclusive a deste que vos escreve –, Boulos chegou ao segundo turno e continuou sua escalada nas intenções de voto, colocando um medo terrível, palpável, na candidatura de Covas e em seus aliados na mídia mainstream. As pesquisas indicam um resultado apertado, que pode sim ser o de vitória para a surpreendente candidatura do PSOL, de Boulos e de Erundina.

Dentro de algumas horas saberemos (se o sistema do TSE ajudar). Ganhando ou não, o clichê é, neste caso, preciso: é uma campanha já vitoriosa.

Pedro Breier: Pedro Breier nasceu no Rio Grande do Sul e hoje vive em São Paulo. É formado em direito e escreve sobre política n'O Cafezinho desde 2016.
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