É real a possibilidade de que Guilherme Boulos, candidato do PSOL, vença a eleição para a prefeitura de São Paulo em cima de Bruno Covas, do PSDB. Ao menos é o que se extrai da pesquisa divulgada pelo Datafolha, que captou uma diminuição na intenção de voto para o tucano e um aumento para o psolista. Há uma tendência de queda para Covas e de aumento para Boulos e, ainda, o fato de que o Datafolha da véspera do primeiro turno apontou 37% para o candidato do PSDB, 5% a mais do que o resultado das urnas (32%), e 17% para o concorrente do PSOL, que acabou tendo 20% dos votos.
Uma vitória do PSOL – e de Boulos, líder de um movimento popular por moradia – na maior cidade da América Latina apenas dois anos após a contundente vitória de Jair Bolsonaro – e da extrema-direita – nas eleições presidenciais terá o efeito de um terremoto na política brasileira. Mesmo que não saia vitoriosa, a competitividade da candidatura de Boulos é surpreendente.
Qual a explicação para o fenômeno Boulos?
Uma hipótese seria o enfraquecimento da direita, diante da catástrofe do governo Bolsonaro, ainda mais aguda por conta da pandemia. Os candidatos de Bolsonaro não foram bem na maioria dos grandes municípios do país.
A força do bolsonarismo nos interiores do Brasil, contudo, ainda pode ser considerável. Há uma tendência natural de que as cidades mais populosas e mais modernas sejam mais progressistas, na média, do que as cidades menores e menos desenvolvidas. Ademais, o auxílio emergencial e o conservadorismo militante seguem compondo a paisagem, o que garante uma sobrevida política ao presidente da República.
Além disso, o número de prefeituras e de cadeiras de vereador(a) conquistados pelos partidos indica que a direita continua muito forte. MDB, PP, PSD, PSDB, DEM e PL ocupam as seis primeiras posições tanto no número de prefeitos quanto no de vereadores. (O destaque vai para o PSD, que sequer existia antes de 2012 e já é o terceiro partido do país com mais prefeitos e vereadores.)
Somente depois aparecem PDT, PSB e PT, partidos de centro-esquerda que, apesar de terem mantido suas “posições na tabela”, viram diminuir seu número de prefeitos e vereadores na comparação com as últimas eleições. O PSOL cresceu, mas ainda é um nanico perto dos grandes, figurando no que seria a zona de rebaixamento de um campeonato de futebol.
O desempenho de Boulos é, então, um ponto fora da curva?
Creio que não.
O pêndulo ideológico da política brasileira alcançou em 2018 o ponto mais extremo à direita. O bolsonarismo emergiu com violência e tomou o poder central do país. Seria razoável esperar um massacre da direita nessas eleições municipais, mas não foi o que se viu.
O desempenho do bolsonarismo foi tímido. A direita tradicional saiu vitoriosa, mas a esquerda não foi, de maneira alguma, varrida do mapa.
Diante do cenário, o resultado eleitoral do primeiro turno foi até razoável para o campo progressista. Mesmo perdendo espaço, não sofreu uma derrota acachapante e ainda obteve vitórias importantes em grandes cidades e está disputando com chances o segundo turno em outras.
Há um aparente retorno à racionalidade política, como indica a preferência dos eleitores por partidos da direita tradicional, em vez dos tresloucados bolsonaristas. O sentimento antipolítica que desaguou na eleição de Bolsonaro parece ter refluído. O pêndulo está fazendo seu caminho de volta.
A lei do ritmo
Há uma filosofia/misticismo do antigo Egito que é bastante interessante. Chama-se hermetismo. A lenda fundadora conta que o sábio Hermes Trismegisto resumiu o funcionamento do universo inteiro em algumas poucas leis. E as escreveu em uma tábua de esmeralda, o que fez com que Jorge Ben Jor lançasse, milênios depois, um álbum chamado Tábua de Esmeralda, onde ele musicou, explicou e exaltou as teorias herméticas. (Mas isto é uma outra história).
Uma das leis anunciadas por Hermes é a do ritmo, segundo a qual “tudo tem fluxo e refluxo; tudo tem suas marés; tudo sobe e desce; o ritmo é a compensação; tudo se manifesta por oscilações compensadas; a medida do movimento à direita é a medida do movimento à esquerda; o ritmo é a compensação.” É mais ou menos como a terceira lei de Newton – que afirma que toda ação gera uma reação de mesma intensidade, mas em sentido oposto -, só que aplicada a tudo no universo.
Inclusive a política.
A nossa Constituição de 1988, por exemplo, é avançadíssima nas questões sociais e de liberdades individuais, o que sugere um movimento do pêndulo no sentido oposto ao dos anos de chumbo da ditadura militar. “A medida do movimento à direita é a medida do movimento à esquerda”, diz a lei.
Por essa lógica, é de se esperar que tenhamos uma ascensão da esquerda em algum momento não tão distante. O pêndulo está funcionando em um ritmo mais acelerado, pois turbinado pela evolução tecnológica e pela estonteante velocidade dos acontecimentos (e de suas repercussões) proporcionada pela internet.
Mas é claro que tudo isso depende das ações concretas dos atores políticos, da militância e dos eleitores. (Ou tudo está pré-determinado e nós somos apenas marionetes sem livre arbítrio vivendo em uma espécie de simulação de computador ultratecnológica, mas deixemos este debate para outro momento.)
Estratégia, do grego…
No caso da esquerda brasileira, essas eleições municipais parecem ter delimitado distinções importantes entre três campos: um orbitando o PT, outro o PDT e o PSB, e outro o PSOL. A formação desses três campos independentes, embora fratricida em alguns momentos, pode significar, se bem trabalhada, uma possibilidade de expansão dos horizontes eleitorais e políticos da esquerda. Três projetos diferentes têm, naturalmente, capacidade de atrair mais eleitores do que apenas um projeto hegemônico.
Para que isso se reverta em poder político, seria interessante que os partidos de esquerda agissem um pouco mais como os de direita, no sentido de não se canibalizarem mutuamente. Não se tem notícia de debates sangrentos entre militantes do MDB, do DEM, do PSDB, do PP e do PSD sobre quem é mais de direita. Se um deles passa para o segundo turno, costuma ser tranquilamente apoiado pelos demais. É comum inclusive comporem governos mesmo sendo adversários diretos nas eleições.
Trata-se, é claro, de uma certa falta de ideologia, que é facilmente observável na esmagadora maioria dos municípios brasileiros. O importante para a maioria dos políticos locais (e nacionais) é estar no poder, seja ao lado de quem for.
Isso é sintoma de uma exasperante falta de projeto, não há dúvida. Mas é possível aprender com o inimigo: se a esquerda agir estrategicamente, fazendo com que os debates sejam menos viscerais e tenham um nível mais alto, ao menos dentro do seu próprio campo, pode facilitar alianças em um eventual segundo turno e também a governabilidade, caso alguém do campo progressista seja eleito.
Este não é um cenário impossível: a campanha de Boulos colocou em seu programa de televisão Lula (PT), Ciro Gomes (PDT), Marina Silva (Rede) e Flávio Dino (PCdoB), todos pedindo voto para o PSOL. Márcio França declarou neutralidade, mas seu partido, o PSB, também está apoiando Boulos.
Muitas águas vão rolar até 2022. Contudo, o resultado das urnas no primeiro turno das eleições municipais, as boas possibilidades de vitória em segundo turno, os apoios mútuos e convergências como a que acontece em torno da candidatura de Boulos, e até mesmo o encontro inesperado entre Lula e Ciro Gomes indicam que a esquerda pode chegar bastante competitiva nas próximas eleições presidenciais.
O pêndulo se move.
P.S.: Saiu a pesquisa Ibope da eleição em Porto Alegre/RS, e Manuela D’Ávila (PCdoB) se aproxima perigosamente do candidato da direita (Sebastião Melo, MDB). Assim como Guilherme Boulos, Manuela é apoiada por quase todos os partidos de esquerda neste segundo turno. Caso vença, será também uma vitória surpreendente – e revigorante – para a esquerda.