Análise: farpas entre Boulos e a França escondem uma divergência mais profunda

A medida que se aproxima o dia da eleição, a disputa por uma vaga no segundo turno eleva a tensão entre as campanhas de Guilherme Boulos e Marcio França, que hoje disputam voto a voto a preferência dos eleitores que rejeitam tanto Bruno Covas quanto Russomano.

Ambos os candidatos vem se acusando mutuamente de baixar o nível da campanha e promover ataques no submundo das redes sociais.

No último domingo, Guilherme Boulos usou o palco do Largo da Batata para acusar Marcio França de distorcer uma fala sua sobre o uso da polícia em casos de violência doméstica em ocupações.

A campanha de França, por sua vez, acusa Boulos de hipocrisia, porque o candidato do PSOL teria usado – segundo França – uma “fake news” para acusá-lo de não defender o uso da polícia contra violência doméstica.

O debate é uma tremenda besteira, porque ambos, Marcio França e Guilherme Boulos, parecem ter visão semelhante neste assunto, embora o tenham considerado a partir de ângulos totalmente distintos.

O então governador Marcio França, numa entrevista distorcida por um título sensacionalista, disse o óbvio: a PM não é o único órgão nem o mais adequado para tratar de violência doméstica, que é um problema que deve ser combatido – sobretudo através de medidas de prevenção – por outros setores do Estado, como assistentes sociais, educadores e psicólogos.

Já Guilherme Boulos, numa entrevista concedida em 2014, apenas usou o bom senso. Problemas de violência doméstica numa ocupação de sem teto não podem ficar a mercê da boa vontade da polícia militar, até porque, por razões políticas que ninguém precisa explicar, a polícia militar não costuma ser bem vinda em ocupações. Talvez em países extremamente avançados, como o Canadá, a Suécia, a Alemanha, os membros de uma ocupação urbana se sintam à vontade para chamar a polícia local para resolver um problema de violência doméstica. No Brasil, é mais complicado.

Boulos errou, de qualquer forma, ao tentar colar em Marcio França a pecha de “cúmplice” de violência doméstica. O ex-governador pode ter outros defeitos, mas esse não cola. É compreensível, portanto, que a campanha de França tenha decidido usar o vídeo de Boulos – em que ele dispensa o uso da PM para resolver casos de violência dentro das ocupações – para ilustrar que as insinuações de Boulos contra França foram injustas e contradizem o que ele mesmo, Boulos, pensa sobre o tema.

De qualquer forma, estamos aqui diante de uma disputa puramente retórica, embora tenha sua importância, por envolver valores éticos (o que se deve ou não usar contra adversários).

A questão política nas eleições paulistanas, porém, é muito mais profunda, e seria saudável que todos fizessem um esforço para que as paixões eleitorais fossem sempre limitadas pelo bom senso.

Boulos optou por uma campanha fortemente ideológica, apostando na polarização direta com o presidente Jair Bolsonaro, o que lhe deu uma partida mais rápida. Com a autenticidade que sua bela história, como líder de movimento social, lhe proporciona, Boulos conquistou o eleitor de esquerda. Com isso, desidratou a candidatura de Jilmar Tatto (PT) e travou o avanço de Marcio França (PSB) junto ao eleitor progressista de classe média (um setor com muita força nas redes sociais).

Marcio França, por outro lado, adotou uma estratégia diferente. Já no início de sua campanha, se deixou fotografar a lado de Bolsonaro, para lhe pedir publicamente que ajudasse a levar mantimentos para Beirute, vítima de uma explosão que destruiu metade da cidade.

Embora fosse injusto usar esse episódio para acusar França de “sinalizar” para Bolsonaro, como boa parte da esquerda tentou fazer, me parece claro que o candidato socialista tentou ali uma jogada política bastante complexa, com uma dose calculada de risco, com objetivo de se promover como uma liderança moderada, capaz de conversar até mesmo com o presidente da república. Com isso, ele se diferenciou tanto de Bruno Covas, cujas relações com o presidente estão virtualmente rompidas, em função sobretudo do problema pessoal entre Bolsonaro e o governador João Dória, padrinho político de Covas – como de Boulos, que procura vender a ideia de que o cargo de prefeito será usado para “lutar contra Bolsonaro”.

Considerando que a maioria dos paulistanos votou em Bolsonaro, a jogada de França fazia sentido.

Mas havia o risco do candidato se descaracterizar, ou seja, ficar sem referência (é de esquerda, é de direita?) e foi o que houve, ao menos inicialmente, e essa parece ter sido a razão de França ter estagnado nas semanas iniciais da campanha, deixando o caminho livre para Boulos.

Por outro lado, a aposta de Marcio França não se parece basear tanto em pesquisas, mas em seu próprio faro político; além disso, é uma estratégia que não olha apenas para o primeiro turno, mas visa sobretudo construir as condições favoráveis para vencer as eleições. Caso França dispute o segundo turno com Bruno Covas, ele terá a trunfo de reunir tantos os votos da esquerda (que tenderá a votar nele, mesmo que de má vontade) quanto dos eleitores de Bolsonaro.

A divergência entre Boulos e França, todavia, vai além da questão eleitoral em São Paulo, e recebe influxos das estratégias diversas, tanto de partidos como dos eleitores, para a construção de frentes políticas com força para derrotar Bolsonaro em 2022.

Com o esvaziamento precoce da candidatura de Jilmar Tatto (PT), a candidatura de Boulos acabou por se tornar uma espécie de “plano B” dos petistas. Desde o início das primeiras articulações eleitorais em São Paulo, tem sido intensa a campanha de intelectuais, influencers, artistas, e militantes identificados com PT e com Lula, para que o partido apoiasse Guilherme Boulos no primeiro turno.

Os petistas que apoiam Boulos não são tão românticos e ingênuos como pode parecer a alguns. Por instinto ou estratégia, eles sabem o que fazem. Essa aliança não-oficial do petismo com o Psol, e, mais particularmente, com Boulos, faz parte da estratégia maior do PT de usar a cartada ideológica para “limpar” a sua imagem. A estratégia serve ainda aos objetivos da legenda de manter a hegemonia sobre a esquerda, e, com isso garantir, desde já, sua vaga no segundo turno de 2022.

O fato de nem Lula nem a burocracia do partido terem aceitado apoiar Boulos não significa que eles também não estão comprometidos com a mesma estratégia; a prova é que o próprio Jilmar Tatto resignou-se pacificamente com a crescente cristianização de sua candidatura; e a situação toda, que poderia ter gerado uma crise dilacerante dentro da legenda, tem sido controlada, até o momento, com relativa tranquilidade.

Já a candidatura de Marcio França é vista como estratégica para o campo liderado por Ciro Gomes, porque a parceria entre PSB e PDT é o pilar central do núcleo duro de centro-esquerda, alternativo ao petismo, que ele tenta construir para 2022, capaz de atrair o centro e chegar ao segundo turno das eleições presidenciais. Uma vitória da chapa PSB-PDT em São Paulo seria, naturalmente, um grande passo nessa direção.

Quanto ao candidato, França tenta vender a imagem de si mesmo como possuidor de duas grandes virtudes: uma política, outra eleitoral. A virtude política é sua larga experiência como administrador e homem de partido, além de sua própria posição na balança ideológica, mais centrista (embora de um partido de centro-esquerda), o que teoricamente lhe proporcionaria melhores condições de dialogar com todos os espectros políticos, evitando crises de governabilidade. A sua virtude eleitoral é derivada da virtude política: justamente por não ter o seu nome tão ligado à esquerda ideológica, França tem espaço para construir uma campanha relativamente leve no segundo turno, conquistando votos tanto da esquerda, que tende a lhe preferir ao invés de Bruno Covas, como do eleitor de Bolsonaro, que se afastou de Bruno Covas em função da guerra do presidente contra o governador João Dória.

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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