Deu-se o seguinte. No último dia 16 de outubro, a trinta dias das eleições deste ano, uma Lava Jato meio moribunda, respirando por aparelhos, mas ainda disposta a fazer alguns estragos, lançou uma nova operação no Ceará.
A denúncia não é nova. Ela é baseada numa delação premiada de Wesley Batista, um dos irmãos Batista que controlam a JBS, que foi divulgada para o mundo em maio de 2017.
O trecho no documento do MPF onde consta essa delação vai reproduzido abaixo (íntegra aqui):
Como se pode ver, Wesley faz basicamente duas acusações: uma referente a campanha de 2010, outra à de 2014. Nas duas, a JBS teria dado recursos para as campanhas de “grupos” ligados a Cid Gomes, em troca do pagamento de dívidas que o Estado do Ceará devia à JBS.
Dias depois dessas denúncias virem a público, ainda em 2017, o próprio Cid Gomes as respondeu, numa coletiva concedida na Assembleia Legislativa do Estado do Ceará, que você pode assistir nos dois vídeos abaixo:
Na coletiva, Cid Gomes explica uma coisa óbvia. O repasse do governo do Ceará à JBS era um direito da empresa. Ou seja, os irmãos Batista não precisavam pagar propina ou fazer doação de campanha para receber esses recursos. Cid observa que, ao fim de suas duas administrações, pagou integralmente as dívidas de seu governo com todas empresas, até porque isso é uma exigência da Lei de Responsabilidade Fiscal.
Cid Gomes nega que tenha pedido qualquer recurso aos irmãos Batista, tampouco autorizou, diz ele, nenhum secretário do governo que chantageasse a empresa. E reitera que seria bem estranho que uma empresa tão profissional como a JBS fosse tão ingênua a ponto de pagar milhões de reais para receber um repasse ao qual tinha direito e que iria receber do mesmo jeito.
Cid conseguiu desmascarar pelo menos uma mentira flagrante na delação de Wesley, a de que a sua empresa teria recebido apenas em 2014, ano de eleição, e que, em anos anteriores, “não recebera um centavo”. Ele provou que o estado do Ceará fez pagamentos que totalizaram R$ 41 milhões, entre os anos de 2011 a 2013. A então procuradora geral da República, Raquel Dodge, admitiu que Wesley havia dito uma inverdade, mas o defendeu, dizendo que ela havia usado uma “figura de linguagem“.
Não há, por enquanto, nenhuma investigação aberta contra o senador Cid Gomes, embora a sua origem tenha sido uma delação (sem provas) que envolveu o seu nome. As buscas e apreensões realizadas dias atrás não foram feitas em nenhum endereço ligado a ele. O que a PF investiga são empresas que, supostamente, teriam passado notas frias para alguma campanha de 2014.
O assunto principal deste post, todavia, não é propriamente este, e sim um episódio lamentável correlato. Um youtuber conhecido por sua militância de esquerda, chamado Samuel Borelli, que produz vídeos contra as violências judiciais perpetradas contra Lula, que posta mensagens em favor da candidatura de Guilheme Boulos, achou por bem publicar um vídeo sobre o caso com o seguinte título:
URGENTE! POLÍCIA FEDERAL CAPTURA CIRO GOMES! PROPINA!
Dias depois, após a militância trabalhista protestar muito nas redes sociais contra um flagrante e repugnante crime de fake news, ele mudou o título para:
URGENTE! CIRO GOMES NA MIRA DA POLÍCIA FEDERAL! IMPORTANTE!
É uma fake news do tipo psiquiátrico, no sentido de que se trata de uma postagem tão descaradamente desonesta, que sugere um desvio de caráter no sentido clínico do termo. Nem o Terça Livre, uma das centrais de produção de fake news mais ativas do bolsonarismo, seria capaz de ir tão longe. Afinal, as notícias não tem nada a ver com Ciro Gomes, cuja última eleição que participou foi em 2006, quando se elegeu deputado federal pelo Ceará. Depois disso, ele só voltaria a disputar eleições em 2018.
É tão bizarro que muitos tendem a desviar o olhar, fingindo ignorar, ou achar que não tem importância, como se pensassem: quem vai acreditar num troço desses?
Não é tão simples. O debate político hoje está tão rebaixado, e surgiram grupos com pessoas tão ressentidas e destituídas de senso de responsabilidade, inclusive na esquerda, que qualquer fake news consegue facilmente circular.
Além disso, e isso me parece um terrível agravante, o rapaz se faz passar por militante de esquerda, participa de sites progressistas, e, com exceção da militância trabalhista, não se notou nenhuma campanha de cancelamento contra o seu banditismo intelectual.
Muitos defenderam, um pouco ingenuamente, que o PDT, Ciro ou Cid deveriam processar o rapaz. É exatamente o que ele quer. Quando uma pessoa produz um fake news tão selvagem como essa, é porque se trata de uma provocação. Não me surpreenderia se houvesse alguém por trás, empurrando-o na direção do abismo, a fim de usá-lo como bucha de canhão (o que não é motivo para desculpá-lo, naturalmente).
A resposta, naturalmente, não é ignorar. Esse tipo de coisa é muito grave, e somente uma militância totalmente corrompida e degenerada poderia tolerar que algo assim não receba o mais absoluto repúdio.
Tenho um pouco de experiência, e lembro-me que, em campanhas passadas, alguns agentes ligados a candidatos conservadores tentavam jogar iscas para influencers progressistas: recebíamos denúncias falsas contra Aécio Neves, contra Serra, a depender do candidato da vez. O seu objetivo era que acreditássemos naquelas denúncias e a veiculássemos em nossas páginas. Mais tarde, as denúncias seriam desmentidas e nossas páginas estariam desmoralizadas.
Hoje, pelo jeito, alguns influencers sequer estão preocupados com a desmoralização.
Influencers políticos são cidadãos que se especializaram em produzir análises, denúncias e conteúdos relacionados a política. A própria lei dos algoritmos torna bastante complicado, para qualquer produtor de conteúdo, evitar a polarização. Na verdade, isso antecede o algoritmo. As pessoas procuram uma identificação. E, portanto, há uma tendência natural do comunicador de se alinhar ideologicamente a algum grupo.
Obviamente isso não é problema. Muito pelo contrário. A chegada dos influencers políticos ajudou a democratizar o debate público, antes monopolizado por meia dúzia de colunistas dos grandes jornais, que fingiam manter uma postura de imparcialidade, mas que estava claro que tinham lado. Hoje temos influencers políticos vinculados a todos os lados possíveis e imaginários do espectro ideológico.
Entretanto, para que a nossa democracia seja preservada, precisamos construir um muro ético em volta de alguns valores fundamentais. Sem isso, não será possível conquistarmos um debate político racional, e sem um debate racional, jamais conseguiremos – pelas vias democráticas – implementar um projeto capaz de nos fazer superar o subdesenvolvimento.
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Numa democracia ideal, utópica, todo cidadão deveria a liberdade de pensar o que quiser, falar o que quiser, escrever o que quiser.
Entretanto, desde que a democracia raiou no mundo antigo, e com ela o direito de nos expressarmos livremente, um grave problema surgiu.
É Montesquieu, no Espírito das Leis, livro que talvez tenha sido a principal fonte de inspiração das modernas leis que regem as nações democráticas, quem explica esse velho dilema:
“Acontece muitas vezes nos Estados populares que as acusações sejam públicas e seja permitido a todo homem acusar quem quiser. Tal coisa fez com que se estabelecessem leis próprias para proteger a inocência dos cidadãos.” (Livro 12, capítulo 10)
Ou seja, desde que os primeiros regimes democráticos ofereceram a todo cidadão a liberdade de ocupar a praça pública e “acusar quem quiser”, foi necessário estalecer uma série de leis para impedir que essa liberdade não se convertesse num dano irreparável a outro cidadão.
Tal preocupação nunca foi tão atual, pois a eclosão da internet e o vigor maravilhosamente anárquico das redes sociais, fazem reviver aqueles mesmos dilemas que angustiaram nossos ancestrais.
Hoje todo mundo pode criar um canal de youtube, uma página de facebook, um blog, construir uma enorme audiência, e… usar esse espaço para falar o que quiser, inclusive caluniar um outro cidadão. Ao cabo, ele é premiado com audiência ainda maior.
No caso do Brasil, temos ainda uma situação particularmente bizarra: após a implementação de uma lei importada dos EUA, que instituiu a delação premiada, um criminoso pode acusar outra pessoa, sem apresentar nenhuma prova, e ainda ser recompensado por isso.
Como os antigos resolveram isso? Ainda segundo Montesquieu, foram criadas leis severas para punir os caluniadores. Em Atenas, o acusador que não provasse sua acusação tinha de pagar uma pesada multa. Em Roma, cujo regime legal sempre foi mais duro, o “acusador injusto era considerado infame, e se imprimia a letra K na sua testa”. A letra K, como o leitor deve imaginar, era a inicial do termo latino Kalumnia, que tinha o mesmo significado que temos hoje: mentira, fraude, falsa acusação.
A bem da verdade, a preocupação jurídica com a proteção da inocência dos cidadãos é muito anterior à democracia, e parece ter nascido junto com as primeiras leis da humanidade.
Quase dois mil anos antes de Cristo, ou séculos antes dos regimes democráticos ou republicanos de Atenas e Roma, o Código de Hamurabi, conjunto de leis que regia o império babilônico, abre com um duríssimo capítulo contra o falso testemunho, ou a calúnia:
“Se um homem acusar outro homem de um crime, e não puder provar isso, então o acusador deverá ser morto”.
E hoje? Bem, hoje, pode-se igualmente apelar para a justiça e pedir a condenação do criminoso. Entretanto, quando falamos de figuras públicas, que dependem da confiança popular para conquistarem cargos eletivos, a calúnia não tem apenas repercussão jurídica: a principal consequência é política.
Entendo que uma parte da militância está muito ressentida por causa das campanhas de destruição de imagem que inúmeras lideranças populares sofreram nos últimos anos, a começar pela maior de todas, Lula.
A solução para isso, todavia, não pode ser emular a mesma postura cínica e desonesta que grande parte da nossa mídia usou.
Não faz nenhum sentido em usar o termo “progressista” (e hoje mais que nunca eu vejo como o uso desse termo denuncia uma postura arrogante, por embutir um autoelogio), e lançar mão de práticas tão espúrias de comunicação.
Enfim, produzir fake news é feio, desmoraliza sobretudo quem as promove, desqualifica o debate político e, com isso, são úteis aos poderosos de sempre, pois esses apenas poderiam ser vencidos através de uma sociedade capaz de organizar um debate político racional e construtivo.
Apregoar em favor da democracia e espalhar fake news é uma contradição repugnante, e espero que, afim de evitarmos novas derrotas políticas para as forças obscurantistas que tanto nos ameaçam, construamos um código de ética bastante sólido e severo, onde tais práticas não sejam, de maneira nenhuma, toleradas.