O mestre da ficção científica Philip K Dick, que a maioria dos internautas deve conhecer por adaptações de seus livros para cinema, tv e streaming, como Blade Runner, Minority Report, O Homem do Castelo Alto, entre tantos outros, tem um conto que diz um bocado sobre o mundo de hoje.
Intitulada O Problema com as Bolhas, a história se passa em algum momento do futuro em que a humanidade, entediada com o tempo livre que a tecnologia lhe proporciona, e muito frustrada por não ter encontrado, até o momento, vida inteligente fora da Terra, mergulha no vício obsessivo por um novo tipo de jogo. São as Bolhas, ou os mundos em miniatura que todos podem comprar e cultivar. Em formato esférico, as Bolhas contém civilizações em tamanho microscópico, que se pode fazer avançar ou retroceder, através de algumas ferramentas disponibilizadas a cada proprietário.
Logo no início do conto, os personagens participam de torneio sobre qual a melhor Bolha, com a civilização mais avançada ou mais bonita, com arquitetura mais elaborada ou vegetação natural mais exuberante.
Terminado o concurso, que acontece em meio a uma festa barulhenta, com muita bebida e uso de substâncias químicas, os usuários entram numa espécie de euforia inexplicável, e quebram suas próprias Bolhas, oferecendo um espetáculo fascinante e monstruoso de destruição.
A coisa gera um debate ético acalorado, pois não se trata de um brinquedo qualquer. Em cada Bolha particular há, de fato, uma ou mais civilizações reais, embora em formato tremendamente reduzido, de magnitudes que vão até o subatômico, e que os usuários podem enxergar e monitorar através de sistemas de visualização que permitem a ampliação indefinida.
Analisando o comportamento da esquerda nas redes sociais, tenho a impressão que estamos vivendo uma situação muito parecida à descrita no conto fantástico de Dick. Cada militante tem sua própria bolha, seu mundinho particular que ele acredita poder manipular a seu bel prazer.
Ele nem sequer parece viver dentro de sua própria bolha. Esses mundinhos são externos. São bolhas que o militante imagina carregar embaixo do braço, ou melhor, no interior de seus smartphones. Ele imagina controlá-la.
Veja o caso das eleições em São Paulo, onde temos um cenário, ao menos por enquanto, bastante hostil às quatro candidaturas de esquerda (ou progressistas, ou centro-esquerda) que tentam uma vaga no segundo turno.
Os dois primeiros colocados na última pesquisa Datafolha, Russomano e Covas, somam 48% dos votos, ao passo que as candidaturas de Boulos, França, Tatto e Orlando Silva somam 22%, ou seja, menos da metade.
Não é um cenário muito promissor para a esquerda. As perspectivas de que Russomano irá desidratar, como ocorreu em outras eleições, podem não se concretizar, por razões simples: Russomano hoje tem mais experiência, mais recall, mais organização partidária, e mais apoio político de cima (leia-se Bolsonaro) do que em pleitos anteriores.
Nas eleições passadas, Russomano ficou espremido pela persistente polarização entre PSDB e PT. Hoje, ele está bastante consolidado num dos lados da polarização, que é o bolsonarismo, e provavelmente terá apoio das organizações evangélicas vinculadas ao seu próprio partido.
E temos Bruno Covas, um prefeito com aprovação razoável, ancorado na máquina política mais poderosa de São Paulo, o PSDB, que tem a prefeitura, a maioria da câmara de vereadores, o governo do estado, a maioria da assembleia legislativa, e conta com o apoio da maioria da grande mídia.
Diante deste cenário, o que fazem os dois candidatos de esquerda Guilherme Boulos e Marcio França, e suas respectivas militâncias?
Atacam uns aos outros…
Sou favorável à demarcação de espaço político, e simpático ao conflito entre partidos, mesmo entre partidos e movimentos de esquerda. Acho que a polêmica beneficia o debate e, portanto, traz mais benefícios que danos ao campo popular.
Não alimento nenhum falso romantismo sobre “união da esquerda” nesse momento, tampouco no futuro. As estratégias são diferentes e se houver união, será orgânica e costurada entre organizações que tiverem, efetivamente, afinidade, como é o caso de PSB e PDT. O que uns entendem por “união” outros entendem como submissão, e o que uns vêem como progressismo ou esquerda, pode ser também ser chamado de sectarismo, oportunismo ou hipocrisia.
A realidade concreta, todavia, para usar uma expressão leninista, é que o eleitor paulistano (e neste sentido, não é diferente em nenhuma outra cidade) não está interessado no debate ideológico sobre quem é mais esquerda ou mais direita. Isso não quer dizer que o eleitor seja despolitizado ou incapaz de distinguir as profundas diferenças ideológicas existentes entre os candidatos. Eles apenas não usam a mesma linguagem. Os termos direita e esquerda nunca se popularizaram no Brasil.
Ao contrário, os termos se tornaram antipáticos à maioria da população.
Em grande parte das vezes, quando esses termos chegam às periferias, aos bairros mais populosos, cujo eleitorado define as eleições nas grandes cidades, o seu sentido é completamente diferente do que pensa o militante ideológico tradicional.
A expressão “direita”, por exemplo, passou a ser associada a tudo que é positivo para o trabalhador: responsabilidade com a família, disciplina no trabalho, preocupação com a ética, ordem, limpeza, assiduidade, intolerância com a corrupção, jogo duro contra a criminalidade. E a esquerda passou a ser associada a tudo exatamente oposto a essas qualidades.
É claro que se o debate for feito no campo semântico tradicional, a esquerda vai perder, como perdeu em 2016 e 2018.
A maioria do eleitorado, no entanto, é favorável a políticas desenvolvimentistas em prol do emprego, a investimentos públicos em educação, saúde e tecnologia.
O brasileiro tende naturalmente às ideologias de natureza progressista, ou de esquerda, em virtude de sua consciência da importância estratégica do Estado para a superação do nosso subdesenvolvimento.
A conquista desse eleitor não se dará através de picuinhas nas redes sociais, com acusações mútuas entre os campos progressistas.
Do lado dos trabalhistas (aqui entendidos como simpatizantes do PDT e de Ciro Gomes), é compreensível a irritação de alguns militantes com o que eles consideram traição ao partido e à causa, por parte daqueles que, mesmo se identificando como trabalhistas ou ciristas, declaram sua preferência por Boulos.
Da mesma forma, pode-se entender o esforço dos entusiastas da candidatura de Guilherme Boulos em martelar a narrativa de que ele é o único candidato de esquerda em condições de chegar ao segundo turno na maior cidade do país.
Ambos precisam botar a mão na consciência para identificar se estão lidando com a realidade política concreta ou apenas brincando com suas bolhas, com seus mundos imaginários.
Essa demarcação de diferenças políticas é muito importante, mas talvez em outro momento. Não sou adepto do argumento do “não é o momento de criticar”, que alguns tanto usam para jogar indefinidamente para debaixo do tapete todas as oportunidades de se fazer um debate franco sobre os erros do campo progressista. Entretanto, a 30 dias das eleições municipais, entendo que o foco de todos os progressistas deveria ser conquistar o voto da grande maioria de eleitores não-ideológicos ou não-partidários.
Ah, mas não podemos apanhar calados! Sim, a solução nunca pode ser o silêncio. Mas diante do prazo exiguo e, sobretudo, da necessidade de furar bolhas e conquistar votos, cada crítica deveria ser usada como trampolim para se chegar a um novo eleitor. Boulos ou algum militante a ele ligado criticou Marcio França? Um militante trabalhista fez elogios públicos a Boulos? Com um pouco de criatividade e verve, tudo isso pode ser convertido em oportunidade para promover as ideias de França.
A mesma coisa vale para Boulos. Se um militante trabalhista faz uma crítica, justa ou injusta, à sua candidatura, a melhor resposta de Boulos deveria ser, igualmente, usar a oportunidade para avançar para fora da bolha da esquerda.
Dito isso, não quero parecer que estou em cima do muro. Me posicionei aqui em favor da candidatura de Marcio França, porque gosto dele, respeito seu projeto de governo, avalio que tem muito mais chances de ganhar um segundo turno do que Boulos, e entendo que a vitória de um partido de centro-esquerda, como o PSB, na maior cidade do país, representaria uma doce vitória contra o bolsonarismo. Ao passo que a vitória de um partido mais radical (inclusive no bom sentido dessa palavra) como o PSOL forçaria um tensionamento político excessivo que acabaria por jogar água no moinho da radicalização bolsonarista.
Mesmo assim, continuo respeitando a candidatura de Boulos, e inclusive entendo que ela tem sua importância no processo de politização do debate eleitoral, especialmente junto à juventude.
Acho que a campanha de Marcio França não deveria entrar no jogo das agressões mútuas contra Boulos, até porque o principal trunfo do candidato socialista é justamente a sua imagem de alguém capaz de diálogo.
Quanto a Boulos e seus militantes, também acho que perdem toda a vez que forçam a barra e apelam para o jogo pueril do “é de esquerda” ou “não é de esquerda”, que apenas irrita a maioria dos eleitores.
Quando agem assim, a esquerda age como os degenerados cidadãos do conto de Philip Dick, que brincam de cultivar suas Bolhas, seus mundinhos próprios, para depois destruí-los.
Não queria dar spoiler, mas o motivo é nobre. Ao final do conto, sugere-se que os próprios personagens, imersos no debate sobre o problema das bolhas, viviam, eles mesmos, numa bolha controlada por algum ser de ordem superior, e que também estaria disposto a destruir o nosso mundo, por diversão pueril.
É uma metáfora incrível: existe um mundo muito além de nossas bolhas nas redes sociais, e o campo popular e progressista, se quiser de fato derrotar o bolsonarismo, deverá entender algumas coisas importantes.
As bolhas que manipulamos em nossas redes são formadas por pessoas bem mais complexas do que imaginamos. Há vida real em nossas bolhas, e isso significa que há contradição. Em nossas bolhas, há pessoas que pensam diferente, que tem direito a pensar diferente, e podemos conquistar ou não seu voto para algum candidato de nossa preferência. Mas as eleições passam, e haverá outras lutas tão ou mais importantes. Nossas bolhas, portanto, devem ser cultivadas com um senso muito grande de responsabilidade. Não podemos, num ato de euforia insana, fazer como os personagens de Dick e esmagá-las ao nossos pés justamente no momento em que elas parecem mais completas e bonitas.
Mesmo importantes, essas bolhas representam um pedaço pequeno do universo real, e devemos ter sempre cuidado de não tomar a parte pelo todo. As bolhas são pequenas. O mundo é grande. O campo progressista precisa parar de pescar apenas nas pequenas lagoas de suas bolhas, e sondar os enormes oceanos que estão aí disponíveis para serem explorados.
Em suma, a 30 dias da eleição, o nosso maior desafio é conquistar voto do eleitor não-ideológico.