Por Wilton Cardoso, publicado originalmente no blog Engenheiro Onírico
Sem dúvida, quando um povo entra em colapso; quando sente esvair-se para sempre a fé no futuro, a sua esperança na liberdade; quando a submissão se lhe afigura de primeira utilidade e as virtudes dos servos se insinuam na consciência como condições de sobrevivência, então há também que mudar o seu Deus.
(Nietzsche, O Anticristo)
O capitalismo caminha para o colapso inevitável
O capitalismo é uma totalidade direcional, uma estrutura que instaura uma evolução determinista em meio ao real indeterminado. Por isso, é impossível “moderar os mercados”, a não ser provisoriamente, como foi o caso dos 30 anos dourados do Primeiro Mundo do Pós-Guerra e seu estado do bem-estar social.
Por conta de sua lógica determinista, as leis tendenciais do capitalismo são inevitáveis e irreversíveis, como a tendência da substituição do trabalho humano pela automação, que baixa os custo e, em consequência, provoca a queda da taxa de lucro por unidade de mercadoria. Daí a necessidade de se compensar essa queda produzindo um volume sempre maior de mercadorias, conjugada com uma maior exploração do trabalho. Isso, por sua vez, deságua em dois problemas: a devastação do meio ambiente e as crises de superprodução, agravadas pelo desemprego estrutural e o baixo rendimento dos trabalhadores superexplorados, que comprimem o mercado de consumo.
A saída encontrada para esta enrascada produtiva foi fabricar, a partir da década de 1980, montanhas de capital fictício, alavancando a economia por meio de dívidas e bolhas. Ou seja, a financeirização não provocou a crise atual do capitalismo, mas foi uma tentativa de administrá-la, relativamente bem sucedida até 2008, quando ela se explicita como uma crise existencial do capital e se espraia das finanças para a economia ‘real’ e daí para as esferas política, moral e subjetiva da sociedade capitalista.
Diante desse quadro de crise estrutural e incontornável do capital, não será o retorno a um Keynes renovado, invenções progressistas como a Moderna Teoria da Moeda (MMT), nem a busca da restauração do estado do bem-estar que vão solucionar o problema. O capitalismo entrou em colapso definitivamente, pois a tendência à automação e superexploração do trabalho se aceleram e as taxas de lucro seguem diminuindo para próximo de zero em todos os setores. Não há capitalismo sem lucro e, por isso, ele vai colapsar como sistema, provavelmente de forma lenta, em décadas.
A incapacidade dos sujeitos perceberem a dominação indireta do capital
E as pessoas, no fundo (no inconsciente), sabem que sua sociedade caminha para o colapso. Do ponto de vista psíquico, o século XXI é marcado pela desilusão, cansaço e falta de perspectivas em relação ao futuro. Mesmo nos países centrais, as pessoas sabem que a tendência é a queda do padrão de vida, os filhos ganharem menos que os pais, o Estado oferecer menos proteção social, diminuírem os bons empregos e cada um ter que se virar como pode no mercado de trabalho massivamente precarizado, uberizado e bazarizado. Esta desesperança difusa desperta nos indivíduos, como defesa psíquica, seus sentimentos mais sombrios, como a angústia, a ansiedade, o medo, o ressentimento e o ódio.
A causa dessa crise existencial do capitalismo são suas pŕoprias contradições sistêmicas e a esperança de Marx e dos marxistas era que os trabalhadores e marginalizados, que são a imensa maioria da população, tomasse consciência dessa situação e promovesse a revolução comunista, que iria instaurar uma comunidade concreta, não hierárquica e autogerida, substituindo a razão instrumental pela razão humanitária, que organizaria uma produção material e simbólica voltada para as necessidades humanas, e não para a reprodução do capital.
O que eles não previram é que a quase totalidade das pessoas, exploradas (perdedores) ou exploradoras (ganhadores), poderiam não ter condições de tomar consciência de que a verdadeira causa da crise é o sistema capitalista, com suas contradições internas derivadas da substituição de trabalho por automação e sua socialização abstrata, concorrencial e individualista.
As pessoas, em geral não compreendem que o sistema mercantil, sua lógica da mercadoria e sua forma sujeito impessoal, vazia e abstrata são a causa de grande parte de seu sofrimento. Esta incapacidade de crítica radical, de ‘ver’ o capital como a raiz da crise existencial de nossa sociedade, decorre da natureza complexa e abstrata da dominação no capitalismo, que não é exercida de forma direta por um grupo social sobre o outro. A dominação, ao contrário, é indireta, exercida por meio da lógica da mercadoria, a lei do valor-trabalho que tem a força quase objetiva de uma “lei natural” (uma segunda natureza) embora seja uma construção social.
As pessoas, em geral, tendem a atribuir a causa dos problemas sociais a indivíduos ou grupos sociais dominantes ou supostamente dominantes. E, de fato, durante toda a história imperial da humanidade, podia-se atribuir o sofrimento do povo a relações concretas entre grupos sociais dominantes e dominados. No capitalismo, porém, a dominação é indireta, pois é exercida pelo capital, um ‘ser’ inumano, cego, impessoal e abstrato. Se na idade média fazia sentido sentir raiva e exigir a expiação moral do clero e da nobreza, que exploravam diretamente o povo, tais reações se tornam inócuas atualmente, pois o capital não é um grupo social (embora as elites o representem) nem uma pessoa, não tem rosto nem moralidade, sentimentos ou caprichos, e é insensível aos afetos humanos.
A primeira dificuldade para as pessoas ‘verem’ a dominação do capital é, portanto, a forma inusitada e inédita (na história humana) em que ela se manifesta, como dominação indireta e abstrata exercida pelo capital/dinheiro, um meio criado pelos humanos que se autonomiza e se torna um fim em si mesmo. Numa reviravolta irônica, o dinheiro, criado pelas pessoas para servi-las, acaba por se servir delas para se multiplicar como mais dinheiro (lucro). Esse modo de dominação, impessoal, complexo, sutil e indireto, vai contra o senso comum das pessoas, que acabam não o compreendendo em sua intrincada totalidade.
A incapacidade dos sujeitos se perceberem como estruturados a partir do capital
Mas há um outro motivo para a dificuldade da tomada de consciência das pessoas em relação ao capital. Um motivo, ao mesmo tempo cultural (coletivo) e psíquico (individual), pouco explorado pelos marxistas em geral e é consequência do capitalismo não ser apenas um sistema econômico, embora se estruture de forma a reduzir a sociedade à economia, e o humano ao valor-trabalho e sua lógica. O capitalismo se constitui, na verdade, como um regime social que abrange todas as esferas da existência humana, inclusive a psíquica. Mais que um sistema econômico, e mais que um sistema social, o capitalismo é uma cultura, no sentido antropológico do termo, em que a esfera da economia (na forma de capital) se torna central e passa a regular as demais, inclusive a esfera subjetiva (psique) dos indivíduos.
Este arranjo em que o coletivo estrutura as individualidades (o homem) de uma cultura não é novidade para a antropologia ou a sociologia. Grande parte das “leis” e “formas” compartilhadas pelos indivíduos de uma cultura são, em qualquer sociedade, construídas de forma tácita e coletiva; e permanecem inconscientes para os indivíduos, que costumam entender essas forças desconhecidas do mundo social como pertencentes ao território do sagrado e/ou da natureza, que lhes são impostas a partir de fora do mundo dos homens e sobre às quais sua vontade e ação, individual ou coletiva, têm alcance limitado.
Com o capitalismo não é diferente e para as pessoas, em geral, a centralidade do capital na estruturação da coletividade e da subjetividade foi construída de forma inconsciente e assim permanece, em grande medida. Na verdade, seu grau de inconsciência, se é que se possa falar assim, é até maior na modernidade do que nas culturas pré-capitalistas, uma vez que a principal dominação social no capitalismo é indireta, exercida pelo capital sobre as pessoas e não por um grupo social sobre outro.
A centralidade do capital (que muitos antropólogos chamariam de ‘fato social total’) se espraia por todas as esferas da vida, inclusive a vida íntima, estruturando, desde o cerne, a psique do indivíduo. Este, em geral, tem pouca consciência de que sua identidade como “homem moderno” é constituída, desde suas bases mais fundas, pelo capital. Ser um homem moderno é ser um homo economicus ― sujeito automático, capital subjetivado ― delimitado e regulado pelos atributos masculinos da racionalidade instrumental e da competitividade, abstraídos do homem concreto das sociedades patriarcais pŕe-capitalistas. Por isso o termo preciso e correto é ‘homem’ moderno (ou pós-moderno), mesmo quando se fala da mulher e sua incorporação (que se luta para ser) igualitária no mundo do trabalho e dos negócios da sociedade mercantil. (Cf. “O capital é masculino” in Gênero, política e sujeito no capitalismo).
A primazia da razão instrumental e da competitividade, abstraídas dos sujeitos concretos (uma mulher ou um negro podem ser racionais e competitivos) e que reduz o humano a caracteres abstratos estritamente necessários à reprodução do capital é o ponto fulcral (o centro) a partir do qual é regido todo o resto da psique moderna. Esta redução da alma à racionalidade instrumental e à competitividade abstratas é a maneira como o capital estrutura a psique desde suas bases, de acordo com suas necessidades.
Então, o maior empecilho para se criticar o capital e suas categorias (trabalho, valor, mercadoria) como causa principal do mal estar moderno e pós-moderno vai além da dificuldade das pessoas em compreender a complexidade e o contra-senso de uma dominação abstrata e impessoal, sem poder culpar grupos sociais específicos. A dificuldade de crítica reside também, e principalmente, no fato de que o cerne da estrutura psíquica das pessoas é o capital, ou seja, a própria subjetividade é formada, desde a raiz, a partir do sujeito automático e seus imperativos abstratos de racionalidade abstrata e competitividade.
Ponto cego: a dificuldade de se criticar o que molda a própria crítica
É a partir do sujeito automático (capital) como base apriorística, como pré-formação naturalizada da psique que molda de antemão os modos de ver e ser do homem moderno, que este vai interpretar e criticar o mundo. É o capital, como centro estrutural ao mesmo tempo coletivo e individual, que pré-determina as subjetividades de modo a delimitar o que elas podem ver e criticar e, principalmente, o que não se pode ver: o próprio capital subjetivado como fonte das perspectivas modernas, como fôrma que pré-molda o homem desde a raiz mas cujo acesso a suas formas e conteúdos são proibidos, ou melhor esquecidos, mergulhados no inconsciente.
Este esquecimento das perspectivas e razões pré-formadas transforma a centralidade, subjetiva e social, do capital num ponto cego para o sujeito, cuja capacidade de compreender e criticar o mundo é moldada a priori a partir do próprio capital. Por outras palavras, a visão de mundo, valores, modo de ser, agir e sentir se desenvolvem no interior dos limites estruturais da forma sujeito, cujo centro (que tudo organiza e dá o sentido inicial e final aos movimentos da psique) é o sujeito automático/capital. Para o sujeito, criticar o capital e sua dominação abstrata significa, portanto, negar sua própria identidade de “homem moderno” e, ao mesmo tempo, renegar sua cultura e seu povo – a modernidade e sua civilização.
As categorias básicas do capital, como trabalho, valor e mercadoria, bem como os imperativos do sujeito automático instaurados a partir da razão instrumental e da competitividade se tornam tabus na sociedade mercantil. A crítica radical (da raiz, do núcleo causal) do capital não é proibida de forma explícita, mas é silenciada por um interdito ainda mais eficaz e poderoso que a proibição ao se tornar impensável e absurda para os sujeitos, destituída de qualquer bom senso e razoabilidade. Quem ousa chamar atenção para a historicidade e as contradições da forma sujeito abstrata, do trabalho, do valor e da mercadoria, criticando as bases apriorísticas do sujeito e da sociedade capitalistas é sumariamente ignorado como um delirante/utopista fora da realidade, não apenas pelas “pessoas comuns”, mas inclusive no meio intelectual e acadêmico, cujos limites permitidos para a contestação da modernidade liberal é o conservadorismo de direita, de um lado, e o progressismo de esquerda, de outro.
Um exemplo desta cegueira é a insistência dos economistas de diversos matizes ideológicos (inclusive os marxistas tradicionais) em confundir as atividades voltadas para satisfazer as necessidades humanas das sociedades pré-capitalistas com a categoria trabalho, uma invenção da modernidade capitalista. As pesquisas historiográficas e antropológicas mostram de forma recorrente a inviabilidade de se reunir as diversas atividades humanas dos povos pré-capitalistas e abstraí-las no conceito de trabalho, operação possível apenas na gramática estrutural da sociedade mercantil regida pela lei do valor-trabalho.
Decorre daí a impossibilidade das culturas pré-capitalistas terem uma economia tal como a entendemos, e muito menos serem regidas por ela. Mercados, estados, trocas, moedas, tudo isso existiu de fato nas sociedades imperiais e cidades-estado, mas seu significado e função eram completamente diferentes até o advento do capitalismo, que fez o mundo girar em torno dos imperativos do valor-trabalho, da mais-valia e da lucratividade, do dinheiro enfim. O que dizer então dos chamados povos primitivos, sem escrita, moeda ou estado, cuja organização e reprodução social apenas com muita imaginação podem ser interpretadas a partir das categorias e conceitos capitalistas como trabalho, mercado e economia?
Ao negar a historicidade das categorias e instituições da sociedadade capitalista, como trabalho, mercado, economia, estado nacional, caipital/dinheiro e forma sujeito (que se consolidaram apenas em meados do século XVIII), os sábios enganam a si mesmos e à sociedade, afirmando que tais categorias são inevitáveis como forma de organização das sociedades humanas em geral. Mesmo nas sociedades primitivas os economistas enxergam um proto-mercado de escambo, teoria que tenta projetar a ordem capitalista no humano em geral e desmentida por várias pesquisas de campo antropológicas. Enxergar a historicidade do capitalismo e suas categorias é (auto)vedado à maioria dos intelectuais acadêmicos e midiáticos, pois vê-la implicaria em questionar as bases liberais (capitalistas) de seus próprio pensamento, constituídas a partir da tradição iluminista.
Apesar de tudo, a crítica radical é possível. E necessária
O capital e suas categorias, a forma sujeito e o sujeito automático são o tabu da sociedade capitalista. São o ponto cego do sujeito moderno e pós-moderno, a face de Deus que nem o homem comum nem o sábio podem olhar de frente, sob pena de enlouquecer. Os que se atrevem a olhar e tentar compreender a face do Ser/Capital e seu mundo/estrutura são tidos como utopistas fora da realidade ou críticos radicais guiados por falsas convicções, mesmo que sua argumentação seja racional e comprovada pelos fatos.
Este ponto cego do capitalismo, que é o próprio capital em sua essência imutável (pelo menos enquanto houver capitalismo) não deixa de gerar contradições no sistema capitalista. Como motor imóvel que movimenta a estrutura, o capital, para se reproduzir e permanecer idêntico a si mesmos (preservar-se como Ser), necessita acelerar a história e a promoção de rupturas técnicas, científicas, políticas, de valores morais, de mentalidades e da vida cotidiana. E como o capital é tempo de trabalho acumulado, ele necessita também servir-se do humano como instrumento para sua reprodução. Esta instrumentalização das pessoas, conjugada com um mundo voltado para o futuro, que nunca repousa e em estado acelerado de mudanças (a tradição da ruptura de Octavio Paz), provoca uma síndrome de Sísifo nos sujeitos, que passam a vida realizando um trabalho intenso e perpétuo sem sair do lugar, sem se realizarem como seres humanos, pois, no fim das contas, o trabalho humano serve à realização do capital.
A esta crise permanente dos sujeitos da sociedade mercantil se somam as crises periódicas da economia capitalista, que provocam carências materiais e explicitam o sofrimento psíquico das pessoas. É por estas frinchas abertas pelas contradições da subjetividade e da sociedade capitalistas, que surge a possibilidade de se ‘ver’ e compreender e, a partir daí, criticar o capital como núcleo comum da psique e da cultura modernas. Muitos artistas, com sua recusa em enquadrar sua atividade estética na categoria trabalho, já vislumbraram o capital e as perspectivas decorrentes da lógica da mercadoria como pontos cegos de nossa sociedade.
Da mesma forma, o Marx da crítica do valor-trabalho fundou toda uma tradição de desconfiança e abalo das estruturas culturais do capitalismo. Tradição que passa por vários marxismos não ortodoxos, como o da Escola de Frankfurt; por um certo pensamento ecológico, como o de André Gorz; por alguns filósofos pós-estruturalistas, como Deleuze e Foucault; e deságua na crítica radical (da raiz, do núcleo) de Moishe Postone e da Nova Crítica do Valor.
Agora que o capital parece se chocar com seus limites internos (desvalorização do valor) e externos (ecológicos) de reprodução, entrando numa fase de colapso, aumentando exponencialmente o sofrimento humano, torna-se mais necessário do que nunca a quebra do verdadeiro tabu do capitalismo, que é o questionamento do capital e sua lógica, em busca de uma outra racionalidade, realmente voltada para as necessidades humanas.
Até mesmo o homem comum, de forma inconsciente, já perde a fé no capital e é tomado pela revolta fascista e seu desejo de destruição sem fim. É preciso encontrar uma alternativa anticapitalista que não sejam o ódio e a irracionalidade suicidas do fascismo, trazendo o domínio abstrato do capital para a consciência e desafiando suas coerções e formas sociais à luz do dia. Está na hora de criticar e, depois, abolir o trabalho, a mercadoria, o dinheiro, lucro, o estado e a forma sujeito, para darem lugar a outras formas e relações sociais, sobre as quais se possa erguer uma sociedade fundada numa razão comunitária (ou comunista). Uma sociedade que satisfaça igualmente as necessidades materiais e simbólicas de todos sem solapar o suporte natural da vida.
É a hora da visão humana dar um salto evolutivo e superar seu ponto cego. A hora de ‘ver’ a face do Deus-Pai decadente e renegá-Lo.