Monstro de duas cabeças

A pesquisa Datafolha divulgada ontem (8) confirma o que as demais pesquisas para a eleição municipal em São Paulo estão apontando: há boas chances de que o segundo turno se dê entre dois candidatos de direita (Russomano e Covas). Caso confirme-se a tendência, será a primeira vez em que a esquerda emergirá das urnas fora da primeira e também da segunda colocação na disputa na maior cidade do país.

Desde 1988 nomes (então) petistas como Luiza Erundina, Eduardo Suplicy, Marta Suplicy e Fernando Haddad ou saíram vitoriosos ou acabaram em segundo lugar. Em 2016 os números evidenciaram a tendência de baixa: Haddad, então prefeito, acabou com 16% dos votos, seguido de perto por Russomano e Marta (13% e 10% respectivamente). João Doria foi eleito no primeiro turno com 53% dos votos.

A debacle petista nos anos recentes é uma das explicações óbvias para o cenário atual. Jilmar Tatto, o ilustre desconhecido candidato da legenda, amarga 1% das intenções de voto no Datafolha, ladeado por candidaturas inexpressivas e/ou caricatas. (O cidadão conhecido como “Mamãe Falei” aparece com 3% na pesquisa.) Medalhões petistas como Lula saíram em socorro de Tatto para evitar a debandada de apoiadores do partido, que migravam em massa para a candidatura de Guilherme Boulos, mas o movimento não provocou qualquer melhora no quadro para o PT.

Os 12% de Boulos no Datafolha não representam exatamente um desastre, considerando que Erundina, sua vice, fez 3% dos votos na cabeça de chapa em 2016. Quadruplicar a votação seria um resultado expressivo para o PSOL, embora seja, evidentemente, muito pouco para o campo que pretende conter o avanço conservador. Caso Boulos vá para o segundo turno e consiga uma improvável (e épica) vitória, ainda assim o cenário não seria lá muito animador: ou a política “purista” do PSOL se impõe e, sem fazer alianças com o centro e a direita, o governo fica nas cordas ou mesmo sofre um golpe, ou Boulos passa a compor com adversários ideológicos para tentar governar e fatalmente gera um racha de proporções paquidérmicas em seu próprio partido.

Márcio França, do PSB, tem melhores condições de vencer um eventual segundo turno e de, caso eleito, governar, por conta do perfil mais moderado (França foi vice e aliado de muitos anos do tucano Geraldo Alckmin). O problema é que sua candidatura vem patinando nas intenções de voto para o primeiro turno – no Datafolha ele tem 9% [correção: 8%].

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Para além das questões locais e partidárias, parece haver um componente mais geral que ajuda a explicar o cenário tão desfavorável para a esquerda.

A ascensão da extrema direita em alguns pontos do globo encontrou uma de suas expressões máximas no Brasil, com o fenômeno tragicamente impressionante do bolsonarismo. Instalada no poder central do país, a ultradireita ainda deve provocar muita dor de cabeça (e outras e excruciantes e variadas dores). A direita mais tradicional, que abarca partidos como PSDB, MDB e DEM, embora tenha sido atropelada por Bolsonaro em 2018, segue muito forte em número de parlamentares e de prefeitos pelo país.

Por isso mesmo Bolsonaro ataca de forma virulenta qualquer liderança que ameace surgir neste campo que é tão próximo do seu. Mas o fato de que a direita está dividida não parece, neste caso, sinal de debilidade, e sim de que está grande demais para caber em apenas um bloco.

Estamos obrigados a acompanhar o deprimente embate entre os explicitamente autoritários e os democráticos de goela; entre os antipovo “populistas” e os antipovo “antipopulistas”; entre os nacionalistas fajutos e os entreguistas disfarçados.

(Se você ficou confuso(a) sobre quem é a direita tradicional e quem é a extrema-direita nas caracterizações, é porque é confuso mesmo.)

Vivemos uma fase meio EUA, onde dois partidos de direita engalfinham-se pelo poder há incontáveis eras, e cujo retrato trágico é a atual disputa entre uma das pessoas mais escrotas do planeta e um senhor que promoverá algo em torno de zero mudanças de impacto positivo para o mundo.

Por aqui, Bolsonaro flerta com o autoritarismo, a violência e o fascismo religiosamente. A mídia tradicional, porta-voz da direita “clássica”, até o critica, às vezes. No entanto, quando o presidente, obrigado pelas circunstâncias, ameaça instituir um mísero programa social, a mesma mídia entra em modo desespero porque o “teto de gastos” não pode ser conspurcado por detalhes como gente sem dinheiro para dar de comer à sua família.

Essa disputa grotesca entre as duas cabeças do monstro para saber qual é a mais cruel e desumana vai, ao que tudo indica, continuar poluindo o cenário político, o debate público (e o ar e as florestas etc.) por algum tempo.

Pedro Breier: Pedro Breier nasceu no Rio Grande do Sul e hoje vive em São Paulo. É formado em direito e escreve sobre política n'O Cafezinho desde 2016.
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