A Lava Jato morreu, mas o seu velório não é tão solitário e triste como deveria ser, agora que perdeu o prestígio e a utilidade para os mesmos setores que a empoderaram.
Ela ainda segue fazendo barulho, derrubando governos estaduais, prendendo prefeitos, desestabilizando setores econômicos importantes.
Ou talvez uma imagem melhor seria a de um morto-vivo, um zumbi, de preferência o tipo sul-coreano, que são mais ruidosos, agitados, espalhafatosos.
Se antes parecia haver alguma inteligência por trás dos movimentos da operação, hoje ela se movimenta por espasmos caóticos. Ainda produz estragos na política e na economia, mas aparentemente o país se acostumou e o mercado precificou.
O livro Espetáculo da Corrupção, do advogado Walfrido Warde, é uma espécie de dissecação desse estranho cadáver, ainda capaz de se movimentar, e de ferir outrem, mas cujo coração já não bate e cujo cérebro não mais funciona.
Muito já se escreveu sobre a operação. Inúmeras teorias de conspiração vieram à tôna para explicar esta situação bizarra: instituições e servidores do Estado, regiamente pagos pelo contribuinte, trabalhando diuturnamente para destruir os setores econômicos mais pujantes e estratégicos do país, aqueles que, concretamente, compunham o pilar de toda a economia nacional, ou pelo menos de suas área mais modernas, competitivas e promissoras.
Nada como um dia após o outro, todavia, e uma contemplação serena e distanciada dos fatos históricos. Em seu livro, Warde nos ajuda a entender perfeitamente como e porque nasceu a operação Lava Jato, e quem foram os atores interessados em seu sucesso.
A tese de Warde é muito sólida, quase marxista em seus fundamentos, e tão ou mais interessante (numa acepção um pouco maligna do termo) que uma boa teoria de conspiração.
Os Estados Unidos, lembra o autor, deram início a um movimento internacional muito conveniente para seus interesses. Quando o poder descomunal do grande capital norte-americano conseguiu neutralizar a maior parte do crime organizado que, até meados da década de 80, com as máfias, ainda exercia influência sobre o Estado, e o lobby passou a ser legalizado no país, os Estados Unidos passaram a patrocinar, usando todo o seu softpower de think tanks, universidades e ongs, uma campanha global anticorrupção, especialmente junto aos países sob sua influência direta. Juízes brasileiros, como Sergio Moro, ganhavam bolsas para estudar lavagem de dinheiro e corrupção nos EUA. Ministros do Supremo participavam de seminários em Washington e Nova York. O ministério da justiça e a polícia federal assinavam cada vez mais acordos de cooperação internacional.
Pressionada pela queda de popularidade, após as jornadas de junho, que produziu protestos monstruosos contra o establishment, a presidenta Dilma Rousseff cede ao lobby norte-americano e sanciona, ao final de 2013, diversas leis de inspiração ianque, para combater organizações criminosas, lavagem de dinheiro e corrupção.
Warde observa que essas leis não eram propriamente uma má ideia, na medida em que davam às instituições judiciais um imenso arsenal para combater, de fato, a corrupção no país.
Entretanto, nos EUA, de onde elas vieram, o grande capital havia legalizado lobby político, o que, de certa maneira, blindava as empresas americanas de serem atacadas por essa legislação.
Implementadas no Brasil sem uma devida regulamentação, essas leis acabaram por dar pretexto a ataques descontrolados contra todo o sistema político e econômico nacional.
E aí entra o interesse norte-americano. Não é nenhuma teoria de conspiração, mas um fato singelo, quase corriqueiro, de disputa por mercados. O Brasil possuía um conjunto de empresas das áreas de construção civil, engenharia e petroquímica, que vinham crescendo num ritmo incômodo para as concorrentes americanas. Com a Lava Jato, todo esse conglomerado de empresas nacionais foi devidamente neutralizado. As poucas grandes empresas nacionais capazes de competir com as melhores de mundo, no mercado internacional de serviços e obras de engenharia, já não existem ou estão enfraquecidas.
“O mercado global é como uma selva, cheio de feras famintas. Não pode sentir cheiro de sangue”, diz Warde, em entrevista exclusiva ao Cafezinho, para explicar como os métodos e a cultura da Lava Jato, como sua hostilidade intransigente aos acordos de leniência, acabaram por destruir completamente as mais importantes empresas nacionais.
Warde faz questão de enfatizar e reiterar que o combate à corrupção é fundamental. Sua crítica à Lava Jato se dá porque ele acredita que os erros cometidos pela operação, sua absoluta falta de compromisso com os interesses estratégicos do país, acabam desqualificando esse combate. Ao final, a corrupção apenas piora, e o saldo é um país quebrado e ainda mais corrupto do que antes.
O livro de Warde prefere não especular com nenhum tipo de culpa ou conspiração, nacional ou internacional. A tese é de que houve uma convergência infeliz de interesses.
Os EUA vem tentando empurrar, há anos, sua legislação anticorrupção para outros países. Encontrou no Brasil um governo debilitado, chefiado por uma presidente insegura (esses adjetivos são meus, não do autor, que é muito diplomático), que morde a isca.
Havia ainda essa ideia, um tanto arraigada dentro do PT (aqui novamente entra minha análise, e não a do livro), sobre a importância da “autonomia” das instituições judiciais.
Lula, Dilma e seus ministros viviam repetindo, como um mantra, que os governos petistas davam “autonomia” à PF, ao Ministério Público, ao Judiciário. Só esqueceram de dar autonomia ao próprio Executivo, que foi sendo cercado, asfixiado, até ser, por fim, degolado, pela “autonomia” dos outros poderes.
A teoria dos federalistas, fundadores do doutrina constitucional americana, nunca foi dar autonomia ou independência a nenhum poder da república, e sim o contrário, de mantê-los sempre sob controle democrático dos outros poderes. Toda a arquitetura institucional do regime visa justamente evitar o que testemunhamos aqui, com a Lava Jato: um poder crescendo desmesuradamente, avançando sobre o outro. Daí que os procuradores da república, nos EUA, são nomeados pelo presidente da república, ou eleitos, o que limita sua autonomia, através dos freios e contrapesos do Executivo e do cidadão.
Quando se estuda a história das constituições, constata-se um fato um pouco insólito. Os partidos populares (que passam a ser denominados “esquerda” após a revolução francesa, mas que existiam desde os primórdios da civilização ocidental) tem essa má fama de adeptos de revoluções, agitação, desordem. Mas é antes o contrário. Não há setor mais apegado à estabilidade, à paz, à ordem, do que o povo mais humilde e seus representantes políticos. Daí que uma das primeiras constituições escritas, a Lei das Sete Tábuas, em Roma Antiga, foi uma conquista dos plebeus, ansiosos por quebrar o poder discricionário dos patrícios, que tinham monopólio das funções judiciais, e limitar o seu poder.
O Código de Hamurabi, que trouxe séculos de estabilidade e prosperidade ao império babilônico, deixava bem claro, desde seus primeiros capítulos, que não admitiria discricionaridade e arbítrio por parte de seus magistrados; e criminalizava severamente o falso testemunho. Aliás, essa é a primeira lei do Código, cuja tradução literal é assim:
§ 1 Se um homem acusa outro homem e lhe imputa um homicídio, mas não pode trazer provas contra ele, o acusador será executado.
A quinta lei de Hamurabi mandava que, em caso de uma sentença considerada injusta, os juízes pagassem, de seu próprio bolso, doze vezes o valor da multa aplicada aos réus, que fossem publicamente destituídos de sua posição de juízes, e que jamais pudessem efetuar julgamentos.
Os dados levantados por Warde, sobre os terríveis danos econômicos e sociais provocados pela operação Lava Jato, frequentemente a partir de sentenças mal formuladas, baseadas em testemunhos duvidosos, provas inconsistentes, e sobretudo, fundamentadas em interpretações altamente subjetivas sobre a tipicação do crime, nos fazem entender porque os formuladores do Código de Hamurabi tomaram tanto cuidado para coibir o arbítrio judicial.