Mas e o Stálin?

Arte: Daniel Caseiro

Em Israel, país com algo em torno de 9 milhões de habitantes, o governo acaba de impor novo lockdown para tentar conter a proliferação da Covid-19. Hoje, 21 de setembro, contabilizam-se 1.256 mortes naquele país por conta da pandemia.

No município de São Paulo, onde habitam mais de 12 milhões de pessoas, temos 12.366 óbitos confirmados em decorrência da pandemia. Esqueçamos, apenas por um instante, que o Brasil não é um dos países com mais subnotificação do mundo, em virtude da baixa testagem, e mesmo assim a desproporção é evidente: se em São Paulo tivéssemos a mesma proporção de mortos em relação à população que em Israel, os paulistanos chorariam por volta de 1.800 mortes.

Por essas contas, mais de 10 mil pessoas morreram sem necessidade apenas no município de São Paulo. No Brasil, temos 136.240 óbitos oficialmente contabilizados.

E o que o presidente do nosso país pensa disso tudo?

Bem, não é exatamente que ele pense: ele delira em público, para delírio de uma parcela alucinada da população. Como por exemplo nesta fala de um mês atrás:

No meu entender, guardando-se as devidas proporções, não vi no mundo quem enfrentou melhor esta cuestão [da pandemia] do que nós [governo federal].

Mais recentemente, há poucos dias, Bolsonaro disse que ficar em casa durante a pandemia, recomendação que é consenso científico, é “conversinha mole” e coisa “para os fracos”.

É um tanto desesperador constatar que a brutalidade genocida do presidente da República se impôs dessa forma sobre o país. Seguimos no patamar altíssimo de mil mortes diárias. Somos um dos países que pior lidou com a pandemia no mundo, exatamente o contrário do que afirmou o presidente.

Agora, enquanto a Europa começa a se preparar para novas quarentenas duras, em virtude da segunda onda de contaminações, por aqui, onde temos uma espécie de onda contínua, considerando que ignoramos os protocolos recomendados, ensaia-se (e coloca-se em prática) uma “volta à normalidade”. Praias, bares, escolas, instituições públicas, todos querem voltar às atividades corriqueiras, e se houve mais contaminações por causa disso, e as consequentes internações, sequelas permanentes e mortes, bem, paciência, está tudo voltando ao normal, não é mesmo?

De repente virou algo “normal” desaparecerem para sempre mais de 130 mil brasileiros (fora os não oficialmente contabilizados).

O que poderia se esperar quando se elege um sociopata para comandar o país, não é mesmo? A pandemia foi a oportunidade perfeita para Bolsonaro e seu séquito de alucinados exercerem sua desumanidade brutal.

Mas e o resto da direita, aquele pessoal que se apresenta no debate público como liberal, democrático etc. etc.? Será que se arrependeu do apoio ao führer tropical? Está fazendo uma autocrítica, um mea-culpa, quem sabe ao menos refletindo, no íntimo de seus pensamentos, sobre suas opções políticas?

Pelo frenesi das últimas semanas, não é o caso. Eles estão preocupados com outra ameaça, esta no âmbito internacional. Poderia ser o terrorismo de Estado praticado pelos EUA nas últimas décadas, as invasões, os golpes, os assassinatos políticos promovidos ao redor do globo. Ou quem sabe uma crítica às ações censórias do Trump, que resolveu proibir até aplicativo de vídeos chinês.

Mas, não esqueçam, estamos falando dos liberais brasileiros, e o que importa, no fundo, é se o Estado autoritário é de direita ou de esquerda. Se é de direita e tem uma fachada democrática, ainda que cretina, está tudo certo, tudo tranquilo. Se é de esquerda, é “ditadura, populismo, censura” etc.

Estão criticando Cuba, então? Ou a China? Também não. A preocupação é com algo incomparavelmente mais terrível do que qualquer ator atual do jogo político global, ou com o genocida que ocupa a presidência da República: precisamos ter cuidado, e combater as perigosas ideias de, ninguém mais ninguém menos que… Josef Stálin.

O professor, youtuber e militante do PCB Jones Manoel, que viralizou por ter influenciado o Caetano Veloso a ser menos “liberalóide”, está atormentando nossos valorosos liberais, que o estão criticando impiedosamente por sua análise sobre o período em que Stálin governou a URSS.

Quem sabe se Bolsonaro e Trump usassem bigode…

Pedro Breier: Pedro Breier nasceu no Rio Grande do Sul e hoje vive em São Paulo. É formado em direito e escreve sobre política n'O Cafezinho desde 2016.
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