Antonio Neto, presidente municipal do PDT em São Paulo e pré-candidato a vice na chapa de Márcio França (PSB)
Todos sabemos que aquilo que se define como liberalismo parte do princípio de que, como colocou Adam Smith (pai deste pensamento e muitas vezes contradito pelos seus próprios percursores), existe um princípio “natural” da tal livre iniciativa que faz com que, a partir da escassez de produtos e serviços, o mercado se autorregule.
Esse mesmo pai do liberalismo também colocava que os produtos existiriam a partir do trabalho, isto é, da quantidade de mão-de-obra posta em cima de uma manufatura para que o produto então se realizasse como mercadoria, desde a sua concepção (produção) até à sua venda (distribuição). Nessa possibilidade constante aberta pelo cada vez maior montante de trabalho embutido nessas trocas estaria a divisão do trabalho, sua complexificação em cada vez mais cadeias produtivas, e, assim, o motivo por trás da tal riqueza das nações, como colocava o teórico na sua principal obra.
Contudo, para os neoliberais, isso não necessariamente ocorreria dessa maneira. Para eles, a oferta e a procura – a tal “mão invisível” – existiriam como algo em si. O trabalho útil como centro da formação valorativa dessas trocas não necessariamente importaria, mas sim a quantidade de determinado produto perante uma certa necessidade desse produto.
O valor do trabalho e a divisão do trabalho fruto da formação desse valor não necessariamente estariam no centro da formação da riqueza. Essa revisão teórica que inverteu a noção de valor objetivo do trabalho foi o que possibilitou o surgimento das teorias neoliberais, que são a base da intoxicação ideológica, na pior acepção da palavra, exportada para fora do império do capital.
Essa nova concepção do liberalismo, fruto dessa desobjetivação do trabalho como categoria central das formações econômicas, carrega consigo, como não poderia deixar de ser, a formação de um novo tipo de Estado. Esse Estado, segundo essa interpretação, não teria que se importar com nada além de assegurar que as trocas ocorressem livremente sem qualquer interferência, pois, desse modo, a “mão invisível” se encarregaria sozinha de colocar em ordem os desequilíbrios do mercado, como a formação de monopólios, por exemplo.
Contudo, como é explícito, não é esse o padrão de comportamento dos Estados nacionais que exportam essa visão sobre o liberalismo. Tal concepção, por sua inversão categórica no conceito central da teoria de Smith (o valor do trabalho), acarreta para aqueles que a executam uma desvantagem tremenda dentro do próprio mercado. As tais “vantagens comparativas” e o conceito monetarista que surgem como políticas econômicas oriundas dessas concepções prendem aqueles que as executam numa espiral de subdesenvolvimento. Em vez de perseguir a complexidade na produção e o consequente desenvolvimento no nível geral das trocas realizadas por um país, ele se adapta à condição que teoricamente melhor lhe serve em determinada conjuntura econômica.
Produzimos soja, ferro e bois, pois temos muito solo fértil e desocupado, e trocamos por máquinas que processam essas matérias-primas, pois, segundo essa concepção a que estamos infelizmente ainda imersos da direita à esquerda, esse é o melhor papel que poderíamos ter de acordo com o nível de desenvolvimento dos outros países. Assim, naturalizamos, nosso papel como o grande fazendão do mundo e aceitamos todos os reflexos políticos e sociais (dar mais poder a quem tem terra, como a bancada ruralista) desse tipo de interpretação sobre a economia.
E é esse o papel que nos foi relegado há mais de 500 anos. E que ainda não mudou e nem mudará se tal acepção do liberalismo continuar como corrente principal, ideológica, da nossa política.
O que precisa ser repetido exaustivamente e debatido dentro da democracia e do Estado é que, mesmo se a “mão invisível” do mercado realmente se autorregulasse, o descompasso brutal entre a renda e a produtividade dos diferentes setores da economia ainda teria origem numa unidade única de valor. E que, portanto, o neoliberalismo como corrente de pensamento só pode fazer sentido como ideologia da mentira.
Vejamos na pandemia o giro “à esquerda” que tivemos em todo o mundo, até mesmo no Brasil de Paulo Guedes, um dos principais nomes dos arautos da ideologia neoliberal que já passou por nossas terras tupiniquins. Auxílio emergencial, uma enxurrada no mercado de títulos públicos, venda de reservas cambiais, juros em baixa histórica, programas de investimento em obras e, agora, vejam só, um apelo aos empresários para que reduzam seus lucros!
A materialidade, meus amigos, como já dizia um certo filósofo, sempre se impõe. Não é à toa que sempre nesses momentos de crise do capital vemos uma retomada brusca das ideias consideradas hoje à esquerda. Jogaram Keynes, o herdeiro mais fiel de Smith, para a esquerda com o objetivo de destruir a soberania dos países. Já imagineram como seria dificultado o caminho para o império se o keynesianismo ainda fosse o mainstream? Por isso, meus amigos, reafirmo a necessidade, não só na teoria, mas na prática, que a política deve ter para a formação de um Estado que realmente olhe pras necessidades de seu povo. Getúlio foi o maior dos nossos presidentes justamente por compreender que é do Estado, eleito, esse papel de ordenar e direcionar o caos criativo da livre iniciativa.
O Estado, por ser político e democrático, com todos os defeitos que a democracia possa ter, tem em sua ontologia a contradição dos interesses do povo. Não a de um ou outro ente privado, mas a soma de todos eles. Sem Estado, como dizem os neoliberais, teríamos a barbárie dos interesses individuais se sobrepondo como lei aos demais. Megacorporações agindo e se unindo em prol de seus interesses monopolísticos contra toda e qualquer formação que as ameace, sejam elas privadas ou públicas.
É nosso dever, portanto, deixar claro que frente a essa concepção de Estado mentirosa, a insatisfação e o consequente confronto organizado por aqueles que ficaram de fora é iminente. Historicamente, o que observamos é uma tendência à radicalização dos setores cada vez mais alijados do poder. Quando a democracia não é democrática, a dialética soberana que resulta dessas contradições acaba alimentando sua própria expressão antidemocrática, retroalimentando-a num processo sem fim como um vírus. O extremismo, portanto, tende a se fortalecer tanto à direita quanto à esquerda, numa polarização que parece não ter fim. É dever dos democratas resgatar a democracia não apenas como palavra de ordem, mas como dever cívico de convivência com o próximo. Antes que a falta dela mesma semeie as sementes de seu próprio fim. E que a unidade do nosso povo em torno de um projeto de desenvolvimento próprio, benéfico para o nosso povo como um todo, fique cada vez mais distante. Antes que seja tarde demais e esse horizonte se perca como um valor de nosso povo até mesmo como possibilidade.
Mesmo diante da farsa, a realidade sempre se impõe.