Os resultados da última pesquisa Datafolha devem ser analisados com equilíbrio. Não há motivo para nenhum tipo de desânimo. Bolsonaro usou a fórmula mais antiga e mais bem sucedida de combate à impopularidade: distribuiu mais de R$ 200 bilhões aos mais pobres, e conseguiu interromper um movimento acelerado de deterioração de sua aprovação popular.
Entretanto, qualquer outro presidente que tivesse feito o mesmo tipo de despesa teria hoje uma aprovação de 90%. Bolsonaro tem 37%. Como foi eleito com aproximadamente 58 milhões de votos, ou 39% de um eleitorado de 147 milhões de brasileiros, este número está dentro do esperado.
Segundo os últimos cálculos, o presidente Jair Bolsonaro já autorizou R$ 254 bilhões em despesas para o Auxílio Emergencial.
Para efeito de comparação, o Bolsa Família nunca gastou mais de R$ 36 bilhões por ano.
Em valores deflacionados, a soma de tudo o que foi pago pela União aos beneficiários do Bolsa Família, de janeiro 2004 a junho de 2020, totaliza R$ 432,5 bilhões.
Ou seja, em quatro meses, o governo Bolsonaro está gastando metade do que o Bolsa Família gastou em mais de 200 meses (17 anos)!
Durante o governo do presidente Lula, a despesa com Bolsa Família, nos anos de 2004 a 2010, totalizou 120 bilhões de reais, em valores já deflacionados (ou seja, ajustados pela inflação). Ou seja, em 4 meses, Bolsonaro está jogando no bolso dos brasileiros mais pobres mais do que o dobro do que o total gasto nos dois mandatos do governo Lula com Bolsa Família, que seria o “maior programa social” da história do país, e um dos maiores do mundo.
Alguns analistas dizem que a oposição tem culpa por não ter “vendido” a população que a decisão de aprovar o Auxílio foi dela, da oposição, porque o governo Bolsonaro queria R$ 200.
Ora, autoilusão não ajuda ninguém. O governo Bolsonaro mandou, de fato, uma proposta de R$ 200, mas provavelmente como estratégia, como quem faz uma oferta baixa num carro usado, já pensando na contraproposta. Ou mesmo que não tenha sido isso, o fato é que o governo aceitou o valor proposto pelo congresso, de R$ 500 por cabeça, e ainda o aumentou em R$ 100. Mães e pais solteiros estão recebendo R$ 1.200,00.
O número de famílias acessadas também cresceu de maneira exponencial. Enquanto o Bolsa Família nunca chegou a mais de 20 milhões de famílias (o que o faz, como já dissemos, um dos maiores programas de renda mínima do planeta), o Auxílio Emergencial já foi distribuído para 65,2 milhões de pessoas (diferentemente do Bolsa Família, que aceita apenas um beneficiário por unidade familiar, o Auxílio aceita dois). Segundo o governo, o total de pessoas direta ou indiretamente beneficiadas pelo programa (via dependentes, como filhos, etc), chegou a 124,2 milhões de pessoas, ou 58% da população brasileira.
A pandemia deu oportunidade a Bolsonaro para driblar, via Auxílio Emergencial, todos os – até então intransponíveis – obstáculos ideológicos antepostos às ações do Estado para combater a pobreza, em especial a programas deste tipo, de renda mínima. Afinal, diante de uma tragédia sanitária sem precedentes, que jornal, que canal de TV, que partido, se posicionaria contra a distribuição de uma ajuda emergencial às famílias que se viram, subitamente, destituídas de renda em função das próprias medidas do governo de isolamento social?
Os mais velhos se lembram das críticas ácidas que se levantaram contra o Bolsa Família durante os primeiros anos de sua implementação. A oposição ao PT ficou, durante muito tempo, completamente refém de seu posicionamento inicial. Em todas as eleições seguintes, o PT levantaria o fantasma do “fim do Bolsa Família” como uma de suas principais armas para derrotar seus adversários.
Esse erro a oposição de hoje não cometeu, ao menos, já que não apenas jamais marcou posição contra o Auxílio Emergencial como foi, em verdade, sua principal idealizadora. Será difícil, hoje, Bolsonaro vender a seu eleitorado que a oposição (de esquerda ou não), caso eleita, seja o carrasco dos programas de renda mínima existentes hoje no país, sejam eles o Bolsa Família, o Auxílio Emergencial ou qualquer outro que venha a substituí-los.
Mesmo assim, a oposição de hoje deve estar sentindo, na pele, uma sensação parecida à que sentiu a oposição ao PT quando o Bolsa Família começa a produzir efeitos econômicos de grande escala junto às camadas mais pobres da população.
Quanto à pesquisa propriamente dita, a análise por renda e escolaridade mostra recuperação de Bolsonaro em todas as faixas, mas a mudança mais impressionante foi a observada entre as famílias mais pobres e menos instruídas.
Entre as famílias com renda acima de 2 salários, houve uma recuperação aos níveis de abril, no início da pandemia. Por exemplo, entre aquelas com renda entre 2 e 5 salários, tanto a aprovação como a rejeição em agosto são praticamente as mesmas de abril. Já entre as famílias com renda entre 5 a 10 salários, os níveis de aprovação permanecem bem piores do que eram em dezembro.
A novidade maior, todavia, está entre os mais pobres, entre os quais a aprovação do governo Bolsonaro atingiu um nível até então nunca visto desde o início de seu mandato: 35% de aprovação. A rejeição de Bolsonaro também atingiu um mínimo, de 31%.
Números igualmente impressionantes são vistos entre os eleitores com instrução até o ensino fundamental, que representam a maioria da população. Segundo os dados do TSE, os eleitores classificados como “analfabetos, ensino fundamental completo, ensino fundamental incompleto, e ensino médio incompleto” totalizam quase 80 milhões de eleitores, ou seja, mais da metade do eleitorado. Eleitores com ensino médio completo representam 23% do eleitorado, e com superior completo ou incompleto, 14% do eleitorado.
Entre eleitores com até o ensino fundamental, a aprovação positiva do governo Bolsonaro atingiu 40%, o maior índice desde o início de sua administração, ao passo que sua rejeição caiu para 27%, o menor patamar desde o início de seu governo.
A explicação seria principalmente o Auxílio Emergencial, mas também um fator de psicologia coletiva que faz as populações mais vulneráveis apoiarem o governo em momentos dramáticos: guerras, tragédias, pandemias… Esse fator é poderoso e tem uma explicação perfeitamente racional: diante do perigo, a população intui a importância da estabilidade política. A metáfora do avião aqui vale perfeitamente. Por mais antipatia que sentimos do piloto do avião, se a turbulência está forte, tudo que desejamos é que ele se mantenha firme no comando.
Analistas e observadores experientes, como os cientistas políticos André Singer e Rosana Pinheiro-Machado, já antevêem uma mudança “química” na base de apoio do governo, com a perda de setores da classe média compensada pelo aumento da aprovação junto às famílias mais pobres.
Quanto às estratégias da oposição, eu acho que ela tem se portado com a dignidade e o comedimento adequados num momento tão dramático da vida nacional. É claro que sempre se pode afirmar que se poderia fazer mais, e eu mesmo tenho milhares de críticas às suas omissões, mas são as mesmas críticas que faço há muitos anos: sobretudo, falta de investimento em inteligência e em comunicação.
Por outro lado, tempos de guerra são sempre difíceis para oposição, pois o próprio desespero ajuda a sustentar a aprovação do governo. Com quase todas as empresas do país experimentando enorme risco de sobrevivência, diante da perspectiva de uma queda no PIB superior a 10% este ano, seus administradores ficam triplamente temerosos em se posicionar contra o único ente que lhes pode ajudar: o governo federal.
A situação precisa se acomodar um pouco, sobretudo com a chegada da vacina contra a Covid-19, para que se possa avaliar a real aprovação de Bolsonaro, mas eu arriscaria que ela é menor do que esses números indicam.
O posicionamento criminoso de Bolsonaro durante o auge da pandemia no Brasil, na contramão das lideranças responsáveis de todo o mundo, já cobrou seu preço. O presidente perdeu o respeito da comunidade acadêmica e científica, ou seja, da elite intelectual do país, e isso não tem volta.
Isso não quer dizer que Bolsonaro não possa se reeleger em 2022. Ao contrário, acho que ele ainda é o favorito, sobretudo porque a sociedade civil ainda não teve tempo e condições para se reorganizar. Mas até 2022 muita água irá rolar por debaixo da ponte.
Em relação às estratégias da esquerda, ou da centro-esquerda, tirando as críticas de sempre que já expliquei acima, acho que os partidos vem trabalhando com inteligência e energia acima da média. Diante das barreiras naturais criadas pela necessidade de distanciamento social, a oposição de esquerda vem fazendo um trabalho bastante razoável nas redes sociais.
A superioridade enorme que havia na direita, em matéria de mobilização pelas redes, se diluiu completamente. Nos últimos tempos, a esquerda vem emplacando vídeos, posts e hashtags com tanto ou mais sucesso que a direita.
Os blogs, canais de youtube, contas de twitter, da esquerda, tem apresentado excelentes performances, comparativamente falando. Há dois anos, por ocasião da eleição de Bolsonaro, a esquerda não tinha tanta atividade, e o bolsonarismo era bem mais fortes nas redes.
Isso não quer dizer que o bolsonarismo não permaneça forte. Quando observamos as taxas de interação de algumas lideranças políticas da direita bolsonarista, como os deputados federais Capitão Wagner (Pros-CE), ou Carlos Jordy (PSL-RJ), não há como negar a força do presidente. Mas a força destes agora está concentrada em cada vez menos quadros.
Entretanto, talvez um ajuste que precise ser feito seja tirar a ênfase nos discursos contra o “fascismo”, já que a população mais pobre dificilmente entenderá o que isso signifique. A denúncia contra o autoritarismo precisa ser feita, mas com uma linguagem menos acadêmica.
A pregação de uma “unidade”, por sua vez, também precisa ser devidamente equilibrada com o senso prático: a unidade, para ser possível, precisa ser costurada organicamente, com cuidado. É preciso construir espaço para a construção de unidade pontual em ações específicas. Para o objetivo de vencer Bolsonaro, porém, a preservação das diferenças e identidades próprias é tão importante quanto a unidade.
Também é preciso respeitar o ritmo natural da política. A oposição precisa construir núcleos duros de opinião, que sirvam de “nós” de redes ainda a serem amadurecidas.
O ideal seria a constituição de vários núcleos duros de oposição, que podem a vir a formar uma rede unida programaticamente no futuro: os liberais não-conservadores, os comunistas-socialistas, os ambientalistas, os petistas, os trabalhistas, os independentes, os anti-Bolsonaro, e por aí vai.
Entretanto, o mais importante é não perder o foco. Críticas são necessárias, mas elas precisam ter foco. Acusar a oposição de maneira genérica por inação, mesmo sabendo que a oposição está trabalhando com bastante energia, ou pedir uma unidade impossível, mesmo consciente de que há formações de alianças onde estas são possíveis, não ajudam a construir uma estratégia eficaz contra o governo Bolsonaro.
Em suma, a recuperação de Bolsonaro era inevitável, depois do governo despejar mais de R$ 200 bilhões na conta dos mais pobres. Importante ressaltar que o aumento do prestígio entre os mais pobres frequentemente se espraia para as classes superiores (aconteceu a mesma coisa na era Lula), porque o benefício aos mais pobres beneficia todo o coletivo. O clima social melhora, e a aprovação do governo, automaticamente, também melhora.
Os prognósticos para os próximos anos, contudo, são sombrios, justamente por conta do endividamento gigante provocado pelo Auxílio Emergencial, e dificilmente o “clima social” permanecerá positivo. As contas estouradas das administrações municipais, estaduais e federais deverão desatar uma guerra federativa de grandes proporções, e se o governo Bolsonaro mantiver sua tendência de jogar a culpa nos outros, perderá o apoio que ainda tem, hoje, dos municípios, que foram beneficiados tanto pelo Auxílio Emergencial quanto pelos repasses extraordinários aprovados pelo congresso.
À oposição caberá manter a postura mais equilibrada possível, de maneira a driblar os esforços de Bolsonaro para descrevê-la como “irresponsável”. Isso ela vem conseguindo. O seu maior desafio, a meu ver, não é “unidade” e sim romper o isolamento natural de toda oposição, que não tem a visibilidade proporcionada por quem está no poder. Esse é o maior trunfo de Bolsonaro.
O problema político da oposição, portanto, não é a popularidade do presidente, e sim entender porque ele foi eleito, já que toda a força de Bolsonaro hoje deriva do fato dele ter sido eleito por quase 58 milhões de votos, e não de seus números no Datafolha. Se conseguir entender porque Bolsonaro foi eleito, a oposição, e, mais especificamente, a esquerda, poderão construir estratégias eleitorais objetivas e consequentes, tanto para as eleições municipais deste ano, quanto para as eleições gerais de 2022.