A autocrítica de Mujica: a esquerda criou consumidores, e não cidadãos; a culpa é nossa

O ex-presidente do Uruguai, Pepe Mujica. Foto: YouTube/reprodução.

Em entrevista ao jornal argentino Infobae, o ex-presidente uruguaio Pepe Mujica falou da situação das esquerdas na América Latina e o futuro da região.

Mujica é uma das lideranças progressistas da América Latina que melhor resistiram às guinadas à direita que por que a região passou nos últimos anos.

Com frases que passaram por declarações como “as direitas se juntam por interesses e as esquerdas lutam entre si por ideias” e “tiramos muitos da extrema pobreza, mas não os transformamos em cidadãos, transformamo-lhes em consumidores”, a conversa foi repleta de sinceridade e críticas contundentes da parte do ex-presidente.

Leia alguns trechos abaixo.

Infobae: Ao longo das conversas com Nicolás Trotta (atual ministro da Educação da Argentina, e jornalista), você, muito crítico, caracteriza a esquerda latino-americana como ingênua e preconceituosa. Por exemplo, na relação com o exército. Que falta para “dar o salto”?

Pepe Mujica: Ah, não sei. Digo o que penso. Mas também é uma frente de batalha que tem que vencer. E se a interpretação é vaga e estereotipada, estou presenteando o adversário. Não é inteligente: na porrada não se ganha nada. Ganha-se persuadindo e com atitudes coerentes. Dá um pouco mais de trabalho, porém é como aprenderam os índios do pampa a domar, segundo conta Martín Fierro, não? Não domavam com paus e porretes, mas escolhiam os melhores animais e lhes iam acariciando. Demoravam muito, mas o cavalo terminava sendo um amigo. Eram mais inteligentes os indígenas que os espanhóis. Em relações humanas, também é assim.

Infobae: Por que a esquerda e o progressismo só ficaram de pé na América Latina durante tempos favoráveis e a inesperada receita dos preços de commodities?

Pepe Mujica: Os tempos favoráveis foram uma circunstância, mas não nos trouxeram tanto. Era o que vinha passando. A gente buscou uma opção, uma esperança, uma ilusão e a podemos concretizar em partes. A gente segue prisioneira de sua cultura e as sociedades contemporâneas nos transformaram em consumidores viciados. Os de tua idade se apaixonam e saem a passar e vão ver as vitrines do shopping. Não dá para acreditar o grau de domesticação que nos impôs a mercadoria! Nesse mundo, a pobre criatura humana pede mais, mais e mais. E isso é menos, menos e menos. Então, tiramos muita gente da extrema pobreza, mas não lhes tornamos cidadãos: tornamo-lhes melhores consumidores. Essa é uma falha nossa. Temos que assumí-la e dizê-la com clareza para os que vêm na mesma trilha sejam mais perspicazes que nós. Sabe o que é chegar ao governo? Ter uma barra que já está pensando no próximo governo. Isso é tudo um desgraçado curto prazo. Fazíamos discursos sobre a integração da América, mas depois estávamos com os problemas cotidianos e o que menos fazíamos era integração. Essa é uma dívida pendente.

Infobae: No tempo da ALCA (Área de Livre Comércio das Américas, iniciativa que visava estabelecer uma região alfandegária comum às Américas do Norte ao Sul), quando Hugo Chávez (ex-presidente da Venezuela) e Nestor Kirchner (ex-presidente da Argentina) diziam “Alcarajo”, Uruguai, tendo o senhor como ministro, vendia carne aos Estados Unidos. Pode-se organizar a economia a partir de um ponto de vista ideológico? Ou se deve ter pragmatismo o suficiente para se sustentar?

Pepe Mujica: As sociedades contemporâneas não têm piedade e os negócios são negócios. São como o sangue, como o oxigênio. Pelas demandas da sociedade deve-se implementar a política mais inteligente para resgatar a maior quantidade de valor possível. Por que gostamos? Não, porque a realidade exige. Falas sobre os Estados Unidos. depois apareceu o monstro chinês que não alcançava nada. Capaz de amanhã ser a Nigéria: em 2050, terá tanta população quanto a China; não sei o que acontecerá. Por isso, é determinante que se tenha uma posição muito aberta. Não podemos conseguí-la — não por mim; sou um velhinho de um país pequeno — porque éramos muito progressistas, mas em alguns momentos havia muito sectarismo. Creio que devemos juntar o que temos e tratar de unirmos o que existe, porque se esperarmos para juntarmo-nos com os que gostamos, juntaremo-nos no dia de São Nunca enquanto somos uma folha ao vento porque não decidimos nada para o mundo. Por isso fui com o senhor Piñera à Antártida. Estava ideologicamente alinhado a Piñera? Não! Mas me dava conta de que era importante. Por isso ajudei em tudo que pude o presidente da Colômbia a alcançar o sonho da paz na Colômbia. Tratei de me movimentar com essa lógica, mas têm me criticado bastante por ser tão aberto.

Infobae: A utopia da esquerda unida desagua em um monte de partidos e correntes. O sectarismo é o grande problema da esquerda?

Pepe Mujica: O problema da esquerda é congênito. Franco morreu na cama porque a esquerda se dedicou muito mais à luta interna que a enfrentá-lo no momento adequado. Hitler chegou à presidência porque os queridos companheiros socialdemocratas e os queridos companheiros comunistas se dedicavam a brigar entre si antes de frear o outro. Desde a Revolução Frances, é quase uma lei. E parece que não aprendemos. As direitas se juntam por interesses, e as esquerdas lutam entre si por ideias.

Infobae: Que tem a esquerda para aprender com a direita?

Pepe Mujica: Os termos “esquerda” e “direita” são próprios da Revolução Francesa, mas creio que sejam atitudes de olhar a vida tão velhas quanto o Sapiens sobre a Terra. Sempre há uma atitude conservadora e uma atitude solidária de mudança que se expressam de acordo com os valores da época. Agora, quando o que chamamos de “esquerda” opina demais, cai-se no sectarismo, dogmatiza-se. Só se cai no infantilismo, em confundir desejo com realidade. A direita conservadora também cumpre uma utilidade porque não pode viver mudando a cada momentinho. Mas quando refina demais seu conservadorismo, cai no reacionário, no fascistoide. Esses dilemas estão permanentemente no ser humano.

Infobae: Por que acabou a era do progressismo na América Latina?

Pepe Mujica: Porque está tomando ar. Está ofegante. Precisa de mudanças geracionais. Entramos em uma era digital. Agora vêm as máquinas que pensam, é todo um acontecimento. Teremos que fazer as máquinas que pensam pagarem impostos. Virão lutas de outros tipos e esse duelo continuará porque é uma oscilação constante da humanidade.

Infobae: O Uruguai pode se converter em um modelo de alternância democrática, de educação, de inovação tecnológica, de produção agropecuária para a América Latina?

Pepe Mujica: É um país pequeno que pode fazer coisas que são difíceis para um país grande. Desse ponto de vista, é uma boa oficina de experimentação humana. Que seja conservador não é necessariamente mal. Somos bastante hábeis para trabalhar mas não nos matamos muito de trabalhar, trabalhamos o necessário. É um defeito? Talvez. Eu estive no Japão e os admiro, mas não gostaria de viver no Japão. Por isso não me preocupa que sejamos modelos. Sabe o que me preocupa, irmão? Que a gente viva feliz! Que isso que se chama “a aventura da vida”, que se vai à merda tão rapidamente quanto o trote do cavalo, viva-se com felicidade e sem ferrar aos outros. E que quero dizer à gente que não se precisa estar coberto de riquezas nem de muitos carros nem de luxos nem de nada por estilo. Necessita-se tempo para cultivar os afetos, as relações humanas, as coisas queridas, as pequenas coisas da vida que não têm preço. Eu dou uma importância brutal à batalha cultural. Se não mudarmos isso [aponta com a mão para a cabeça], não muda nada.

Redação:
Related Post

Privacidade e cookies: Este site utiliza cookies. Ao continuar a usar este site, você concorda com seu uso.