ou O MERCADO EPISTÊMICO E O VALE-TUDO DAS SUAS LUTAS CONCORRENCIAIS
Li hoje, desgosto, os textos do cancelamento/linchamento da Lilia Schwarcz pelos identitários negros. Os termos dos decretos de cancelamento são repugnantes: autoritários, ofensivos, humilhantes e, vejam só, frequentemente racistas. Fico triste e envergonhado.
Se, pelo menos, ainda fosse justa a indignação, por ter a Lília escrito um texto racista ou ofensivo, ainda assim ficaria envergonhado pelos termos do cancelamento, mas compreenderia. O pior de tudo é que não, não há nada de errado com o artigo usado como desculpa para linchar.
Vamos ser francos de uma vez por toda. Pelos termos do cancelamento, não se trata meramente de uma luta por superioridade moral, como se costumava penas, mas simplesmente de uma disputa mesquinha pelo “mercado epistêmico” dos temas da questão racial, entre certos negros que pretendem o seu monopólio exclusivo e, para tanto, desejam eliminar a concorrência das outras pessoas que falam e discutem os temas por serem especialistas neles ou simplesmente porque se interessam pelo assunto.
Notem duas coisas a este ponto do argumento: 1) Os que querem o monopólio dos temas não são todos os negros (ou o “povo preto” (sic), mas apenas o que pretendem ter os certificados de Autênticos Representantes e Vozes Autorizadas. Os outros negros que não se atrevam a negar-lhes o direito de falar em seu nome, pois arriscarão a serem, eles próprios, excluídos, como se arrisca, mais uma vez, este escriba.
2) Todos os outros títulos e predicados que antes autorizavam as pessoas a falar sobre “temas negros” – formação acadêmica, interesse cultual, empatia etc. – foram unilateralmente cancelados. Só Negros Autorizados™️ podem dizer qualquer coisa sobre qualquer negro e seus problemas
Engraçado é que só percebemos esta luta pelo monopólio epistêmico quando há essas escaramuças que vemos nos cancelamentos, linchamentos e assédio digitais. Para os atacantes são chances de melhor se posicionarem no mercado epistêmico: quem mais lacrar e mais humilhar mais acumula capital. E ai dos atacados, que são vítimas, mas nem isso podem alegar uma vez que são “as vítimas ontológicas” os que lhes arrancam pedaços da reputação, eventualmente empregos e vida, enquanto choram pela opressão estrutural.
É luta por acúmulo de autoridade em termos de raça e cultura. Capital que depois vai render no mercado de palestras, livros, produtos culturais, posições acadêmicas, convites internacionais, empregos na mídia, cargos no governo, autoridade. O mercado epistêmico é um mercado como qualquer outro, claro, mas não pode aparecer assim e precisa se camuflar como disputa moral pela superioridade no horizonte dos valores. Creia!
O que me assusta é a enorme complacência e cumplicidade da esquerda na tentativa de tornar nobre aquilo que, no fundo, é um discurso e um comportamento muito mais próximo do autoritarismo que da democracia. É um filo-fascismo sem oposição dos antifascistas. Lamentavelmente.
A própria Lilia Schwarcz, em seu mea culpa, aceita, cúmplice, uma por uma das premissas dos que a atacam lutando por monopólio no mercado epistêmico. Não as examina, não as discute, nada. Renuncia docilmente ao exame racional das alegações e aceita dogmaticamente que quem a ataca tem razão.
Lilia Schwarcz é racista? Não me parece possível. O seu texto é racista? Não me resulta. Por que, então, aceitar as acusações de racista e as descomposturas em que se lhe acusa de ter exorbitado por ter falado sobre o que está proibida de falar, já que não é da raça monopolista do tema? Ora, é muito simples. Porque Lilia Schwarcz é de esquerda. Na sua estrutura mental, ela não pode desafiar o dogmatismo, o autoritarismo, o dedo na cara e a interdição quando vem dos oprimidos. Tem que aceitar, pedir desculpa, jurar que não fará de novo. A esquerda se comporta diante dos autoritários da luta identitária como pessoas inteligentes quando querem que casamentos deem certo: pedem desculpas até quando sabe que não está errado. Não desista ainda de mim, posso melhorar.
Claro, os identitários não são bestas. Não cancelam nem lincham os racistas, a direita conservadora. Sabe que os seus ataques seriam inúteis contra Sergio Camargo, Olavo de Carvalho ou Weintraub, que vivem de provocá-los só para ver se vem algum ataque de massa para colocarem no currículo. Os identitários atacam justamente onde podem machucar, ou seja, pessoas de esquerda ou pessoas com empatia.
Afinal, ninguém pode difamar uma outra pessoa se o atacado desejar a “fama” que se quer imputar-lhe. Sergio Camargo vai adorar que identitários lhe chamem de racista, vai printar e colocar na parede. Já Lilia… bem, Lilia vai pedir desculpas e dizer que aprendeu a lição. Triste isso.
Sereno
12/08/2020 - 07h17
Lindo, e o corajoso nem assina o texto. Vai a m***
Redação
13/08/2020 - 17h15
Como assim? O nome do autor está no título?
Janio
12/08/2020 - 07h16
Este texto chega a ser pior que o de Lilia Schwarcz… Será que os “identitários” só querem isso, o monopólio do discurso? Será que os “identitários” não atacam a direita? … Agora, o velho monopólio que coloca Lilia Schwarcz para falar sobre Beyoncé na Folha este parece não ser nenhum problema….Poupe-me com estes lixos discursivos.
Alex
06/08/2020 - 12h05
Na verdade a sacanagem foi da editoria da Folha, que deu destaque a uma passagem que é menor no texto da Schwarcz. A única crítica que ela fez foi a reutilização do estereótipo da África como savana selvagem “pura” como fonte de sua realeza – mas o texto é todo elogioso. O que não falta, infelizmente, é oportunismo editorial pra criar uma polêmica desnecessária e oportunismo de quem não perde a oportunidade de crescer sobre a difamação alheia.
Paulo
05/08/2020 - 17h43
Quando a esquerda introduziu no Brasil a “questão identitária”, eu já previa o acirramento dos debates e a divisão progressiva do povo brasileiro. Acabarão dando razão a Sérgio Camargo, realmente. Aliás, esses dias ele disse algo apropriado a respeito do movimento americano BLM: “a esquerda americana usa o povo negro como massa de manobra”. E o pior é que queremos importar isso, sem nem mesmo traduzir a frase para o vernáculo, pelo que percebi naquelas pífias manifestações de junho…
Dinarte Araujo Neto
05/08/2020 - 16h42
Excelente e arguta argumentação sobre a manipulação de discursos do mercado epistêmico entre os que se arrogam ´autorizados´ (?) pra arrancarem nacos da reputação de gente que ainda tem reflexão e consciência social. Todos conhecemos estas invectivas de onde menos esperávamos, o fogo-amigo. Será que os autorizados em temas da raça negra são competentes de diploma legalmente constituído pra se arrotarem na bazófia autoritária?