No passado, durante as ditaduras, a reação judicial antiautoritária era individual e sobre estes juízes que se rebelavam exercia-se um controle que variava entre a marginalização e desmoralização à exclusão da carreira, com as cassações famosas à época do AI5.
De 89 em diante, as coisas começaram a mudar, na esteira da promessa de democratização. Se no Estado Novo e na ditadura empresarial-militar de 64 os juízes em geral oscilaram entre a neutralidade e a aberta adesão ao autoritarismo, os ventos democráticos inspiraram novas práticas.
A experiência das perseguições, no entanto, ensinara a respeito da fragilidade da ação isolada, embora meritória, simbólica e, em várias ocasiões responsável por salvar vidas e assegurar a liberdade dos dissidentes perseguidos.
No novo período democrático era essencial reunir e organizar os vários juízes e juízas que se comprometiam a realmente fazer valer a Constituição de 1988 e os tratados internacionais de direitos humanos. Essa magistratura democrática, inédita como corpo social, ecoava iniciativas do gênero em outros países que transitaram de ditaduras a democracias, como Espanha e Itália.
Este é o contexto do surgimento de associações como a Associação Juízes para a Democracia (AJD), o Movimento da Magistratura Fluminense pela Democracia (MMFD) e congêneres. Com a emenda constitucional 45/04, e a criação do CNJ, estas instituições, que haviam acumulado saberes, tornaram-se “pedra no sapato” nas permanências autoritárias incrustadas nas diversas Justiças.
O controle pseudodisciplinar exercido pelos órgãos de cúpula do Judiciário revelava-se agora insuficiente para impedir a disseminação de juízes e juízas que denunciavam privilégios, como o nepotismo, e praticavam uma jurisdição de fato comprometida com os valores da Constituição.
Certo é que a estratégia de neutralização individual prosseguiu e ainda é realidade. Mas a esta estratégia somaram-se ao menos outras duas, igualmente arbitrárias: a criminalização da magistratura e a tentativa de inviabilizar as novas associações.
A «caixa de ferramentas» autoritária adequou-se aos novos tempos. Fazer cessar a voz divergente, desmoralizar juízes e juízas fiéis à Constituição da República e aos tratados de direitos humanos, persegui-los na carreira, opor obstáculos de toda ordem ao aperfeiçoamento converteram-se no novo mantra das velhas elites.
Hoje está em curso uma batalha nada surda, travada em vários campos, em processos administrativos e criminais, nas redes sociais e na comunicação social tradicional, em que se destaca a assimetria de forças entre os litigantes.
Todo poder disponível em mãos de herdeiros dos autoritarismos, como a eles se referia Leonel Brizola, é empenhado e empregado para dizimar associações de juízes e juízas pela democracia, «exemplar» seus líderes e dissuadir os demais a resistir aos desmandos que hoje se mostram a olho desarmado.
O mundo, no entanto, não é mais aquele em que se desterrava Olga Benário, com manifestações sarcásticas de ministros do STF, sob aplauso da mídia. E os juízes e juízas pela democracia também não estão sós. Se antes coube aos advogados e advogadas, Raymundo Faoro à frente, lutar pelo fim da censura, a readmissão ampla do habeas corpus e o retorno à democracia, hoje há juízes e juízas organizados que sabem o preço de fazer valer direitos individuais e sociais.
A ABI e a OAB formaram na frente pela democracia entre 68 e 85. Nesta foto não se via magistrados. Hoje eles e elas estão na fotografia da defesa da liberdade e de vida digna para todos. Associados entre si, com as demais instituições de tradicional defesa da democracia e com um universo cada vez mais amplo de pessoas dispostas a lutar contra o arbítrio, no Brasil e no exterior, estes magistrados conhecem os dissabores de defender o justo em sociedades desiguais.
À atualização do arsenal repressivo reacionário a sociedade autenticamente democrática responde com o repertório da competência técnica de seus juízes e juízas, sua qualidade intelectual e a perseverança no objetivo de impedir o “sonhado” retorno aos “bons tempos da ditadura”.
A trincheira onde se trava a batalha entre as duas magistraturas – sob o olhar indesejavelmente neutro e proibitivamente cúmplice de tantos colegas – é parte do extenso território onde, no Brasil e no exterior, é lutada a batalha maior de defesa dos valores plurais da civilização.
Não há trégua possível, porque a suspensão dos embates importaria em termos juízes e juízas dispostos a aceitar não cumprir seu papel constitucional em uma sociedade plural que anseia por uma paz que não seja a “paz dos cemitérios”.
Para quem defende a democracia, a única solução possível é a afirmação inequívoca deste valor – democracia – e de sua outra face – a república – sobre elitismos e parcialidades.
Temos o dever de responder à clássica pergunta do genial Caetano, “quando a América Latina irá se livrar de seus ridículos tiranos?” da única maneira possível: já, imediatamente, sem tempo a perder.
*Geraldo Prado, advogado, magistrado aposentado e membro da AJD
Originalmente publicado no Estadão.
Paulo
03/08/2020 - 18h45
O cerceamento da plena liberdade da magistratura federal se dá em duas frentes. Uma delas é a disseminação das “fake news”, até aqui vitoriosamente combatida, quase que de maneira solo, pelo ministro Alexandre de Moraes, que conseguiu vergar ate o Facebook. Outra frente é o aparelhamento dos tribunais superiores, o que já se fez no STJ e far-se-á com certeza no STF, à medida que os cargos venham a vagar. Se Bolsonaro conseguir se reeleger, o equilíbrio de forças até aqui mantido penderá para o lado do ignóbil presidente da República, e estará decretada a “ditadura branca” no Brasil…
Edibar
03/08/2020 - 23h04
Tah mas e cadê o teu senador pra sabatinar o indicado pelo presidente ao STF?? Tá certo q não é o melhor dos processos mas há um caminho a ser seguido pra se ser ministro do STF. Pq crer q sempre será de faz de conta?
Paulo
04/08/2020 - 22h15
Porque sempre foi. Só barrariam, possivelmente, Moro. E pelos piores motivos, é claro…