Um cientista famoso disse, certa feita, que a vida não é mais do que elétrons à procura de um lugar para descansar. Elétrons são partículas fundamentais, muito pequenas, que costumam orbitar no entorno do núcleo dos átomos, e que às vezes se desgarram e pulam para outros átomos. Esse pula-pula dos elétrons de um lado para outro é a razão pela qual o nosso mundo é tão agitado.
Na verdade, quando se observa o mundo subatômico, com sua agitação frenética, ensandecida, com elétrons disparando em alta velocidade, prótons e neutrons chacoalhando nervosamente, com tudo sempre prestes a explodir, a se desgarrar, com partículas misteriosas aparecendo do nada, e voltando a desaparecer, como fantasmas, tudo isso envolvido em campos eletromagnéticos de terrível, inimaginável intensidade (para imaginar quão terrível, basta pensar na bomba atômica), dá para termos um vislumbre intuitivo de como foi possível surgir a vida.
A vida, por sua vez, é um processo biológico movido, sobretudo, por uma energia chamada adenosina trifosfato, também conhecida como ATP. Com raríssimas exceções, todos os seres vivos da Terra usam a ATP como “moeda” energética principal. Em seu clássico The Vital Question, o biólogo Nick Lane explica que uma única celula humana consome, por exemplo, aproximadamente 10 milhões de moléculas de ATP a cada segundo. Se considerarmos que o ser humano tem cerca de 40 trilhões de células em seu corpo, imagine a quantidade de ATPs consumidas diariamente…
Todos esses mecanismos são repletos de mistérios ainda longe de serem compreendidos pela ciência humana. Sabemos, por exemplo, que toda nossa energia é produzida dentro das mitocôndrias, e uma célula possui em seu interior centenas a milhares desses órgãos, que são pequenas usinas, movidas a elétrons, produtoras de novos ATPS. No processo de montar uma nova molécula de ATP, porém, a mitocôndria expele, como derivado do processo, várias particulas soltas de próton de hidrogênio, que irão servir, por sua vez, para gerar campos magnéticos positivos cuja função é sugar elétrons dos alimentos que ingerimos, da água que bebemos, e do oxigênio que respiramos, e fazer com que esses elétrons sejam usados como corrente elétrica pelas células, para remontagem de novas ATPs, construção de proteínas, e o transporte de enzimas de um lugar para outro.
Os mais brilhantes cientistas do mundo ainda não descobriram, porém, de onde veio essa espetacular e incansável nanotecnologia, movida a luz solar e gás carbônico pelas plantas e a comida, água e oxigênio, pelos animais.
Na verdade, sabemos tão pouco de tudo. Um passeio rápido pela literatura mais recente da neurociência basta para nos mostrar o tamanho do buraco de nosso conhecimento também nessa área. Apenas temos um vislumbre, muito exterior, do que acontece em nosso cérebro, como alguém que enxerga, de um avião, as pequenas luzes agitadas de uma cidade à noite! Sabemos que pequenas correntes elétricas saltam de um neurônio para o outro, num determinado ritmo que, por sua vez, forma padrões, e que as ligações elétricas permanecem por algum tempo entre os neurônios, formando nossas memórias e nosso conhecimento. E só. A neurociência ainda está muito longe de desvendar como se formam nossos pensamentos!
A mesma coisa vale para os estudos sobre as partículas fundamentais, a chamada física quântica. Quando os cientistas tentam extrapolar os limites da nossa tecnologia atual, e sondar teoricamente os fundamentos do matéria, os resultados flertam com o esotérico. Segundo a teoria das cordas (string theory), que é a teoria mais estudada hoje na física quântica, os menores elementos da matéria seriam pequenas cordas (strings) que vibram eternamente, em nove ou dez dimensões…
A verdade, todavia, é que a física sempre atinge um ponto, e não demora muito, em que o cientista ergue os ombros e decide tomar um drink, porque ele sabe que nossos conhecimentos e tecnologias não nos permitem ir mais longe.
Em relação a astrofísica, nem se fala! Hoje se sabe que cerca de 85% da matéria que forma o universo é o que se chama de “dark matter”, ou matéria escura. E não sabemos o que é…
Digo tudo isso para mostrar como é vã nossa tentativa de entender os processo sociais, senão conseguimos entender sequer como funciona uma célula, como é formado um átomo, e do que é feito o universo. Processos sociais são infinitamente mais complexos do que todos esses elementos, sobretudo porque misturam todos eles. Um processo social mistura história, cultura, psicologia, economia, clima, geografia, biologia, e por aí vai.
É difícil para os cidadãos das grandes cidades entenderem isso, mas o tamanho e o sucesso das safras agrícolas repercutem profundamente pelo tecido sócio-econônico nacional. O dinheiro que entra com as exportações irrigam a economia, e os produtos colhidos ajudam a segurar o preço dos alimentos.
Parte da explicação para a estabilidade da aprovação de Bolsonaro, por exemplo, pode estar nas ótimas safras que estamos colhendo nos últimos meses, e no desempenho sensacional das nossas exportações do agronegócio, com pandemia com tudo. A China, apesar da truculência diplomática do governo Bolsonaro, aumentou as importações do Brasil de maneira extraordinária.
Outra explicação – que particularmente acho bastante válida – pode ser simplesmente o cansaço da população, que não suporta mais crises e mais crises políticas intermináveis, e que precisa desesperadamente de um pouco de paz e estabilidade.
Além disso, a barulheira que a esquerda vem fazendo em torno do suposto “fascismo”, a falação sobre “democracia”, não encontra nenhum eco em nossas gigantescas periferias urbanas ou no interior, onde esse tipo de assunto não diz muita coisa. Isso é o lado dramático de qualquer autoritarismo: ele afeta inicialmente, e sobretudo, as elites letradas do país. Quando o autoritarismo chega ao povo, em geral sob a forma de uma crise econômica prolongada, que o autoritarismo não consegue combater satisfatoriamente, porque enrigece o tecido político e mata o dinamismo e a flexibilidade dos processos sociais, aí veremos o povo sacudir as elites como um grande animal faz com moscas que o perturbam.
Esta semana, o colunista do Intercept, João Filho, escreveu um interessante artigo sobre uma possível consolidação da candidatura de Sergio Moro.
Apesar de bem escrito e apontar corretamente alguns problemas reais no campo da oposição, o artigo recai no mesmo erro que todos os áulicos da “frente ampla” cometem, como se ela fosse a fórmula mágica para derrotar Bolsonaro. Explico: a frente ampla é fundamental. Repito: fundamental. Não necessariamente para derrotar Bolsonaro, mas para um objetivo ainda maior, se é que isso é possível, que é civilizar o debate político, e produzir um ambiente respirável, onde seja possível construir, paulatinamente, alguns consensos essenciais para o avanço do país: por exemplo, é importante respeitar a ciência, investir em educação, termos uma imprensa plural e livre, um judiciário profissional e imparcial, uma polícia que respeite as garantias e a vida, um governo que entenda a importância do meio ambiente. No mundo desenvolvido, esses consensos existem e reúnem partidos e movimentos de direita e esquerda, embora eles também se vejam, o tempo inteiro, ameaçados por extremistas que usam a insatisfação social para combater justamente esses consensos.
As criticas à frente ampla, que vemos em alguns setores hoje radicalizados da esquerda, refletem uma visão egoísta do processo político, de olho apenas na questão eleitoral e partidária.
Agora, a frente ampla não serve ao propósito mais curto-prazista de enfrentar Bolsonaro, porque nunca terá, por suas próprias características, a coesão necessária para formar um discurso coerente e agressivo o suficiente para mobilizar as pessoas.
A frente ampla, como o próprio nome já diz, tem de ser ampla, e como tal poderá receber elementos ainda indecisos, que não se desgarraram totalmente de Bolsonaro, mas que não pactuam com os setores mais autoritários do governo.
Entretanto, para derrotar Bolsonaro, a estratégia precisa ser diferente. É necessário construir duas coisas:
1) Produzir uma corrente de opinião coesa e numerosa o suficiente para constituir um núcleo político duro. Não precisa ser gente demais, mas precisa ser qualificado o suficiente para ter o potencial de atrair mais gente quando for necessário, e, sobretudo, formar a base social em defesa do projeto, tanto no embate eleitoral quanto, sobretudo, na fase de consolidação desse projeto, no período de governo.
A esquerda brasileira tem de parar de pensar apenas em “ganhar eleição”. Como bem mostrou o impeachment de 2016, isso não basta. É preciso também uma estratégia de formação de maioria parlamentar, hegemonia na opinião pública e estabilização do governo.
2) Desarmar as bombas montadas para a esquerda perder no segundo turno, o que inclui trabalhar para oferecer uma narrativa diferente. Essa é a parte mais difícil, em virtude da arrogância enorme da maioria da esquerda, que não admite nunca ter cometido erros, nem no passado nem no presente, e tem enorme dificuldade para rever seus vícios de linguagem e pensamento, seus preconceitos, e que, muitas vezes, sem ter consciência plena disso, tornou-se sectária e conservadora, hostil a qualquer mudança ou reforma na sociedade que ameace o status quo de suas elites liberais.
Houve alguma coisa na esquerda que a fez perder o sentido da mudança, da dialética. Diante das mudanças tecnológicas avassaladoras, que já começaram a transformar profundamente o mundo do trabalho, a esquerda reage apenas com insegurança, medo e hostilidade, sem oferecer um conjunto de novas leis, sem pensar em novas maneiras de abordar o problema, que ajustem o nosso universo jurídico ao mundo real, oferecendo segurança real (e não imaginária, na forma de utopias irrealizáveis) aos trabalhadores.
Se esses dois desafios forem equacionados, e é importante que ambos sejam, e não apenas um só, a esquerda poderá vencer Bolsonaro em 2022.