O artigo do ex-diretor de redação da Globo, Ascânio Seleme, intitulado “É hora de perdoar o PT” produziu – sem trocadilho com o sobrenome do jornalista – uma celeuma curiosa.
Por um lado, inúmeros petistas reagiram com extrema irritação, como se Seleme tivesse ofendido profundamente a legenda.
Alguns outros, como o nosso colunista Theo Rodrigues aqui no blog, reagiram de maneira mais moderada, aceitando de bom grado o movimento da Globo, mas criticando o fato do colunista ter sugerido que, para que o PT fosse perdoado, amenizasse algumas de suas posições.
O artigo, no entanto, analisado de maneira desapaixonada, parece um esforço sincero de combater a rejeição ao PT junto a uma parte dos assinantes do jornal.
Trecho do artigo de Seleme:
Superada esta instância, que é mais fácil, terá de se ultrapassar também a índole autoritária que um dia foi semeada no coração do PT e vicejou. Exemplos são muitos, como a tentativa de censurar a imprensa através de um certo “controle externo da mídia”, de substituir a Justiça por “instrumentos de mediação” em casos de agressão aos direitos humanos, ou de trocar a gestão administrativa por “conselhos populares”. Se estas tentações foram barradas no passado, quando até o centrão apoiava o PT, certamente não prosperarão num ambiente muito mais polarizado como o de hoje.
As ressalvas de Seleme ao PT me parecem, todavia, inteiramente artificiais, como se ele quisesse fazer alguma crítica, mas não soubesse o que falar, pelas razões que entenderemos mais adiante.
Afirmar que o PT cogitou ou tentou “censurar” a imprensa, é mais que uma mentira; é uma ofensa à inteligência.
Em se tratando de política de comunicação, o PT fez um jogo duplo. Ao mesmo tempo em que algumas instâncias do partido distribuíam biscoito à militância com a história de “democratização da mídia”, o governo dava à Globo contratos bilionários de publicidade federal, e a cúpula do partido entendia que a Globo seria a sua emissora oficial. Nunca houve um esforço sério no partido para sequer pensar ou estudar o problema do sistema nacional de comunicação, quanto mais efetivamente realizar alguma mudança no setor. A militância foi deliberadamente enganada. A história de que Franklin Martins deixou uma “lei de mídia” pronta para ser enviada ao congresso, mas que foi engavetada por Dilma, fez parte dessa estratégia de iludir.
O PT jogou na conta da presidenta Dilma uma série de erros e covardias que não foram decisão dela, mas do Lula e da cúpula da legenda.
Com o bolsonarismo radicalizando à direita e fazendo campanha aberta contra a Globo, tratando-a, por mais surreal que isso nos pareça, como uma mídia de esquerda, esse movimento da Globo não é surpreendente: perdendo assinantes à direita, o jornal tenta reconquistar parcela dos eleitores de esquerda.
Como o próprio jornalista admite: “não se pode negar que parte considerável do Brasil é de esquerda”. Vender assinatura para esses brasileiros é um desafio se o jornal continuar sendo visto como um “inimigo ideológico” do petismo.
Outro articulista, Ricardo Cappelli, argumentou que seria o caso de “perdoar a Globo”, pensando que, se um grupo de mídia tão poderoso, hoje posicionado no campo de oposição a Bolsonaro, faz um aceno ao maior partido de esquerda, caberia a este, em nome do bem maior – que é enfraquecer o governo – aceitar uma aliança tática. Mao Tse Tung e os comunistas revolucionários não fizeram aliança com seu arqui-inimigo, o governo de Pequim, quando se tratou de derrotar o mal maior, o invasor japonês?
Reitero que o fato político que mais me surpreendeu foi a reação petista ao artigo. Se é compreensível que os petistas não confiem na Globo, parece-me um tanto irracional atacar um jornalista por um artigo que defende expressamente o PT.
Ah, a Globo defendeu o golpe, a Lava Jato, a prisão de Lula… Bem, nas eleições de 2018, aceitou-se alegremente o apoio de Joaquim Barbosa, cotado até mesmo para ministro da Justiça, e de tantos outros que também assumiram posições antipetistas, que não é coerente esse purismo todo hoje.
O que eu achei mais curioso, no artigo de Seleme, foi esse trecho:
“(…) O Brasil não tem tempo para esperar por uma outra esquerda, renovada e livre da influência do PT.”
Ou seja, a Globo não apenas faz um aceno amistoso ao PT, como se alinha à narrativa hegemonista do partido.
Estaria a Globo com saudades do neoliberalismo petista?
Sim, porque os argumentos de Seleme não poderiam ser mais artificiais. Os “erros” do PT apontados por ele não seriam a escolha fisiológica e desastrada de ministros do STF, tampouco a manutenção de uma política econômica profundamente ortodoxa. Os “erros” seriam esses fantasmas vendidos pela própria Globo, como o “controle externo da mídia”.
Quanto à corrupção, nem a Globo nem o PT parecem examinar o problema principal, que foi expor a nossa joia da coroa a uma campanha de desmoralização perigosíssima, que resultou em prejuízos incalculáveis para o país: depois da Lava Jato, partes importantes, estratégicas, da estatal foram entregues a preço de banana a setores frequentemente antagônicos aos interesses da própria Petrobras.
Se a Lava Jato foi, de fato, uma operação repleta de abusos, e que contou, eventualmente, com apoio de aparatos de inteligência estrangeiros, isso não redime o governo petista de ter entregue diretorias estratégicas da Petrobras a setores altamente corrompidos da política partidária.
Quando reclamamos que o PT não montou um sistema de inteligência capaz de proteger a Petrobras nem do assédio estrangeiro, nem da corrupção doméstica, não devemos esquecer que talvez não tenha sido uma falha, mas um projeto: talvez não interessasse à legenda montar um sistema de inteligência, pois este iria, fatalmente, desmontar esquemas partidários que integravam o projeto de poder da legenda.
Da Globo, porém, não deve se esperar nenhum apoio a qualquer projeto nacional soberano, pois sempre agiu como uma empresa norte-americana estabelecida apenas por acaso em território nacional. O sonho da Globo é um novo governo petista neoliberal, onde ela repita o seu teatrinho de mídia de oposição, receba seus bilhões de contratos de publicidade, enquanto o governo faz o serviço sujo de enriquecer ainda mais a nossa plutocracia.