Não se assuste, cara leitora, este colunista não aderiu ao terraplanismo. A Terra é Plana (Behind the Curve, no original) é o título de um documentário (tem no Netflix) sobre o pitoresco debate acerca do formato do nosso planeta. No filme, composto basicamente por entrevistas, os traços paranoicos e megalomaníacos dos terraplanistas são apresentados de forma certeira e, na medida do possível, sutil. O resultado é positivamente engraçado.
Alguns dos defensores da Terra plana, estes um pouco menos delirantes, estão determinados a comprovar cientificamente que não vivemos sobre uma esfera. Seus experimentos são rigorosos (às vezes precisam do trabalho árduo de vários pessoas ou de generosas quantias de dinheiro) e invariavelmente refutam a teoria da Terra plana. Mas eles não desistem.
O documentário vai, contudo, além: aspectos psicológicos e sociológicos relacionados ao ressurgimento dos terraplanistas (esta teoria foi popular em momentos anteriores da história humana) são abordados por cientistas, psicólogos e outros entrevistados. A tese desvelada mais para o final da película me deixou pensativo: essas pessoas, ou ao menos boa parte delas, sempre sentiram-se rejeitadas pela sociedade; ao unirem-se a uma coletividade com um sentido comum, experimentam um acolhimento e um espírito de grupo que lhes faz sentir parte de algo maior. Como isso gera efeitos benéficos em suas vidas, é muito difícil convencê-las de que a ideia da Terra plana é simplesmente idiota.
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Há algumas semanas, conversando com um amigo sobre o ensaio fascista que dá as caras no Brasil, ele falou algo na mesma linha. Tem muita gente que acabou de achar a sua turma e sente que está lutando por algo maior. Pessoas que sentiram-se à margem da sociedade (ao menos em relação a algum aspecto de sua personalidade) durante a vida toda e agora encontraram uma causa, um coletivo com o qual se identificar e algumas ideias pelas quais vale a pena dedicar sua atuação política.
Considerando que as ideias fascistas não são exatamente ideias, mas comandos de opressão e extermínio cuja origem parece ser um medo terrificante de tudo que cheire a algo diferente do que já se conhece, não basta derrotar o fascismo no campo institucional. Este é, sim, um imperativo, uma tarefa urgente que exige o emprego de todos os esforços possíveis. Entretanto, é necessário pensarmos em estratégias que mirem um objetivo de longo prazo: fazer com que a sociedade brasileira crie anticorpos intelectuais e morais contra o ideário fascista, para que este jamais veja a luz do dia outra vez.
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Trata-se de um trabalho árduo e lento (do contrário, não seria de longo prazo), porém essencial. Não é simples, afinal, estimular uma cultura democrática em uma população carente (em vários sentidos) como a brasileira.
Um projeto que revolucione a comunicação brasileira é um primeiro passo. Se o domínio do oligopólio de mídia era um inferno para as pretensões soberanas do Brasil, agora o cenário está ainda pior: a emergência de sofisticados sistemas de manipulação da informação e difusão de notícias falsas por meio de redes sociais precisa ser debatida e enfrentada com inteligência. Esperar pela boa vontade do Mark Zuckerberg (dono do Facebook, Whatsapp e Instagram), dos donos do Google (Larry Page e Sergey Brin) ou dos barões da mídia tradicional brasileira no combate às fake news é pedir para ser massacrado em todas as eleições.
Tornar o sistema de comunicação do país mais democrático, transparente e menos sujeito a interesses financeiros ou de nações estrangeiras seria uma conquista tremenda.
Mas, ainda assim, insuficiente.
Em um país desigual como o Brasil, é preciso, se quisermos uma população mais consciente politicamente, antes garantir o básico: comida na mesa, saúde pública e escola de qualidade para todos. A federalização do ensino básico e médio deveria estar no horizonte de futuros governos à esquerda. Uniformizar a educação em todo o território nacional parece ser uma boa medida para impedir que as dificuldades financeiras e as peculiaridades políticas de cada cidade ou estado resultem em um desenvolvimento desigual dos alunos.
Partindo daí, chegamos ao ponto nevrálgico para implementar uma cultura humanista, solidária e democrática na sociedade brasileira: nosso modelo de educação. Um bom começo é realmente aplicar o que a direita lunática acusa a esquerda de implementar: Paulo Freire. Sua tese de que deve ser desenvolvida uma consciência crítica nos alunos é fundamental para os tempos nos quais adentramos rapidamente – tempos de descontrole total da informação. Por isso mesmo, é possível defender a aplicação do pensamento de Freire fugindo do rótulo de “comunista” ou algo do gênero – um rótulo imbecil, de todo modo – que assusta parte importante da sociedade.
Pensemos, por exemplo, nas deep fake. Se nosso debate público é influenciado por fake news que chegam a virar folclore de tão grosseiras (como a da famigerada “mamadeira de piroca”), o que acontecerá quando montagens de vídeo extremamente realistas se espalharem por aqui? Há deep fakes tão bem feitas que somente por meio de softwares se pode confirmar a falsidade do material. Ou seja, qualquer político ou figura pública pode viralizar falando qualquer coisa que o autor da montagem deseje, inclusive “confessando” as coisas mais sórdidas imagináveis.
Agora reparem neste pequeno trecho de Pedagogia do Oprimido, livro seminal de Freire:
Outro recurso didático, dentro de uma visão problematizadora da educação e não “bancária”, seria a leitura e a discussão de artigos de revistas, de jornais, de livros (…). (…) parece-nos indispensável a análise do conteúdo dos editoriais da imprensa, a propósito de um mesmo acontecimento. Por que razão os jornais se manifestam de forma diferente sobre um mesmo fato? Que o povo então desenvolva o seu espírito crítico para que, ao ler jornais ou ao ouvir o noticiário das emissoras de rádio, o faça não como mero paciente, como objeto dos “comunicados” que lhes prescrevem, mas como uma consciência que precisa libertar-se.
Basta acrescentarmos as novidades comunicacionais decorrentes da evolução tecnológica (novos dispositivos, novas redes de comunicação) e temos aí uma habilidade indispensável para os nossos tempos: saber discernir informação bem embasada de notícia falsa, bem como ser capaz de identificar os vieses políticos e ideológicos que estão por trás de cada notícia ou comentário sobre os fatos do mundo. Qual mãe e qual pai não desejaria que as filhas e filhos saibam discernir as informações confiáveis dentre o oceano de notícias no qual estamos quase todos imersos? Cabe a nós apenas vender o peixe de Paulo Freire.
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E buscar outros paradigmas também.
A Finlândia, por exemplo, possui um sistema educacional considerado modelo. O cineasta americano Michael Moore visitou o país para descobrir as razões; a visita foi retratada em um documentário de 2015 cujo título foi traduzido no Brasil como O Invasor Americano. Menos horas de estudo, quase zero lição de casa, desenvolvimento das habilidades lúdicas e criativas são algumas das dicas dos finlandeses, as quais visam proporcionar felicidade aos alunos, bem como prepará-los para o mercado do trabalho do futuro, quando esse tipo de habilidade deve predominar, considerando que as máquinas ficarão com o labor mais pesado e repetitivo.
Ressalte-se que a educação por lá é eminentemente pública: o fim do apartheid educacional entre alunos de escolas privadas e públicas deve, também, ser ponto central em um projeto revolucionário para a educação. É um debate complicado, não há dúvidas, e por isso mesmo deve ser suscitado o quanto antes. O objetivo, me parece, não pode ser outro que não o fim das escolas particulares. A ideia é levar a meritocracia a sério, não é mesmo? Abaixo, o trecho do documentário de Moore sobre a Finlândia:
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Outro paradigma da humanidade, este mais profundo, que implora por uma intervenção da educação para começar a ser transformado, é o do egoísmo. O egoísmo, o pensar em si antes de todos os demais ou mesmo do planeta, é o sentimento basilar do modo de vida capitalista. É o egoísmo o motor da busca desenfreada por riqueza e status que, por sua vez, redunda em um consumismo altamente destrutivo – individual e coletivamente.
Estamos levando nosso planeta ao colapso ambiental, e isso é uma façanha e tanto. Se não adotarmos um modo de vida cooperativo (ou ao menos lançarmos as bases para este), nossa geração entrará para a história das civilizações do universo como a que colaborou para o fim da espécie humana sobre a Terra. As crianças devem aprender desde cedo que o egoísmo leva à violência, à opressão e à destruição, e que a cooperação, o trabalho em equipe e a solidariedade são ferramentas para a construção de uma sociedade próspera e pacífica.
E então voltamos aos terraplanistas. Há, neste grupo, semelhanças (inclusive de identidade) com aqueles que se aproximam das ideias fascistas. Nesta pandemia, aliás, os fascistas vêm empreendendo uma guerra alucinada justamente contra a ciência. Uma educação pública, universal, moderna e que ensine os alunos a pensarem criticamente é fundamental para que esse tipo de pensamento torto não viceje nas próximas gerações.
Existe, todavia, um problema para ser resolvido agora. Esses grupos estão por aí, pipocando. Percebe-se que são grupos cujas ideias são marginalizadas, muitas vezes porque são realmente intoleráveis em uma sociedade minimamente civilizada e racional. Contudo, empurrá-los ainda mais para o isolamento não deve resolver a questão. O problema continuará existindo, provavelmente com um acúmulo ainda maior de raiva por parte dos excluídos.
É evidente que há uma militância fascista agressiva e bem ciente de que sua visão de mundo é autoritária, violenta, odienta. Estes devem ser combatidos de forma enérgica, inclusive fisicamente, se necessário. Entretanto, há também, e são muitos, os que professam ideias grotescas sem muita noção do que estão defendendo. Em realação a estes, talvez seja interessante buscar, quando possível, o diálogo, o debate de ideias em termos respeitosos.
Em um encontro de cientistas mostrado em A Terra é Plana, o físico Lamar Glover faz algumas ponderações interessantes sobre os terraplanistas complexo de superioridade científico:
Não podemos apenas dizer que é um delírio ou chamá-los de malucos. Eu acho que muitas vezes quando usamos a palavra “maluco”, trata-se de um termo guarda-chuva. Quantos aqui já foram chamados de maluco? [Alguns levantam as mãos.] Terraplanistas, antivacinas… Quando deixamos essas pessoas para trás, nós deixamos mentes brilhantes emudecerem e estagnarem. Esses caras são cientistas em potencial que pegaram um caminho completamente errado. A sua natural propensão inquisitória e rejeição a normas poderiam ser benéficas para a ciência se eles fossem mais letrados cientificamente.
Quantas inteligências que poderiam contribuir para o bem estar da sociedade são capturadas por fenômenos políticos lamentáveis como o bolsonarismo? E por acaso não é um trabalho nobre – e necessário – restabelecer pontes com esses indivíduos?
Respiremos fundo e coloquemos as mãos à obra, portanto.
Encerro este artigo com as palavras de outro físico, Spiros Michalakis, também apresentadas em A Terra é Plana (vale a pena assisitr):
O problema que eu vejo está, na verdade, não no lado dos que acreditam em teorias da conspiração, mas do nosso lado, o lado da ciência. Às vezes é difícil não olhar com desprezo. Um amigo disse: “Às vezes o único jeito de fazer alguém mudar de ideia é pela vergonha”. E eu disse: “Não acho que esse recurso deva ser usado”. É o mesmo que dizer que se uma criança não entende uma matéria, não é culpa sua, como professor, é culpa dela. Eu não acredito nisso. Você simplesmente não desenvolveu sua empatia até o ponto de ver, a partir do ponto de vista deles, onde eles estão empacados. O pior cenário possível é você apenas empurrar completamente esses indivíduos para a franja da sociedade e, então, a sociedade simplesmente os perde.