A votação do Novo Marco do Saneamento Básico serviu de mote para uma grande campanha de desinformação, produzida, por um lado, pela genuína preocupação com um patrimônio público tão sagrado, como a água, mas também por dois tipos de proselitismo bem menos nobres: um partidário, outro ideológico.
Esses proselitismos são perigosíssimos porque empobrecem o debate e, consequentemente, debilitam e distorcem o discurso autêntico em defesa da soberania nacional e de uma gestão pública e estatal dos serviços de água do país, o qual precisa, para se tornar convincente, estar embasado em dados objetivos e numa postura ponderada e razoável.
As fontes de água potável de qualquer nação soberana devem constituir um bem público, cujo proprietário final precisa ser toda a sociedade, através de seu órgão de representação máxima, o Estado.
Entretanto, não se pode confundir a propriedade da água com a sua gestão. Embora seja preferível, mil vezes, por motivos políticos, sociais e ambientais, que essa gestão seja pública e estatal, a captação, distribuição e reciclagem da água também podem ser tocadas por empresas privadas, como tem sido o caso em milhares de cidades no mundo.
As águas de Berlim e Paris, por exemplo, foram administradas por empresas privadas por mais de trinta anos, antes de serem remunicipalizadas recentemente.
As águas de Paris, que haviam sido entregues à iniciativa privada em 1985, voltaram a ser geridas por uma estatal (Eau de Paris), criada especialmente para esse fim, a partir do final de 2008, através da decisão de um prefeito socialista altamente aprovada pela população.
Até hoje, todavia, 75% dos serviços de água na França são geridos por duas empresas privadas, as gigantes Veolia e Suez, que aliás são líderes mundiais.
Em Berlim, os serviços de água foram privatizados em 1999, após problemas fiscais derivados da reunificação, a partir de uma iniciativa conjunta dos partidos social-democrata (SPD) e cristão-democratas (CDU). O resultado, porém, foi considerado desastroso por especialistas e pela população. Houve uma campanha popular e um referendo foi realizado em fevereiro de 2011, no qual mais de 600 mil berlinenses votaram em favor da remunicipalização (leia-se reestatização) dos serviços de água na cidade.
Na Inglaterra ainda sob a liderança de Margareth Tatcher, os serviços de água foram inteiramente privatizados a partir da década de 80. Somente a Escócia e a Irlanda do Norte ficaram de fora e mantiveram o controle estatal sobre a gestão da água. Mas a opinião pública britânica mudou bastante nos últimos anos. Uma pesquisa feita em 2017 mostrou que 83% dos eleitores britânicos defendem a reestatização de todos os serviços de água do país.
O caso mais curioso, do ponto-de-vista ideológico e político, foi a privatização parcial dos serviços de água em Havana, capital da comunista Cuba, onde o governo criou uma parceria público-privada entre a estatal INRH, a empresa Aguas de Barcelona (Agbar) e o grupo espanhol Martinon. Um detalhe: a Agbar é hoje controlada inteiramente pela francesa Suez.
Como prova de como as questões ideológicas frequentemente se tornam cinzentas no mundo real, as maiores privatizações de sistemas de água e esgoto se deram na também socialista China, a partir do longínquo ano de 1979. Ainda hoje o governo chinês, comandado pelo Partido Comunista, estimula privatizações dos serviços de água no país, e as mais importantes cidades chinesas, incluindo sua capital política, Pequim, e sua capital financeira, Shangai, possuem sistemas de água geridos por empresas privadas.
Nos Estados Unidos, cerca de 70 milhões de americanos são servidos por empresas privadas de água.
Entretanto, os serviços de água no mundo desenvolvido ainda são administrados, majoritariamente, por estatais especializadas.
No Japão, por exemplo, o sistema é inteiramente público e estatal, embora o debate sobre privatização também aconteça recorrentemente por lá.
Esses são dados objetivos, e que nos autorizam a tirar algumas conclusões. A entrega de serviços de distribuição de água a empresas privadas não é nenhuma novidade, tampouco constitui uma dessas desgraças que apenas ocorrem nos lugares mais sórdidos do terceiro mundo. Hoje temos estudos e experiências bastante amplas para entender os riscos, vantagens e desvantagens de gestão privada de água.
Houve uma grande onda de privatizações a partir da década de 80, que reflui ao final dos anos 2000, embora as coisas não tenham voltado a ser como antes.
Vindo para o Brasil, a onda neoliberal também bateu com força por aqui, a partir da década de 90, e houve entrada maciça de capital privado nos serviços de água. Muitas cidades brasileiras hoje são servidas por empresas privadas ou mistas. O caso mais emblemático é a Sabesp, que hoje é uma empresa mista, embora ainda controlada pelo governo, que detêm 50% mais um pouco de suas ações.
Hoje, empresas privadas atendem 322 dos municípios brasileiros e respondem por 20% dos investimentos do setor, segundo informação da Associação Brasileira e do Sindicato Nacional das Concessionárias Privadas de Água e Esgoto (Abcon e Sindcon), uma fonte sem nenhuma imparcialidade, porém, porque representa justamente os interesses das operadoras privadas
Essas informações são importantes de serem ditas porque o discurso de que o Marco do Saneamento “privatizou a água” é falso: a legislação brasileira já permite, desde muito tempo, que se privatizem os serviços municipais e estaduais de água.
De qualquer forma, vale a pena olhar o relatório da Abcon sobre a situação da água e das operadoras privadas no país, para ficarmos bem informados e participarmos do debate com um bom nível de embasamento.
O relatório, por exemplo, traz uma tabela comparativa do Brasil com outros países com níveis semelhantes de desenvolvimento, onde se vê que, de fato, estamos passando vergonha no quesito de acesso à água.
Como se pode verificar na tabela acima, estamos pior que a China, Chile, Marrocos e Iraque, países que, por razões naturais, tem problemas históricos de falta de água. Diante de nossos recursos hídricos infinitamente superiores, é uma coisa inacreditável!
Os partidos de oposição e seus respectivos militantes jamais serão levados a sério nesse debate se não oferecerem um projeto muito sólido em relação a esse problema. De onde virá o dinheiro para os grandes investimentos em infra-estrutura hídrica necessários para ajudar os mais de 100 milhões de brasileiros que hoje não tem acesso a rede de esgoto?
A crise do coronavírus caiu como uma bomba neste cenário. Primeiro pela crise sanitária própria do vírus. Como lavar as mãos sem água? Como evitar a disseminação do vírus por esgostos expostos? O Brasil já era um país com alto nível de letalidade por doenças relacionadas a falta de saneamento adequado. Com o Covid-19, a situação ganha ares ainda mais dramáticos. Em segundo lugar, teremos que lidar que a devastação das finanças de municípios e estados, que já começam a lutar para pagar o salário de seus funcionários. Não há perspectiva de nenhum dinheiro excedente para investir na melhora do saneamento.
Por outro lado, temos grandes fundos americanos e chineses abanando seus bilhões de dólares para nossos prefeitos e governadores, oferecendo investimentos justamente na área de saneamento, um congresso conservador, e um ministro da economia obcecado por uma agenda privatista.
Diante desse quadro, o mais inteligente a fazer é, naturalmente, apelar para uma tecnologia milenar: política. .
E como se faz política? Com inteligência, sabedoria e comunicação. Pesquisar muito, ouvir amplamente, comunicar-se com a linguagem apropriada diante dos vários públicos. Sem dogmatismos ou radicalismo, e não porque não seja importante, às vezes, fincarmos o pé em alguns dogmas e termos posições radicais sobre o que nos é mais caro, mas porque dogmatismo e radicalismo dificultam a construção do diálogo, e, portanto, constituem técnicas pobres para a indução de mudanças no pensamento do outro, e na transformação da sociedade.
Do jeito que parte da esquerda está se comunicando hoje no debate sobre água, a direita saberá facilmente taxá-la de amiga dos esgotos a céu aberto.
Daí partimos para um outro tema correlato. Ao invés de estudar a questão da água, a militância de esquerda entra num jogo de radicalismo vazio, repetindo clichês e rotulando qualquer um que não reza em sua cartilha como inimigo.
É assim que a esquerda pretende criar um movimento para derrubar Bolsonaro?
A tendência à radicalização da militância política, acentuada pela separação da internet em bolhas, é um fenômeno do qual os partidos e movimentos de vanguarda devem se afastar.
Em 1980, ao voltar do exílio, Leonel Brizola deu uma entrevista onde fez uma autocrítica sobre um erro político crucial da esquerda revolucionária dos anos 60. Segundo o gaúcho, que iria se tornar governador do Rio dois anos depois, a esquerda não deveria nunca perder a confiabilidade da classe média, e que, para isso, ele queria distância tanto do imperialismo quanto da pequena burguesia radicalizada.
Brizola – ele mesmo o admitia – era um intuitivo. De suas falas, pode-se extrair, porém, grandes lições de política e história. Essa é uma delas.
Afinal, não havia sido a classe média urbana, com seus jornais partidários e sua febril atividade intelectual, um dos sustentáculos mais importantes da revolução de 30 e de todas as conquistas nacionalistas testemunhadas até então?
Os movimentos de vanguarda de hoje – e sobretudo a militância trabalhista – deveriam seguir o conselho de Brizola. O trabalhismo sempre se caracterizou como uma terceira via entre o socialismo real e o capitalismo selvagem do terceiro mundo.
O voto do senador Cid Gomes (PDT-CE) no Novo Marco do Saneamento gerou uma confusão repleta de injustiças e desinformação. Cid Gomes foi um dos coordenadores de um acordo costurado com Davi Alcolumbre, presidente do Senado, e com o relator do projeto, Tasso Jereissati, para que alguns pontos críticos da nova lei, em especial aqueles que acarretavam risco de ônus aos mais pobres, fossem alterados.
O acordo, é bom enfatizar, foi costurado com todas as lideranças da oposição, que retiraram seus destaques, permitindo que a votação ocorresse sem obstáculos.
A tensão entre os partidos de oposição, por sua vez, reflete uma competição natural, necessária, democrática, no campo da disputa de projetos e ideias.
A formação de “militâncias” apenas é possível no ambiente de conflito perene que caracteriza um regime democrático. Em ditaduras, não há “militância”. Ou antes, apenas se autoriza um tipo de militância: aquela em favor do governo.
A crítica e a vigilância da militância em relação aos votos de parlamentares de seu campo político, portanto, é absolutamente necessária. Militância que não critica, que não vigia, que não cobra, não serve de nada.
Entretanto, é preciso tomar alguns cuidados. As militâncias não apenas precisam estar alinhadas com as respectivas correntes de ideias que caracterizam os movimentos que elas defendem, elas também precisam tomar cuidado para não ser manipuladas por desinformação ou empurradas para posições sectárias e vazias.
No caso da militância trabalhista, não faz sentido, a meu ver, que ela cultive um radicalismo que, além de ser contraproducente num momento em que precisamos ampliar o arco de apoios e alianças, não é coerente com a realidade objetiva do partido e do movimento do qual ela faz parte. Se é absolutamente desonesto, e até mesmo ridículo, dizer que o PDT “apoia a privatização” das águas, ou que é um partido de direita, também não seria correto afirmar que o PDT é um partido de esquerda radical, e como tal, radicalmente contra qualquer tipo de privatização ou parceria entre o setor público e o setor privado.
Além disso, temos aqui uma armadilha especialmente maliciosa contra a qual a militância trabalhista precisará se precaver. Na guerra de posições entre o PT e PDT, hoje numa temperatura bastante elevada, os petistas procuram, de todas as maneiras, empurrar Ciro para a direita. Qualquer artifício é usado para esse fim.
Se o seu irmão, Cid Gomes, que liderou uma verdadeira revolução educacional como prefeito em Sobral, levando a cidade à posição de campeã nacional nesse quesito, e que nunca privatizou os serviços de água em suas administrações (Sobral e Ceará), opina que não há clima para impeachment neste momento (opinião com a qual o PT e Lula concordavam até poucos meses atrás, e que, convenhamos, é simplesmente realista), os petistas começam um movimento para criar uma narrativa segundo a qual Cid Gomes é “aliado” de Bolsonaro.
Com o novo Marco do Saneamento, foi parecido. Após ter se articulado contra o projeto, o PDT liberou a bancada, e o líder do partido, senador Weverton, votou contra. Cid Gomes, por sua vez, votou a favor, em função do acordo feito para melhorar uma lei que já contava com esmagadora maioria dos senadores. O que fazem os petistas? Começam imediatamente a vender a narrativa de que o PDT votou em favor da “privatização” da água. E que o PT foi “único” partido que votou contra a privatização da água.
A militância trabalhista precisa ficar atenta a esses jogos.
A reação natural dos “ciristas”, então, é empurrar de volta, mas precisam tomar cuidado para não fazê-lo com tanta força a ponto de cair no erro infantil do esquerdismo.
Cid Gomes é um dos mais brilhantes e corajosos quadros políticos do país. Seu voto não foi em favor da “privatização da água” e sim em favor do melhor projeto possível nesse momento, após um acordo com as forças hegemônicas, para que a população mais pobre não seja prejudicada.
Já não basta vivermos uma gravíssima crise de lideranças políticas, agora queremos “cancelar” as poucas que temos?
Além disso, qual o sentido de tanto esforço para conquistar o centro político, tentando criar uma nova correlação de forças e uma nova hegemonia moral, e se refugiar num radicalismo sectário e raivoso na primeira adversidade?
Como construir um processo de impeachment, ou ampliar a oposição, com essa postura?
As águas do Brasil não foram e não serão privatizadas. Elas permanecem sendo um patrimonio social e coletivo, pertencente a todos os brasileiros, e sob controle do Estado.
A luta, no entanto, nunca termina. Aprovado um novo marco de saneamento, do qual não gostamos, o próximo passo é aperfeiçoar a legislação, através de novas leis e eventualmente via judicialização, de maneira que o processo se dê da maneira mais positiva possível. Esse é o papel de uma oposição responsável, adulta, e genuinamente preocupada com o povo brasileiro.