O marco do saneamento básico foi aprovado ontem no Senado por ampla maioria. O placar foi de 65 X 13.
Após a votação, o senador Cid Gomes (PDT-CE) começou a ser atacado por setores da esquerda por ter votado a favor do projeto.
PDT, PSB e Rede também foram alvos de críticas por terem “liberado suas bancadas”.
Entretanto, há aqui uma enorme injustiça.
Toda oposição fez um acordo com o relator do projeto, Tasso Jereissati, e com o presidente do Senado, Davi Alcolumbre, para conter danos.
O próprio Alcolumbre agradece publicamente a todas as lideranças partidárias, com uma menção especial ao PT.
A prova do acordo foi a decisão unânime da oposição em retirar os destaques.
O acordo feito com a oposição era para garantir subsídio ou tarifa social para os consumidores mais pobres, dentre outras medidas que atenuam riscos de aumento de custo para a população mais vulnerável.
O projeto já havia sido aprovado na Câmara dos Deputados e contava com confortável maioria no Senado.
A oposição poderia apenas, com seus destaques, atrasar por algumas semanas a aprovação do projeto, ou fazer um acordo para conter danos, o que foi feito, através da articulação feita por senadores de toda a oposição.
Na reportagem da Agência Senado, além disso, os senadores de todos os partidos de oposição deixaram claro que suas posições nunca foram radicalmente contra a entrada em si do setor privado no setor de sanemanento básico.
“Não me oponho ao investimento privado na área de saneamento. Acho que o investimento público e o investimento privado precisam acontecer simultaneamente, não há dogmatismo da nossa bancada em relação a esse tema”, afirmou o líder do PT, o senador Rogério Carvalho.
O senador Cid Gomes (PDT-CE) observou que, mesmo com um novo marco legal, o saneamento básico só vai ser universalizado se contar com maciços investimentos públicos, principalmente para garantir uma tarifa social para os menos favorecidos.
O tema é complexo e reflete uma dura e triste realidade no país. A situação do saneamento básico no Brasil ainda é chocantemente precária, como ilustram os gráficos abaixo:
Os números mostram que temos 101 milhões de brasileiros sem sistemas de tratamento de esgoto e outros 39 milhões sem acesso a água.
O PL impõe metas de que, até o fim de 2033, 99% dos brasileiros devem ter cobertura de água potável e 90% devem ter acesso a sistemas de coleta e tratamento de esgoto.
Grandes interesses privados estão de olho nesse mercado “virgem” de tratamento de esgoto e sistemas de água no Brasil.
Ao final do ano passado, por exemplo, importantes empresas de investimento, com sede nos Estados Unidos e em Hong Kong, anunciaram a criação de um fundo de US$ 1 bilhão para financiar projetos de saneamento básico no Brasil.
A privatização de sistemas de água e esgoto não é um tema novo. Na década de 90, centenas de cidades e países permitiram a entrada de empresas privadas nesse universo. Dentre esses países, podemos destacar a China, que até 2007 recebeu mais de US$ 3 bilhões apenas do Banco Mundial, para o financiamento de 22 projetos relacionados a sistemas de gerenciamento de água potável e coleta de esgoto.
Entretanto, desde alguns anos, o entusiasmo com a privatização da água parece ter refluído em boa parte do mundo. Relatórios de instituições especializadas informam que, em cidades de mais de 35 países, incluindo Buenos Aires, Johannesburg, Paris, Accra, Berlin, La Paz, Maputo e Kuala Lumpur, decidiram “remunicipalizar” (ou seja, reestatizar) seus sistemas de água.
O fato é que já existem experiências e relatórios suficientes para que as diferentes sociedades avaliem criteriosamente as vantagens e desvantagens de se permitir a entrada de capitais privados no setor de água e saneamento. Se nos anos 90, havia vantagens no reino das promessas, agora, depois de mais de 30 anos, temos desvantagens materializadas no reino da vida real.
Tenho pesquisado o tema há algum tempo, desde que a obsessão pela privatização da Cedae (companhia estatal de água do Rio) teve início, a partir do governo Temer, e até hoje só tenho encontrado relatórios que alertam, muitas vezes dramaticamente, contra os efeitos nefastos da privatização da água.
No caso do Brasil, a situação é a seguinte: é preciso, de fato, aperfeiçoar e expandir nossos sistemas de água e esgoto. Não é possível que, em 2022, na era da inteligência artificial e da nanotecnologia, tenhamos quase metade da população brasileira sem saneamento básico.
Se o congresso nacional entendeu que a entrada de capital privado no setor pode ajudar a resolver esse problema, então será necessário apresentar um planejamento que evite os problemas que se viram em todos os países e cidades que optaram por esse caminho, que foi a insuficiência de investimentos, o aumento dos preços, e a baixa qualidade dos serviços oferecidos.
Esses pontos são importantes porque o Marco não obriga nenhum prefeito ou governador a privatizar nada. Se houver entendimento na sociedade e de suas lideranças eleitas de que a maneira mais segura e objetiva de resolver o problema dramático de saneamento básico é através do reforço dos investimentos públicos, deve-se encontrar os meios para fazê-lo.