Constitui um fato político interessante que um dirigente do PCdoB escreva um artigo com críticas tão diretas ao PT, e que o texto seja publicado no Vermelho, embora não seja correto achar que ele reflita a opinião editorial do site ou do partido, que tem sido bastante plurais.
O texto nos permite identificar, na própria crítica, tanto as imensas dificuldades políticas que o partido encontra em seccionar o cordão umbilical que ainda o liga ao lulopetismo, como o desejo crescente de superá-las e tornar-se independente.
Nisso não vai uma crítica ao lulopetismo, que é a corrente ultrahegemònica dentro do PT, mas uma ponderação sobre a sobrevivência do PCdoB enquanto força partidária relevante no país. Em anos anteriores, o PCdoB conseguiu avançar sendo mais realista que o rei, ou mais lulista que os próprios petistas, os quais, de olho em suas bases sociais, ou talvez por uma cultura de oposição, ainda cuidavam de manter uma postura relativamente crítica de seus próprios governos. A decisão comunista foi estratégica, porque o governo Lula começou a perder rapidamente sua base popular nos primeiros anos, e a classe média em seguida. Não fosse o apoio decisivo de alguns setores, entre eles o dos comunistas – um apoio barulhento, disciplinado e sempre feito com muita qualidade e determinação – as dificuldades do governo seriam ainda maiores.
Quando o lulopetismo entra em crise aguda, todavia, a partir de 2013, ele arrasta consigo toda a esquerda, a começar pelos partidos aliados. A primeira vítima é o PCdoB, que havia absorvido o ônus de todas as contradições do lulopetismo, agravadas em seu caso pelos preconceitos ideológicos que a legenda sofre, por razões óbvias, mas sem receber o bonus de doações privadas bilionárias, substituídas por fundo partidário de centenas de milhões de reais.
O artigo de Murilo Ferreira também nos dá oportunidade de ponderar sobre alguns diagnósticos ainda predominantes, mas que precisam ser atualizados sob uma luz nova.
Logo no início, o texto repete expressões que se tornaram quase como dízimos intelectuais que se deve pagar ao discurso vitimista do campo hegemônico da esquerda.
“(…) a prisão arbitrária e injusta do presidente Lula para impedi-lo de concorrer às eleições”.
“(…) envenenamento da classe média contra o PT”.
A prisão de Lula foi arbitrária e injusta, mas também foi o resultado de um acúmulo gigantesco de erros políticos do próprio Lula, como indicações fisiológicas ao STF e corporativas à PGR, além de uma série de concessões pouco inteligentes ao discurso punitivista, como as leis da delação premiada, da ficha limpa, e da organização criminosa, que, juntas, ajudaram a dar ainda mais poder político a órgãos jurídicos estatais que, no Brasil, já tinham recebido um poder excessivo e desproporcional dos constituintes de 1988.
Esses erros não resultaram apenas na prisão de Lula, mas num aumento dramático da população carcerária, no enfraquecimento de nossas mais importantes empresas de engenharia, na destruição de milhões de empregos, ao mesmo tempo em que a violência aumentava de maneira dramática no país.
Quanto ao “envenenamento da classe média”, este houve, de fato, mas novamente estamos diante de um fato que não deve ser mais interpretado sob um viés vitimista e despolitizante, como se a classe média não tivesse inteligência e capacidade crítica para desenvolver, por si mesma, seu próprio juízo acerca do PT. Ou como se um partido de esquerda devesse culpar as superestruturas conservadoras por simplesmente cumprir a função política e ideológica para a qual foram criadas, que é justamente a de atacar e debilitar os representantes do mundo do trabalho. Quando o PT abdica da principal função de um partido político de esquerda, que é de liderar a comunicação da classe trabalhadora, não lhe resta outra saída, quando os resultados dessa renúncia cobram seu preço, senão iniciar um interminável processo de autovitimização, do qual uma das características é ora vilanizar (chamando-a de “fascista” ou reacionária) ora infantilizar (dizendo que foi “envenenada”) a classe média.
Ora, essa “classe média” da qual tanto se fala nada mais é do que a franja mais instruída e profissionalmente mais bem sucedida da classe trabalhadora. Quando um partido de esquerda renuncia a um segmento tão vital e dinâmico, ele já perdeu politicamente a hegemonia moral da sociedade, e suas vitorias eleitorais se darão apenas através da exigência fisiológica da “gratidão” do povo, mediante campanhas bilionárias, um processo muito desgastante, que irá gerar ainda mais rejeição nos setores instruídos da população.
Além disso, a vilanização da classe média é uma estratégia que repete um vício antigo da esquerda. Leonel Brizola, ao voltar do exílio em 1980, e dar sua primeira entrevista ao Canal Livre, aceita a provocação dos jornalistas da bancada do programa (um time ilustre de jornalistas e intelectuais progressistas) de fazer uma autocrítica: e sua autocrítica é justamente a esse velho preconceito da esquerda contra a “classe média”, vista como reacionária quando, muitas vezes, é apenas desconfiada e crítica.
No caso mais recente do petismo, o afastamento da classe média não foi considerado com a devida seriedade: preferiu-se o caminho fácil – mas perigoso e equivocado – de substituir a perda do apoio das classes mais instruídas, substituindo-o pelo voto – muitas vezes despolitizado – da população mais pobre, através do marketing eleitoral.
Conforme a classe média foi se afastando do PT, o PT também foi se afastando dela, e desenvolvendo narrativas cada vez mais viciadas e preconceituosas contra este segmento, até que ambos criaram imagens monstruosas e excessivas um do outro.
A relação política de um governante com um brasileiro muito pobre do interior do sertão nordestino pode se limitar a uma dinâmica caudilhista e messiânica, mas o mesmo não pode se dar com as famílias da classe média baixa das cidades, que hoje representam uma proporção hegemônica do eleitorado brasileiro.
Essa classe média exige uma comunicação diária, e uma relação política transparente, honesta, franca, sobre tudo que acontece no país. Que é o que Bolsonaro, sem a parte da “honestidade”, entendeu ser necessário fazer.
O PT, talvez por suas enormes contradições internas, nunca conseguiu oferecer esse tipo de comunicação. Com Dilma, tudo se degenerou muito rapidamente, porque perdeu-se até mesmo a comunicação direta que a presidência da república, na figura de Lula, mantinha com a população.
Outros trechos do artigo de Murilo Ferreira que ensejam comentários:
“(…) [em 2018] o PT e o PCdoB, se encontravam num isolamento político sem precedentes desde a redemocratização. (…)
Junte-se a isso a indisposição dos petistas de abrir mão da cabeça de chapa, mantendo Lula candidato até o limite, o que fez dissipar qualquer possibilidade de articulação mais ampla de forças. Numa atitude completamente diferente, o campo da esquerda argentino se uniu e Cristina Kirchner concorreu como vice de Alberto Fernández. Assim, derrotaram Macri. Muito provavelmente, aprenderam com o erro da esquerda brasileira na eleição de 2018.
Foi nessa perspectiva que se deu a aliança entre petistas e comunistas na disputa presidencial de 2018. Uma reedição da aliança histórica que se forjou desde 1989, mais estreita no primeiro turno, porém com maior amplitude no segundo. Contudo, teria sido possível uma alternativa frentista já no primeiro turno, ainda que isso sacrificasse os compromissos estabelecidos há décadas com o partido hegemônico da esquerda frente a ascensão do bolsonarismo? Quais alternativas estariam disponíveis à época? Se assim o fosse, teria evitado a vitória de Bolsonaro? São questões em aberto.”
O recado aqui é bem claro, apesar do tom às vezes delicado com que o autor se expressa: o PT encontrava-se isolado politicamente, e não aceitou “abrir mão da cabeça de chapa”. A comparação com o caso argentino, onde a ex-presidente Cristina Fernandez, também sofrendo uma forte rejeição em setores importantes da sociedade, aceitou dar um passo atrás e colocar – desde o início – um companheiro crítico de seu governo na cabeça da chapa eleitoral, apenas serve para deixar claro o que o próprio dirigente comunista considerou um “erro da esquerda brasileira”.
E aí chegamos à conclusão do artigo, onde se fazem algumas acusações bastante curiosas ao PT:
“O PT parece preferir o risco de enfraquecer ainda mais a democracia pelo fato de não aceitar a formação de uma frente ampla democrática. Vem colocando um óbice aqui e outro ali, evidenciando o temor de perder o protagonismo (…)”
“O PT quer que o PCdoB e a esquerda em geral siga a sua orientação que tende ainda mais ao isolamento e à estreiteza política (…)”
” O PT tem todo o direito de impor suas muitas condições, que o faça, sob pena de continuar no isolamento. O que o PT não tem direito é de querer impor ao PCdoB uma concepção estranha e das mais combatidas na história do nosso partido: o esquerdismo e o infantilismo político.”
Eu digo que são curiosas porque põem em evidência algo que os quadros políticos costumam silenciar, mostrando que o nível de tensão dentro do PCdoB, sobretudo na relação com seu mais tradicional aliado, subiu um degrau.
Como assim o PT quer “impor ao PCdoB uma concepção estranha” ao partido?
Como se dá essa imposição?
Ora, essas coisas fazem parte da rotina política, mas não deixa de ser um jogo pesado. A maneira como o PT “se impõe” sobre outro partido é através da crítica veiculada por seus instrumentos orgânicos, manejados às vezes sutilmente (outras vezes nem tão sutilmente) por suas lideranças: militância, blogs, declarações de quadros e dirigentes.
Entretanto, se o PCdoB reclama dessa “imposição”, é porque o partido se tornou vulnerável a ela, justamente pela falta de instrumentos orgânicos para se defender, sobretudo porque, ao longo dos anos, foi “terceirizando” seus próprios instrumentos ao hegemonismo. E também, por outro lado, porque é uma vítima desse hegemonismo, já que algumas ferramentas e recursos de Estado foram usados para ajudar apenas a um partido, ao invés de serem aplicados para aumentar a pluralidade do sistema de comunicação.
O partido apenas conseguirá seguir um caminho próprio, e cortar o cordão umbilical do lulopetismo, se investir na criação de seus próprios blogs e espaços de defesa/ataque políticos, e se suas lideranças e militantes começarem a dar algumas cotoveladas em quem está a seu lado, de maneira que seus próprios companheiros possam sentir sua presença.
Por fim, o artigo faz essa curiosíssima acusação ao PT, que apenas os mais íntimos dos debates dentro da própria esquerda conseguirão entender: a de “esquerdismo” e “infantilismo político”.
E o que é esquerdismo?
No jargão político da própria esquerda, com base no livro de Lenin e na história, “esquerdismo” é a teatralização ou caricaturização do discurso socialista, quando se assume um vocabulário e posturas com pouca ou nenhuma preocupação com uma estratégia concreta e objetiva de poder.
De fato, o PCdoB sempre se cuidou de se afastar desse tipo de equívoco, embora muitas vezes tenha exagerado do outro lado, como quando apoiou Moreira Franco nas eleições de 1986, contra Darcy Ribeiro.
Mas os acertos do PCdoB, a meu ver, sempre foram bem maiores do que seus erros.
No momento, como simples observador da cena política nacional, entendo que o partido enfrenta um dos momentos mais desafiadores de sua história. Sua participação na chapa presidencial, paradoxalmente, não parece ter ajudado ao partido, na medida em que tirou de cena a candidatura de Manuela D’Ávila à legislatura federal, o que seria um passo importante para fazer com que a legenda superasse uma das cláusulas de barreira, e não precisasse se coligar a um outro partido (como teve que fazer com o PPL, dividindo seu já parco tempo de TV e recursos partidários).
Mas parte do PCdoB, como o próprio artigo de Murilo Ferreira deixa entrever, ainda se encontra vulnerável à “imposição” de estratégias que não são, necessariamente, as mais vantajosas para o partido.
Com a China se tornando a principal potência do mundo, e sendo um país de regime comunista, controlado pelo Partido Comunista Chinês, abre-se uma janela de oportunidade para o PCdoB construir uma nova narrativa. Mas a legenda precisaria, em minha humilíssima opinião, assumir um rumo próprio, independente, e, sem esquecer as questões democráticas, jogar mais peso num projeto de desenvolvimento baseado numa industrialização à chinesa, com foco na geração de empregos de qualidade, na absorção de tecnologias inovadoras, e na implementação de uma educação revolucionária e emancipadora.
Quanto à frente ampla, ela é importante, naturalmente. Mas a participação de cada partido na frente será tão ou mais importante na medida em que este partido representar, de fato, uma corrente de ideias própria, original, promissora.
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Abaixo, a íntegra do artigo comentado.
Frente ampla com toda firmeza
A frente ampla é uma tarefa urgente, inadiável e irredutível. É a única chance de reverter o grave quadro político. Ainda que haja riscos, como tudo na política.
por Murilo Ferreira da Silva
Publicado 18/06/2020 18:27
“A ação política se dá no dia a dia, no confronto direto das forças. E nós temos que nos juntar agora com toda firmeza. Nós não podemos estar fazendo agora discriminação ou estabelecendo critérios para entrar na frente. O critério básico para entrar na frente é ser contra Bolsonaro.” Haroldo Lima.
Vermelho — Como o exemplo da Covid-19, é melhor errar por excesso de leitos de UTI do que por falta. No caso da Frente Ampla, não tenho dúvidas quanto ao perigo da ascensão dos, como diz Haroldo Lima, “instintos” fascistizantes do atual governo e do “achatamento” da democracia no Brasil. Por isso temos que ter o máximo de responsabilidade e empenho para salvaguardá-la.
Em 2018, apesar da insistência do PCdoB na construção da frente ampla, parecia-me pura ilusão, mera ficção ou, no mínimo, uma missão extremamente improvável, já que a esquerda em geral, mas particularmente o PT e o PCdoB, se encontravam num isolamento político sem precedentes desde a redemocratização, ante uma conjuntura extremamente desfavorável, que incluía a prisão arbitrária e injusta do presidente Lula para impedi-lo de concorrer às eleições; a unidade das forças de direita, da mídia conservadora, de setores do judiciário e de um Congresso majoritariamente reacionário, além da disseminação de fake news e do envenenamento da classe média contra o PT.
Junte-se a isso a indisposição dos petistas de abrir mão da cabeça de chapa, mantendo Lula candidato até o limite, o que fez dissipar qualquer possibilidade de articulação mais ampla de forças. Numa atitude completamente diferente, o campo da esquerda argentino se uniu e Cristina Kirchner concorreu como vice de Alberto Fernández. Assim, derrotaram Macri. Muito provavelmente, aprenderam com o erro da esquerda brasileira na eleição de 2018.
Foi nessa perspectiva que se deu a aliança entre petistas e comunistas na disputa presidencial de 2018. Uma reedição da aliança histórica que se forjou desde 1989, mais estreita no primeiro turno, porém com maior amplitude no segundo. Contudo, teria sido possível uma alternativa frentista já no primeiro turno, ainda que isso sacrificasse os compromissos estabelecidos há décadas com o partido hegemônico da esquerda frente a ascensão do bolsonarismo? Quais alternativas estariam disponíveis à época? Se assim o fosse, teria evitado a vitória de Bolsonaro? São questões em aberto.
Mas é um fato evidente hoje que o PCdoB reafirma ainda mais o seu protagonismo histórico na construção de frentes amplas contra o autoritarismo e as forças de extrema direita, sempre recorrentes em suas aventuras golpistas. Como Haroldo Lima mesmo disse, certas forças de esquerda são muito novas, não tiveram como apreciar devidamente o passado político que remonta à década de 1930, a exemplo da trajetória do nosso partido e de dirigentes experientes como João Amazonas. Haroldo, que viveu todo o período da ditadura nas décadas de 1960 e 1970 diz que, quando as oposições se fracionaram, a ditadura se fortaleceu e, somente quando houve maior unidade e amplitude entre elas, que a ditadura se enfraqueceu.
O PT parece preferir o risco de enfraquecer ainda mais a democracia pelo fato de não aceitar a formação de uma frente ampla democrática. Vem colocando um óbice aqui e outro ali, evidenciando o temor de perder o protagonismo para partidos com ideais neoliberais no decorrer do processo político, ainda que agora, após a sanha golpista, essas forças se manifestem em favor da democracia. Motivo nobre. No entanto, o PT erra em relevar a correlação de forças políticas, crendo que, por um lado, o bolsonarismo está em decadência e, por outro, bastaria arregimentar as forças do partido, reorganizar as forças sociais, sindicais e demais forças da esquerda, para que se acelere a queda do atual regime e tudo volte a ser como antes. Ledo engano.
Para o PCdoB, a correlação de forças ainda é extremamente desfavorável e não se pode subestimar as forças da ultra-direita. O PT quer que o PCdoB e a esquerda em geral siga a sua orientação que tende ainda mais ao isolamento e à estreiteza política, a despeito de que estamos na beira de um precipício institucional e de uma perigosa irracionalidade generalizada que parece não ter fim na condução dos destinos da nação.
A frente ampla é uma tarefa urgente, inadiável e irredutível. É a única chance de reverter o grave quadro político. Ainda que haja riscos, como tudo na política. Nas eleições de 2018, apesar dos esforços do PCdoB por uma amplitude, a aposta se firmou numa frente de parte do campo da esquerda, que foi derrotada. Precisamos agora de mais ousadia na amplitude para construir uma aliança com todo mundo que se preocupa seriamente em derrotar o bolsonarismo e a escalada fascistizante. Se quisermos impor uma série de condições, na verdade óbices, estaremos subestimando a realidade adversa e num momento em que parte das forças que antes nos combatiam com veemência agora podem ser perfilar conosco na luta contra o mal maior.
Este pode ser o momento da virada democrática ou, então, da radicalização arbitrária e autoritária, a depender ou não da formação de uma frente política ampla e da unidade das forças progressistas, populares e democráticas no Brasil. O PT tem todo o direito de impor suas muitas condições, que o faça, sob pena de continuar no isolamento. O que o PT não tem direito é de querer impor ao PCdoB uma concepção estranha e das mais combatidas na história do nosso partido: o esquerdismo e o infantilismo político.
Murilo Ferreira da Silva
Engenheiro agrônomo e dirigente estadual do PCdoB-MG