Também comemorei a prisão de Fabrício Queiroz, ontem (18). O envolvimento do advogado de Flávio e Jair Bolsonaro na evidente tentativa de ocultação do ex-assessor do senador é uma bomba com potencial para deixar o presidente na defensiva enquanto durar seu mandato (sem falar nas revelações que devem surgir nas próximas semanas).
Se Bolsonaro pretendia colocar em prática suas insinuações de autogolpe, parece que o momento propício ficou para trás. Um golpe nunca é razoável, mas um golpe sob a liderança de uma família enrolada em um caso de corrupção das mais rasteiras não parece, sob nenhum ponto de vista, um bom negócio para as Forças Armadas.
Tabém assisti à esperada reportagem do Jornal Nacional sobre a prisão. Foi bem construída e tudo mais, mas não pude deixar de sentir um incômodo com o ar novelesco dado ao encarceramento de uma pessoa. Imagens de praticamente todos os momentos entre a invasão da casa em que Queiroz se encontrava até a sua chegada ao presídio onde permanecerá recluso, inclusive tomadas aéreas do helicóptero que o transportava.
O mero cumprimento de uma decisão judicial foi transformado, mais uma vez, em um espetáculo cinematográfico.
É evidente que as implicações políticas desse caso são importantes demais para que não haja uma cobertura intensa da mídia. A questão, contudo, é a maneira como essa cobertura é feita. Não criticávamos, com toda a razão, a espetacularização do processo penal nos tempos áureos da Lava Jato?
Jair Bolsonaro chamou a prisão de “espetaculosa”. Um entusiasta da tortura e da violência não faria essa crítica por motivos lá muito nobres, é claro; entretanto, quando deixamos de olhar criticamente para o espetáculo do encarceramento televisionado quando nos interessa politicamente, não estamos nos igualando a Bolsonaro, ao menos neste aspecto? O bom, o justo, o correto é o que nos beneficia?
Eu mesmo, repito, comemorei a prisão. Em tempos de luta cruenta contra a ascensão do fascimo, como não se alegrar com um acontecimento que encurrala o genocida que o Brasil elegeu, o Hitler tropical que está mandando milhares de brasileiros para a morte? Não cheguei a refletir sobre a comemoração. Qualquer desgaste de Bolsonaro é um respiro para o campo democrático e para a população inteira, afinal.
Mais tarde, contudo, li uns tuítes do jurista Rubens Casara que me deixaram pensativo. Ei-los:
Prisão é sempre, e sempre, imposição de sofrimento. Comemorar prisão, ainda que legal e necessária, é comemorar o sofrimento de uma pessoa. A crença em efeitos mágicos (ressocialização, por exemplo) da prisão é ingenuidade e o gozo com o sofrimento alheio é sintoma de sadismo.
Uma coisa é reconhecer a necessidade da prisão, outra bem diferente é sentir prazer e comemorar a restrição da liberdade de um ser humano.
Reconhecer a legalidade e a necessidade do encarceramento não faz da prisão algo que mereça ser comemorado.
Casara escreveu as linhas acima no dia da prisão de Sara Winter. Minha impressão é que a prisão da militante de extrema-direita gerou mesmo um sentimento de prazer entre boa parte dos indignados com a tragédia que vivemos. Já a prisão do Queiroz foi, me parece, mais comemorada por conta dos péssimos agouros que anuncia para os Bolsonaro.
Ainda assim, assistir a um espetáculo midiático em torno da privação da liberdade de um ser humano não precisa ser motivo para júbilo. E há pelo menos dois bons motivos para que não tenhamos essa atitude diante da prisão.
O primeiro é tático: o aparato repressor do Estado é o garantidor dos privilégios de gênero, classe, raça etc. Aplaudi-lo entusiasticamente, mesmo quando cumpre um papel positivo na luta pela emancipação humana, como um relógio quebrado que duas vezes por dia acerta a hora, é alimentar o monstro que fatalmente tentará nos devorar em seguida. Ver a, em tese, nobre atividade política cerceada, achacada e violentada pelos que detêm as armas e o poder de dar voz de prisão não é nada menos do que deprimente. Desconstruir ideias infantis como a de que resolveremos nossos problemas prendendo pessoas é um trabalho de longo prazo do qual não temos o direito de nos furtar.
O segundo é uma questão de consciência. Lutar pela libertação humana de toda forma de opressão inclui, logicamente, a libertação individual de cada um dos próprios demônios internos. O prazer com o sofrimento alheio é, não há dúvidas, um desses demônios. Não há razão para acreditar que estamos restritos ao nosso grau atual de consciência. O tempo da civilização humana na Terra é um nada diante da idade conhecida do Universo. Por que nossa condição belicosa seria o ponto final da evolução? Tudo indica que o egoísmo e os ímpetos violentos que se manifestam em cada mente humana podem ser extirpados. A humanidade conhece alguns caminhos para o domínio mental, como a reflexão ética e filosófica sobre os próprios sentimentos, pensamentos e ações ou a meditação e o yoga.
Não se trata de pregar o pacifismo indiscriminado, vejam bem. Há momentos em que o enfrentamento físico é a atitude mais nobre (ou a única) disponível. Entretanto, não se pode perder de vista que é possível criarmos mecanismos para evitar que seres humanos façam mal a outros sem alimentarmos o sadismo em nós. Que é preciso, mesmo que seja em futuro distante, desmontar os aparatos repressivos que usam da violência para sustentar sofisticadas redes de poder e dominação.
Que bom que a casa dos Bolsonaro está caindo. Que ótimo que os arreganhos autoritários dos seus apoiadores começam a ser enfrentados.
Que incrível podermos sonhar e trabalhar para construir uma sociedade livre de ódios, violências e prisões. Começando por cada um de nós.