Quando Bolsonaro tomou posse como presidente do país, naquele distante janeiro de 2019, tentei imaginar o momento em que Jair iria passar a faixa presidencial ao seu sucessor ou sucessora. Me pareceu uma cena improvável. O agressivo discurso anticomunista de seu alucinado guru, Olavo de Carvalho, e os pendores autoritários e métodos violentos de Bolsonaro eram bons indícios de que a próxima passagem de faixa não aconteceria conforme o script.
Um ano e meio depois, os acontecimentos dissiparam qualquer remota hipótese de que a vida democrática brasileira siga seu curso natural. Uma pandemia mortal está sendo a deixa para que Bolsonaro revele ao mundo sua psicopatia, seu desprezo pela vida, sua vocação para ser um genocida.
Ao repudiar o consenso científico sobre a necessidade da quarentena; incentivar as pessoas a irem às ruas; insuflar os empresários e seus apoiadores contra os governos estaduais e municipais que ordenaram a quarentena; e sonegar auxílio financeiro decente a todos os que dele precisam (enquanto abasteceu os bancos com trilhões de reais), Bolsonaro transformou o Brasil no epicentro mundial da epidemia. Graças ao presidente estamos iniciando o processo de reabertura enquanto o número de casos e mortes cresce de forma galopante.
A estratégia de Bolsonaro está resultando em dezenas de milhares de mortos a mais e no estendimento indefinido da quarentena (não é possível vislumbrar o pico da curva no horizonte).
É evidente que não se trata de um erro de cálculo. Basta observarmos a postura do presidente desde a eclosão da pandemia no Brasil para percebermos que sua estratégia jamais teve como objetivo a contenção do número de infectados e mortos, ou a subsistência da população. A agitação permanente de sua base, as provocações e agressões à imprensa, ao Congresso e ao Judiciário e, mais recentemente, as ameaças explícitas de fechamento do regime (as “consequências imprevisíveis” do General Heleno, o “é questão de quando [vai haver ruptura]” de Eduardo Bolsonaro e o “Acabou, porra!” proferido pelo próprio presidente e direcionado ao STF, bem como a divulgação de um debate sobre intervenção militar) tornam inescapável a conclusão de que Bolsonaro quer o caos social para justificar uma estapafúrdia concentração de poderes nas mãos da presidência da República.
A partir dessa conclusão podemos antever dois caminhos – ambos sem volta para o genocida.
O primeiro é a perpetração do autogolpe. Bolsonaro tem o apoio de boa parte dos policiais militares, que naturalmente tendem a se alinhar a um projeto autoritário de direita, e, por óbvio, das milícias. O bolsonarismo é forte também no exército, tanto por alinhamento ideológico quanto pelos milhares de cargos que integrantes da forças armadas ocupam no governo federal. Há, contudo, dissidências importantes, como a explicitada pelo general Santos Cruz neste artigo, advertindo aos afoitos generais aliados de Bolsonaro sobre o erro estratégico de “fazer parte da dinâmica de assuntos de rotina política”.
O risco sanitário envolvido em manifestações de rua é um trunfo de Bolsonaro. Sem protestos de massa contra um eventual golpe, Bolsonaro pode, sim, subjugar o Judiciário e o Congresso por meio da invenção de algum arremedo de legislação que lhe dê amplos poderes combinada à ameaça de uso da força contra quem se rebelar. Sergio Moro (que resolveu revelar diversos atos ilícitos cometidos por Bolsonaro enquanto ele era ministro, ou seja, vem confessando alguns crimes de prevaricação) divulgou hoje uma nota em que afirma que o presidente pretendia facilitar o porte de armas para “promover uma espécie de rebelião armada contra medidas sanitárias impostas por governadores e prefeitos”.
Policiais, milicianos, soldados e generais do exército, mais cidadãos “de bem” armados: Bolsonaro pretende fazer valer a velha máxima de que, na política, ao fim e ao cabo quem tem as armas tem o poder.
Entretanto, mesmo que as forças armadas embarquem em uma aventura autoritária comandada por um psicopata/genocida – que rebaixou o Brasil a pária internacional e que poderá sair da pandemia com mais de 100 mil mortos nas costas – e Bolsonaro tenha sucesso em seu intento, é impensável que um fechamento de regime tenha vida longa em um país como o Brasil. Somos uma das maiores economias do planeta, os apoiadores de Bolsonaro são minoria (algo em torno de 30% e caindo), sua imagem no exterior é horrorosa. Cedo ou tarde as ruas serão tomadas e, sendo inviável o assassinato de milhões de pessoas pelas milícias do mito, o triunfo de Bolsonaro será uma vitória de Pirro.
O segundo cenário é a queda de Bolsonaro antes de sua tentativa de golpe. Os ministros do STF Celso de Mello e Alexandre de Moraes partiram para a briga aberta; tudo indica que algo como um duelo de velho oeste está prestes a acontecer entre dois dos poderes da República. (Os ministros indicados pelo PT, curiosamente (ou não) são os que oferecem menos resistência aos arreganhos golpistas do poder executivo.) A grande mídia e os partidos da direita “limpinha” tendem a topar a derrubada de Bolsonaro. Assim que os ventos apontarem de vez para a queda, o Congresso vai junto.
As ruas, até ontem dominadas por apoiadores do governo federal, muito por conta da pandemia, voltaram a ser disputadas. Em Porto Alegre, manifestações antifascistas dispersaram atos golpistas nos últimos finais de semana. Ontem, manifestações antifascistas explodiram também em outras capitais. Em São Paulo houve confronto físico com os bolsonaristas e com a PM. Apareceram, inclusive, surpreendentes manchetes de grandes veículos de mídia falando em agressão da polícia contra manifestantes a favor da democracia. (Nada como uma ameaça concreta à liberdade de expressão para que se faça um bom uso da mesma…)
À viralização dos vídeos das manifestações seguiu-se uma notável onda de adesões ao movimento antifascista nas redes sociais. Enquanto isso, Jair Bolsonaro e Eduardo Bananinha corriam para baixo das asas do papai do norte, Donald Trump. Este anunciou, em meio a protestos massivos contra o racismo de Estado, que seu governo passará a considerar o movimento antifascista como “terrorista”; seus patéticos acólitos brasileiros, como garotos de colégio que chamam o amigo mais forte para lhes dar suporte em uma briga, repercutiram a declaração do presidente norte-americano, tentando colocar medo na reação antifascista brasileira.
Não terão sucesso. O que está acontecendo é a materialização da terceira lei de Newton, a da ação e reação. A ascensão fascista mundial parece estar fazendo ressurgir, finalmente, um sentimento antifascista de massas. Se a militância bolsonarista não sairá das ruas facilmente, muito menos os antifascistas o farão. Os enfrentamentos estão só começando. O lado governista está, contudo, em franco declínio; o oposicionista tende a crescer exponencialmente.
É surreal que tudo isso esteja acontecendo em meio a uma pandemia devastadora. Por outro lado, é lógico que os epicentros mundiais da pandemia e do levante antifascista sejam justamente os países comandados pelos boçais de extrema-direita (desculpem o pleonasmo) Trump e Bolsonaro que, burramente, menosprezaram o poder do vírus. Humildade diante de um inimigo mais forte não costuma ser o forte de ditadores…
O oceano profundo de ódio que repousava nos espíritos humanos, à espreita de uma oportunidade para vir à tona, foi vocalizado por eles e transformado em maremoto. Podemos estar presenciando o início do refluxo. Agora, a água vai chegando ao pescoço do cara cor de laranja e do talkey. Tenham ou não sucesso em suas empreitadas de curto prazo, no médio e no longo serão inapelavelmente derrotados.
Oxalá seja a vitória derradeira da humanidade contra suas próprias tendências autoritárias, discriminatórias e violentas.
Viva a ação antifascista.