Falta de investimento e estratégia para inovação dificultarão saída da crise no Brasil
Governo brasileiro não está financiando nenhuma pesquisa sobre a covid-19 com recursos novos, aponta nota técnica da Rede de Pesquisa Solidária
Jornal da USP — A tradicional dependência científica e tecnológica do Brasil se tornou visível para a população com a escassez de equipamentos e testes para o combate à covid-19. Essas lacunas poderiam ser minimizadas com uma estratégia coordenada de investimento em pesquisa e desenvolvimento, o que até agora não ocorreu. A conclusão é apontada pelos pesquisadores que produziram a Nota Técnica 6, da Rede de Pesquisa Solidária. De acordo com os autores da nota, embora o governo federal tenha previsto investimentos de 466,5 milhões de reais para pesquisa e desenvolvimento relacionados ao enfrentamento da doença, ele publicou apenas dois editais no valor de 60 milhões de reais, com resultados previstos para junho. O que significa que, até o momento, o governo brasileiro não está financiando nenhuma pesquisa sobre a doença com recursos novos. O que é chocante, não tanto pelo volume bem menor investido pelo Brasil, mas pela inação diante da crise. Mesmo com recursos menores, o Brasil poderia fazer muito mais.
Segundo a nota, a saída efetiva da crise depende da capacidade humana de produzir vacinas, medicamentos e tratamento adequado para a ccovid-19. Por isso, além das medidas de controle da pandemia e suas consequências econômicas e sociais, muitos países ampliam o investimento em pesquisa e em inovação e desenham novas estratégias científicas contra o vírus e de preparação para o pós-crise. Somente nos Estados Unidos foram alocados mais 6 bilhões de dólares exclusivamente para pesquisas sobre a covid-19, cerca de 4% do investimento em P&D realizado pelo governo em 2019. O Canadá ampliou em cerca de 12% os investimentos federais em P&D. E novas políticas públicas na Alemanha e Reino Unido procuram garantir e acelerar sua capacidade de recuperação no pós-crise.
Muitos países investem fortemente na única saída de longo prazo da crise: a ciência e a tecnologia. Os pesquisadores apontam que, pelos dados, o Brasil se destaca praticamente pela ausência de amparo público à pesquisa. Não tanto pelo volume dos investimentos, quando comparados aos Estados unidos, Canadá, Reino Unido e Alemanha, mas pela inação do governo, que demonstra uma ausência de sintonia com o que se faz de mais avançado e pela incapacidade de alocar com agilidade os poucos recursos que o País possui.
Os pesquisadores apontam que o posicionamento do governo federal condena o Brasil a ser apenas um usuário de ciência e tecnologia. A exemplo do que ocorreu em outras pandemias de menor porte, sem estratégias para o desenvolvimento de vacinas e outros medicamentos, o País corre o risco de ficar completamente desprovido de eventuais vacinas, equipamentos e insumos médicos que serão orientados para abastecer os países com maior competência científica e maior poder de compra. A nota técnica, coordenada por Fernanda De Negri e Priscila Koeller, do Centro de Pesquisa em Ciência, Tecnologia e Sociedade do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), contou com a participação dos pesquisadores Graziela Zucoloto e Pedro Miranda, ambos do Ipea.
Investimentos
Investimentos em pesquisa realizados diretamente pelos governos não são as únicas medidas concretas que são tomadas por vários países, destacam os autores da nota. Alguns estão preocupados com a capacidade de suas empresas inovadoras sobreviverem à crise. Sabem que empresas inovadoras serão fundamentais na retomada do crescimento no pós-crise, como fizeram a Alemanha e o Reino Unido, que criaram ou reforçaram fundos de investimento em empresas inovadoras a fim de garantir o fôlego financeiro necessário para esse período difícil de transição. A adoção de medidas consistentes – na saúde, na economia e na sociedade – requer que os governos estejam bem informados sobre a doença, suas consequências de curto, médio e longo prazo. Não foi por acaso que muitos países criaram comitês científicos de assessoramento aos governos federais, para auxiliar na elaboração de medidas capazes de conter a pandemia.
Desde o início da crise, o governo dos Estados Unidos já lançou três grandes pacotes de medidas sanitárias e econômicas para combatê-la. O primeiro foi o Coronavirus Preparedness and Response Supplemental Appropriations Act, de 6 de março. Nessa lei, foram destinados 836 milhões de dólares adicionais para pesquisa sobre a covid-19 no Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas, um dos Institutos Nacionais de Saúde (NIH). Essa lei também inclui um orçamento adicional de 3,1 bilhões de dólares para um fundo emergencial para saúde e serviços sociais, vinculado ao Departamento de Saúde. Esse aditivo mais do que dobrou o orçamento disponível para este fundo, que era de 2,6 bilhões de dólares em 2019. Parte significativa desses recursos será direcionada para a Biomedical Advanced Research and Development Authority (BARDA), responsável pela realização de pesquisa e desenvolvimento em biomedicina. Com o agravamento da crise, o governo promulgou o Families First Coronavirus Response Act, com medidas sanitárias e de assistência à saúde, e o pacote mais amplo de medidas econômicas, denominado de Cares Act, prevendo a injeção de mais de 1 trilhão de dólares (aproximadamente 5% do PIB) em novos recursos na economia, sendo 500 bilhões de dólares em gastos públicos diretos e 500 bilhões de dólares em crédito para empresas (60% dirigido para os pequenos negócios). Neste pacote, novas dotações orçamentárias para pesquisa e desenvolvimento foram feitas, totalizando mais de 6 bilhões de dólares.
A Alemanha preparou um pacote de medidas para o enfrentamento da pandemia da ordem de 750 bilhões de euros (cerca de 20% do PIB). Uma parte das medidas será financiada a partir da aprovação de um orçamento suplementar que foi publicado ao final de março, e prevê recursos adicionais de 122,5 bilhões de euros. Esse orçamento suplementar inclui € 160 milhões para o Ministério da Educação e Pesquisa, dos quais 145 milhões são dirigidos à pesquisa e inovação na área da saúde e economia da saúde, especificamente, para o desenvolvimento de vacina e tratamentos da covid-19. Embora os recursos adicionais diretamente aplicados à pesquisa e desenvolvimento em covid-19 não sejam tão expressivos quanto os dos Estados Unidos, a Alemanha lançou medidas de proteção de start-up e investiu 2 bilhões de euros em fundos de capital de risco, com o objetivo de garantir que as empresas inovadoras de menor porte possam sobreviver à epidemia. Somando-se esses recursos aos do orçamento suplementar, o volume previsto para pesquisa e inovação é da ordem de 2,1 bilhões de euros.
O governo federal do Canadá também anunciou fortes medidas para conter a crise. A primeira foi o Covid-19 Response Fund, voltada para a saúde e a segurança da população. Esse fundo passou a compor o Canada’s Covid-19 Economic Response Plan, com destaque para o investimento adicional de 275 milhões de dólares canadenses em pesquisa para o desenvolvimento de vacinas, antivirais e ensaios clínicos. Após a criação do fundo, foram lançados em março editais alinhados com as diretrizes estabelecidas pela OMS e totalizaram 52,6 milhões de dólares canadenses, selecionando, em tempo recorde, 96 grupos de pesquisa em todo o país. Além disso, o Strategic Innovation Fund Covid-19 destinou 192 milhões de dólares canadenses em projetos de apoio a grandes empresas canadenses que desenvolvam soluções para a superação da pandemia.
A exemplo de outros países, as medidas econômicas adotadas pelo Reino Unido para combater a crise do coronavírus foram expressivas. Em março foi divulgado um pacote de estímulo fiscal de 30 bilhões de libras, que incluía subvenções para os pequenos negócios, incentivos fiscais, além de cerca de 5 bilhões de libras para o National Health Service (NHS). O Reino Unido também lançou uma aliança para sequenciar o genoma do vírus e acompanhar suas mutações no país, o Covid-19 Genomics UK Consortium, do qual participam instituições públicas e privadas e que recebeu investimento inicial de 20 milhões de libras. Em relação à inovação, o Reino Unido anunciou, no início de abril, um fundo de 20 milhões de libras para o desenvolvimento de novas tecnologias com foco em novas formas de trabalho a fim de fortalecer a resiliência das empresas em diversas indústrias, diante do distanciamento social. Esse fundo entrará com subvenções de até 50 mil libras para empresas com projetos de inovação em meio à crise. O país também está fortemente comprometido com pesquisas relacionadas ao desenvolvimento de vacinas para o vírus, com recursos que ultrapassam 250 milhões de libras.
Quadro representa o investimento de diferentes países no enfrentamento da covid-19; Canadá investirá 11,8% do orçamento federal em pesquisa e desenvolvimento para fazer frente à crise provocada pela doença, enquanto no Brasil a porcentagem é de 1,8% – Imagem: Reprodução
Situação do Brasil
Os pesquisadores que elaboraram a nota afirmam que o quadro do Brasil não é animador, apesar da energia e disposição que afloraram em universidades e centros de pesquisa. O País não conta com estratégias públicas de longo prazo para enfrentar, atravessar e sair da crise. Mesmo as políticas de distanciamento social estão sendo realizadas sem nenhum tipo de coordenação federal. A comunidade científica tem assessorado alguns governos estaduais na definição dessas medidas, o que vem sendo importante. Mas no âmbito federal, embora o Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovação, Comunicações e Correios (MCTIC) tenha criado a chamada Rede Vírus, para reunir especialistas em saúde, nada indica que esta rede esteja sendo ouvida para elaborar políticas consistentes e cientificamente embasadas de enfrentamento à pandemia.
Recursos do governo brasileiro destinados à pesquisa e desenvolvimento no combate à covid-19; medidas fiscais, estimadas em 211 bilhões de reais, incluem auxílio emergencial a trabalhadores informais e compensação salarial a trabalhadores com jornada reduzida – Imagem: Reprodução
As medidas fiscais foram estimadas, pela Instituição Fiscal Independente (IFI), em 211 bilhões de reais (o equivalente a 2,9% do PIB). Entre as principais estão o auxílio emergencial de 600 reais para trabalhadores informais e a compensação salarial para trabalhadores que tiveram redução da jornada de trabalho em virtude da crise. Os recursos previstos até o momento para pesquisa e desenvolvimento pelo governo brasileiro, em face da crise da covid-19, totalizam cerca de R$ 466,5 milhões. O País exibe lacunas tecnológicas visíveis na falta de respiradores, Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) e testes para a doença. As tentativas para o desenvolvimento doméstico de alguns desses equipamentos foram totalmente descoordenadas e nem sempre envolveram as competências tecnológicas existentes no País. Condenar o Brasil a ser usuário de tecnologias desenvolvidas em outros países, diante dos problemas não resolvidos criados pelo coronavírus, é expor a população ao risco de novas contaminações, observa a nota.
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), é possível que o SARS-COV2 se estabeleça como um vírus endêmico e persistente, semelhante ao influenza. Se essa possibilidade se confirmar, não haverá vacina disponível para toda a população do planeta por vários anos. Para barrar a expansão do vírus seria necessário vacinar cerca de 6 bilhões de pessoas para formar o que se chama de imunidade de rebanho e diminuir a propagação do vírus. Os pesquisadores afirmam que, para além das preocupações estritamente médicas, é preciso considerar que a rede de fornecimento de insumos sempre tendeu a abastecer os países mais avançados. E não há sinais de que será diferente de outras pandemias.
Isso significa que a assimetria entre países vai cobrar, mais uma vez, um alto preço (em sequelas ou vidas) dos países mais pobres, alertam os autores da nota. Segundo dados do Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) dos Estados Unidos, em 2009, cerca de 80 milhões de americanos vacinados durante a pandemia da gripe suína absorveram o mesmo número de doses da vacina enviadas a 77 diferentes países pela OMS. A escassez de respiradores é um pequeno alerta para os países em desenvolvimento, que conseguiram acesso muito limitado a esses equipamentos durante a atual pandemia.
O agravamento da histórica dependência tecnológica arrisca condenar o País ao desalento diante da escassez de equipamentos médicos e de tratamentos avançados. Ou seja, sem condições para proteger sua população e salvar vidas. O Brasil precisa urgentemente de políticas coordenadas no presente e construir uma estratégia de futuro para a ciência e tecnologia. Para isso, contudo, é fundamental a definição de prioridades, embasadas no melhor conhecimento científico disponível, bem como a ampliação do investimento em pesquisas sobre a doença, para além dos 470 milhões de reais prometidos até o momento e dois editais que somam 60 milhões de reais, cujos resultados devem sair apenas em junho. Com certeza, o Brasil pode e merece mais do que isso, concluem os pesquisadores.
Rede de Pesquisa Solidária
A Rede de Pesquisa Solidária é uma iniciativa de pesquisadores para calibrar o foco e aperfeiçoar a qualidade das políticas públicas dos governos federal, estaduais e municipais que procuram atuar em meio à crise da covid-19 para salvar vidas.
O alvo é melhorar o debate e o trabalho de gestores públicos, autoridades, congressistas, imprensa, comunidade acadêmica e empresários, todos preocupados com as ações concretas que têm impacto na vida da população. Trabalhando na intersecção das Humanidades com as áreas de Exatas e Biológicas, trata-se de uma rede multidisciplinar e multi-institucional que está em contato com centros de excelência no exterior, como as Universidades de Oxford e Chicago.
A coordenação científica está com a professora Lorena Barberia (Ciência Política USP). No comitê de coordenação estão: Glauco Arbix (Sociologia-USP e Observatório da Inovação), João Paulo Veiga (Ciência Política USP), Graziela Castello, do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), Fábio Senne (Nic.br) e José Eduardo Krieger, do Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da USP (INCT-InCor). O comitê de coordenação representa quatro instituições de apoio: o Cebrap, o Observatório da Inovação, o Nic.br e o InCor.
A divulgação dos resultados das atividades será feita semanalmente através de um boletim, elaborado por Glauco Arbix, João Paulo Veiga e Lorena Barberia. São mais de 40 pesquisadores e várias instituições de apoio que sustentam as pesquisas voltadas para acompanhar, comparar e analisar as políticas públicas que o governo federal e os estados tomam diante da crise. “Distanciamento social, mercado de trabalho, rede de proteção social e percepção de comunidades carentes são alguns dos alvos de nossa pesquisa. Somos cientistas políticos, sociólogos, médicos, psicólogos e antropólogos, alunos e professores, inteiramente preocupados com o curso da crise provocada pelo coronavírus no mundo e em nosso país”, define Glauco Arbix.
As notas anteriores estão disponíveis neste link.
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