Em sua entrevista a CNN Brasil, o ex-ministro Ciro Gomes abordou uma de suas teses sobre os erros estratégicos da esquerda, segundo a qual as políticas identitárias fragmentaram a luta nacional-popular.
Sua declaração:
“Não é que as questões identitárias não sejam justas, não tenham que ser patrocinadas. As mulheres são perseguidas mesmo. Os negros são a parte mais vulnerável e mais perseguida mesmo. Os jovens são mais perseguidos mesmo. A comunidade LGBTQI sofre todo o tipo de selvageria e discriminação. E eles tem que ser protegidos. A questão é que a soma desses interesses identitários não representam o interesse nacional. E o interesse nacional é que a chave para a gente se reconciliar com a maioria do povo”.
A tese não foi inventada por Ciro Gomes. É uma reflexão que tem sido feita por inúmeros intelectuais de países democráticos, que vem observando um fenômeno perigoso: o avanço, dentro do campo progressista, de valores identitários, constituiria um fator de fragmentação e desagregação da classe trabalhadora, além de ter aberto o espaço para que a direita, em especial a extrema-direita, adotasse o discurso de “união nacional” e “defesa das maiorias”.
Antes, esse discurso pelas “maiorias” pertencia à esquerda, porque a direita, por sua vez, defendia uma “minoria” de proprietários e rentistas.
Se a esquerda decidiu não mais falar às maiorias (vistas como conservadoras), então a direita viu a oportunidadde de se apresentar como a campeã das maiorias, e passou a varrer a esquerda do mapa no mundo todo, Brasil incluso!
Bolsonaro percebeu esse ponto-fraco (não sabemos se recebeu alguma “dica” de seu amigo Steve Bannon) e disse exatamente isso num de seus discursos de campanha: que o Brasil pertence às “maiorias”.
Nos EUA, o professor Mark Lilla, um intelectual de centro-esquerda, se tornou o grande campeão das críticas ao identitarismo, o que lhe valeu também uma campanha de “cancelamento” e agressões.
Angustiado com o avanço de conservadores em todo o país, Lilla publicou um artigo no New York Times no qual atribui a vitória de Trump à fragmentação produzida pelo identitarismo nas hostes do Partido Democrata. O artigo foi o mais lido do New York Times em 2016, e foi ampliado num livro que se tornou um best seller: O progressista de ontem e o do amanhã: Desafios da democracia liberal no mundo pós-políticas identitárias.
Pela fala de Ciro, cheia de dedos, percebe-se que ele tem consciência de que está diante de um ponto extremamente delicado, suscetível a todo tipo de críticas – justas e injustas – por parte da esquerda identitária, hoje hegemônica no campo progressista (apesar de derrotada no campo eleitoral).
O identitarismo chegou para ficar. Ele enraizou-se definitivamente dentro do campo progressista.
Ciro está errado, ao menos na maneira como se expressou. A soma das lutas identitárias representam, sim, o interesse nacional, na medida em que a luta de negros, gays e mulheres é por um país mais justo e mais democrático, o que seria bom para todos.
Por outro lado, é verdade que as lutas identitárias nem sempre são compreendidas como universais pela população.
Sobretudo, é verdade que a esquerda precisa de um discurso nacional, centrado na questão do emprego, do salário, e do desenvolvimento. Esse é o único discurso capaz de mobilizar as maiorias e vencer eleições majoritárias em prefeituras, governos de estado e presidência da república. Além disso, é preciso tirar a bandeira da defesa da “maioria” das mãos da direita.
Aí é que eu vejo um problema real nas esquerdas identitárias: elas desenvolveram uma cultura de intolerância. Toda crítica, de ordem estratégica ou filosófica, ao espaço tomado pelas políticas identitárias dentro do campo progressista, é tratada com uma virulência absolutamente desproporcional. Esse debate, fundamental para o futuro de nossas democracias, permanece então bloqueado, e a direita continua avançando e ganhando eleições, para desgraça de todas as… minorias.
Outro problema da política identitária é a hipocrisia e o oportunismo.
Não adianta nada termos um discurso identitário, em defesa de negros, gays e mulheres, por exemplo, e ao mesmo tempo adotar políticas de segurança pública que fizeram do Brasil o campeão mundial de violência contra negros, gays e mulheres.
O discurso político, identitário ou não, quando não se materializa em ações concretas, perde o respeito do povo.