Lula X Ciro: a batalha pela liderança da oposição

O twitter de Lula, dando um “siga seu caminho, vá com Deus” para Ciro Gomes, soou como uma aceitação, finalmente, do divórcio que o trabalhista vem pedindo ao ex-presidente desde a vitória de Bolsonaro em 2018.

Lula já tinha dado algumas respostas duras a Ciro em entrevistas. Numa delas, por exemplo, concedida enquanto ainda estava preso, disse que Ciro “não mereceu os votos que recebeu”. Afirmação estranha, como se Lula tivesse algum tipo de propriedade sobre os eleitores de outros partidos. 

Em termos de alfinetadas, críticas ou mesmo ataques, todavia, Ciro Gomes não pode reclamar de nada, porque é ele quem os vem fazendo a Lula da maneira mais direta e dura possível. Em algumas oportunidades, inclusive, Ciro ultrapassa o bom senso, dá golpes abaixo da cintura e adota o mesmo tipo de excessos emotivos que ele mesmo tanto critica. 

Algumas circunstâncias, porém, servem de atenuantes à postura bélica de Ciro em relação ao PT: embora os dirigentes da legenda, incluindo Lula, mantenham na maior parte do tempo um elegante silêncio em relação às críticas do pedetista, sites e influencers identificados com o PT fazem carga pesada contra Ciro diuturnamente, desde o primeiro turno de 2018 até hoje.  

Além disso, a esquerda naturalizou tanto o hegemonismo do PT que parece sequer ter consciência de como ele se manifesta. Um exemplo são alguns órgãos de comunicação criados com verbas sindicais para veicularem informação de toda “classe trabalhadora”, mas que se restringem a ecoar as narrativas de apenas um partido. A TV Cultura, gerida por tucanos há décadas, é infinitamente mais democrática que a “TV dos trabalhadores”. A triste ironia é que esses setores autoritários da esquerda (que sequer tem muita noção de seu próprio autoritarismo) apenas sabotam suas próprias iniciativas de comunicação, pois que pouca gente se interessará em assistir programas que não apresentarão nenhuma novidade, nenhuma surpresa, nenhuma polêmica. O PT governa a Bahia há muitos anos, e a TV pública da Bahia, quando se aventura a entrevistar políticos, apenas entrevista políticos do… PT. 

Outro absurdo hegemonista, que o próprio PT parece não ter consciência – e que seus partidos aliados, como PSOL e PCdoB, também normalizaram – é o uso descarado de sindicatos e centrais sindicais, que receberam enormes somas de dinheiro público do governo federal, como ferramentas de um partido. Isso não é democrático. Centrais sindicais podem e devem ter lado, mas um mínimo de pluralidade seria bom para todo mundo, até mesmo para as próprias centrais, que se tornariam mais representativas e teriam melhor imagem na sociedade. 

De qualquer forma, ontem Lula não mais se conteve e postou a mensagem que corresponde à assinatura dos documentos de um divórcio político litigioso e barulhento. 

 

Não vou comentar a menção a Marina Silva, que me pareceu meio fora de propósito, já que a ambientalista “escolheu outro caminho” (a saber, longe do PT) há muito tempo.

O que importa nesse tweet é sua referência a Ciro Gomes. 

Alguém poderia afirmar que Lula foi injusto e que Ciro não busca exatamente o eleitor que “odeia o PT”, mas o eleitor crítico ao PT, o que é muito diferente. Mas isso seria antes a estratégia ideal que deveria ser seguida por Ciro, e não a sua postura real,  que dá um pouco de razão a Lula. Ciro escolheu o caminho do excesso, possivelmente por ter entendido que essa seria a única maneira de descolar, de uma vez por todas, a sua imagem do PT.  Diante da hegemonia do antipetismo, evidenciada na eleição de Bolsonaro, especialmente no Sudeste, Ciro deve ter entendido que é melhor pecar pelo excesso do que pela prudência. 

Quem observa de perto a dinâmica das redes sociais de oposição, não deixa de notar a divergência crescente entre dois pólos importantes do campo progressista. Para efeito de simplificação, chamemos o bloco PT-PCdoB-PSOL de bloco petista, e o bloco PSB-PDT-Rede-PV-Cidadania de bloco trabalhista. 

O PT fez um movimento brusco à esquerda, tentando se manter líder do campo. De certa maneira, conseguiu. A força de todo tipo de promessas de apoio político e eleitoral, mas também pelas circunstâncias políticas que voltaram a reunir os partidos (luta contra o golpe e Lula livre, sobretudo), o PT vem mantendo o PSOL sempre muito próximo. Marcelo Freixo, Guilherme Boulos e Juliano Medeiros tem sido os principais fiadores dessa aliança. O PT apoiou Freixo nas eleições para presidência da Câmara (embora não lhe tenha dado todos os votos), e havia prometido apoio nas eleições municipais do Rio de Janeiro, o grande sonho do deputado. 

De olho também no PCdoB, ao qual o PT deu a posição de vice em sua chapa nas eleições de 2018 como maneira de mantê-lo sob sua influência, Lula acena frequentemente para a possibilidade de apoiar a candidatura de Flavio Dino à presidência da república, o que um analista mais frio e com a cabeça posicionada fora das bolhas esquerdistas, sabe que não apenas seria uma chance remota (não foi o próprio Lula que declarou, recentemente, que o PT nasceu para “ser apoiado” e não para “apoiar”?), como também não seria a estratégia mais inteligente para derrotar Jair Bolsonaro, na medida em que daria à extrema-direita a chance de evitar discutir os erros do governo e centrar sua campanha na luta contra o “comunismo”. 

No outro lado do campo da oposição de centro-esquerda, temos Ciro Gomes, o PDT, o PSB, a Rede, e agora também o Cidadania. 

Esse bloco tem muitos problemas. A sua coesão não é perfeita. Em 2018, o PSB rompeu tantos acordos que havia estabelecido com o PDT, que é difícil prever se a aliança entre os dois se manterá até 2022. Aliás, Lula deve estar maquinando como repetir a proeza de 2018, quando conseguiu quebrar a aliança entre PDT e PSB, obtendo a “neutralidade” dos socialistas, o que serviu para isolar Ciro Gomes, cuja única esperança de chegar ao segundo turno repousava, por várias razões, no apoio do PSB.

Neste sentido, o principal trunfo do ato nacional contra Bolsonaro, o Janelas pela Democracia, realizado no último dia 19 de maio, foi criar uma experiência em comum entre os dois partidos. O ato em si teve resultados modestíssimos, e apenas não pode ser considerado um fiasco, porque alcançou ao menos um resultado importante, para dentro, que foi possibilitar o primeiro passo para a criação de um bloco de oposição alternativo à esfera de influência petista, formado por PDT, PSB, Rede, PV e Cidadania. 

Quanto ao bloco petista, ele também se materializou esta semana,  no anúncio de um pedido coletivo de impeachment. Outras legendas de esquerda tambẽm se somaram à iniciativas, mas não tem representação parlamentar, nem federal, nem estadual, nem municipal.

Do ponto de vista dos acordos eleitorais, o bloco trabalhista saiu na frente, com uma aliança nacional entre PDT e PSB que parece estar se desenvolvendo sem grandes problemas.

O bloco petista, porém, enfrenta uma ruptura em Porto Alegre, com o PSOL abandonando a discussão de apoio à Manuela D’Ávila. O bloco ficou apenas entre PT e PCdoB. A deputada federal Fernanda Melchionna, do PSOL, fez uma série de duras críticas ao PT e se lançou como pré-candidata à prefeitura da capital. E houve um abandono de candidatura no Rio de Janeiro, com Marcelo Freixo dando entrevistas com reclamações  sobre a falta de apoio do PDT. As reclamações de Freixo são injustas, porque o PDT sempre foi transparente e franco nesse ponto; desde o início defendeu sua própria candidata e nunca fez qualquer falsa promessa de apoio a Freixo.

Eu preparei algumas tabelas e gráficos para visualizarmos a força e o tamanho de cada um dos partidos de esquerda, e desses dois blocos, ainda imaginários, mas que já começaram a se materializar em pelo menos duas ações concretas: na ação coletiva de impeachment, onde se evidenciou a formação do bloco liderado pelo PT; e a organização do protesto virtual contra Bolsonaro, Janelas pela Democracia, tocada pelo bloco trabalhista. 

Atualizei uma tabela que eu já tinha trazido aqui em março, com o tamanho dos principais partidos de esquerda e centro-esquerda. Alguns partidos perderam parlamentares (o PDT perdeu uma senadora, por exemplo). 

Acrescentei um dado novo: a quantidade de votos válidos recebidos por prefeitos e vereadores eleitos em 2016. 

Em 2016, o PSB ficou em primeiro lugar, dentro do campo da esquerda, em número de prefeitos eleitos, e também em quantidade de votos recebida por esses prefeitos. O PSB elegeu 405 prefeitos, os quais receberam 3,5 milhões de votos em 2016. Em segundo lugar neste ranking, veio o PDT, com 330 prefeitos e 2,4 milhões de votos. O PT veio em terceiro, com 256 prefeitos e 1,72 milhões de votos. 

Em número de vereadores, o primeiro lugar foi do PDT, que elegeu 3.765 vereadores, os quais reuniram 4,6 milhões de votos; em segundo, o PSB, com 3.628 vereadores e 4,48 milhões de votos; em terceiro, o PT, com 2.8213 vereadores e 3,62 milhões de votos. 

Em número de deputados federais e governadores, os blocos são parecidos.

Agora olhemos para os blocos imaginários. 

O bloco petista tem 71 deputados contra 72 deputados do bloco trabalhista. O bloco petista tem 5 governadores, contra 4 do bloco trabalhista. 

Na esfera municipal, todavia, a superioridade do bloco trabalhista é clara. Enquanto o bloco petista tem 339 prefeitos, que receberam 2,3 milhões de votos, o bloco trabalhista comanda 957 administrações municipais, eleitas com quase 8 milhões de votos.

O bloco petista tem 3.870 vereadores, que receberam 5,7 milhões de votos, contra 10.762 vereadores do bloco trabalhista, que receberam 13,0 milhões de votos. 

 

 

 

Entretanto, esses números brutos ainda não são a força principal de cada partido ou bloco. Força, em política, é perspectiva de poder.

A grande questão, na verdade, é qual bloco tem mais condições políticas de ampliar seu leque de apoio ao centro?

Quais são os sinais para as eleições municipais?

Segundo reportagem da a Folha de São Paulo, de 17 de janeiro deste ano, o PDT vem costurando um grande acordo com o DEM no Nordeste. As conversas foram realizadas entre Ciro Gomes e Rodrigo Maia, presidente da Câmara dos Deputados. É um sinal importante de aproximação do bloco trabalhista com setores do centro político.

Outra notícia, publicada no UOL, no último dia 11 de maio, informa que 34% dos vereadores do PT em São Paulo saíram do partido, para disputar a reeleição por outras legendas. Embora a reportagem peque pela falta de informação sobre outros partidos, é díficil olhar para essa reportagem sem interpretá-la como um péssimo sinal para o PT nas eleições municipais deste ano, ao menos no Sudeste. 

Não seria surpreendente, todavia, que tenha havido uma enorme dança das cadeiras em todos os partidos. A razão seria a mesma alegada pelos vereadores que saíram do PT: mudança da legislação eleitoral, proibindo coligações, a qual estimula que os vereadores migrem para partidos que detenham prefeituras. Procurei mais informações sobre isso nos bancos de dados do TSE, mas ainda não encontrei. Até o momento, a informação que temos refere-se apenas ao PT, e não são boas. 

À guisa de conclusão, é importante discutir rapidamente a tese da “união da esquerda”. Ela é a melhor estratégia para derrotar Bolsonaro? O que ela significa? Uns dizem que não é hora de ninguém criticar o outro. Que Ciro não deveria criticar Lula ou o PT, nem o PT bater em Ciro. Discordo. Uma das consequências pueris do marxismo mal estudado e mal debatido é gerar implicância com o conceito de concorrência. Besteira. Concorrência é uma tecnologia nascida da própria natureza, como ensinou Darwin. Nenhuma revolução ou transformação se deu sem uma grande disputa interna em torno das melhores ideias.

A democracia é um regime essencialmente concorrencial. Sem disputa de ideias, sem concorrência para sabermos quem melhor possui condições políticas de falar ao povo, atrair o centro e tocar um governo estável, todos os diferentes grupos de esquerda perderiam força. Uma “união da esquerda” artificial interessa apenas àqueles que não tem convicção suficiente de suas ideias para suportar a crítica. 

Querer que Ciro “não critique o PT”, é como amputá-lo intelectualmente, já que uma de suas principais virtudes é justamente o fato de representar uma força progressista que tem lugar de fala, independência intelectual e experiência para fazer as necessárias críticas a todos os erros cometidos pelo PT e pela esquerda. Não se trata, como Lula equivocadamente falou, de obter votos de quem “odeia o PT”, e sim de reconquistar a confiança de um eleitorado ainda profundamente ressentido com o partido e com a esquerda em geral.

Para isso, uma liderança política precisa mostrar independência e capacidade de fazer críticas à esquerda e à direita. 

Esse processo tem momentos dolorosos, e às vezes requer alguns excessos exigidos pela comunicação popular. 

Houve um momento em que muitas pessoas pediram “autocrítica ao PT”. Esse pedido visava salvaguardar a legenda, porque se houvesse autocrítica, então não seria tão necessário, para quem deseja oferecer uma alternativa, apelar para a ruptura total, com todas as violências e traumas que ela enseja. O PT optou por não fazer nenhuma autocrítica e ainda passou a hostilizar quem mencionasse o termo. Hoje ninguém mais pede autocrítica ao PT. 

Quando Lula diz que Marina Silva e Ciro escolheram seu caminho, ele não parece ter consciência de seu tom autoritário e oracular, como se apenas houvesse um caminho, o caminho de Lula. 

Não há um caminho único. Não há, sobretudo, um caminho de Lula, Ciro ou Marina. O que existe hoje não é um caminho, mas a luta em estado puro. Não é, todavia, apenas uma luta contra Bolsonaro. A principal luta é contra nossas próprias fraquezas e vícios, enquanto indivíduos e enquanto sociedade. Não adianta derrubar Bolsonaro e continuarmos os mesmos que o elegeram, porque aí o resultado seria simplesmente eleger outro Bolsonaro. Quando vencermos essa luta primeva, contra nossa própria ignorância, Bolsonaro será apenas um inseto repugnante, mas inofensivo, que lançaremos de volta ao esgoto de onde veio. 

 

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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