Por Frederico Krepe
O caso da crise da social-democracia espanhola é bem interessante para pensarmos a situação brasileira atual e mostrar os impasses de uma centro-esquerda que perdeu o bonde e precisa se reinventar. Pensar a realidade política de outro país em relação ao nosso é sempre um perigo, mas podemos tirar algumas lições, sempre com cuidado para nos atentarmos ao seu contexto.
Desde o fim da década de 80, a Espanha foi governada somente por 2 partidos: o PSOE (Partido Socialista Operário Espanhol, de centro-esquerda) e o PP (Partido Popular, de direita). O PSOE foi um dos principais atores da redemocratização do país após a ditadura de Franco (1936-1975) e conseguiu se estabelecer como uma força política que, mesmo moderada, implementou importantes políticas de bem-estar social. Essas políticas foram responsáveis por lhe dar uma base forte entre os trabalhadores, o que lhe garantiu sucessivas vitórias eleitorais, com destaque para o período em que o partido governou a Espanha de 1982 a 1996 com Felipe González.
A institucionalização e a acomodação com o poder fizeram com que uma série de problemas emergissem, especialmente relacionados á corrupção. Esses problemas foram agravados pela crise de 2007/08. A Espanha foi um dos países mais afetados pela crise e como alternativa, o governo da época, do PSOE, resolveu adotar toda a agenda de austeridade recomendada pelas elites financeiras. O resultado disso foi um agravamento da crise e uma derrota acachapante para o PP nas eleições seguintes. Como resultado disso, o PSOE perdeu um pedaço importante da sua base de trabalhadores.
Com a perda de sua base, esse espaço foi ocupado pelo Podemos, um partido de esquerda que adota o discurso antissistema e arrasta para si um pedaço da indignação dos espanhóis contra a agenda austericida. Esse movimento fez com que o partido alcançasse 1/5 do eleitorado espanhol, o que colocou em xeque a posição do PSOE enquanto liderança da esquerda espanhola (nas eleições de 2015, o PSOE fez 22% dos votos enquanto o Podemos fez 20%). O surgimento do Podemos fez com que uma alternativa independente de esquerda pudesse disputar uma parcela ampla do eleitorado. O seu discurso era marcado pela denúncia do sistema político, chamado de “casta”. A denúncia da “casta política” se dirigia tanto ao PP como ao PSOE.
Após o surgimento, e consequente fortalecimento do Podemos, o PSOE se viu em um forte dilema. Teve que optar entre seguir por um caminho centrista moderado, o que o aproximaria de partidos mais centristas liberais, como o Ciudadanos, criado em 2006 e que ocupou o espaço da centro-direita, ou um caminho mais voltado para a raiz social-democrata do partido, alinhada a um novo projeto de centro-esquerda. Diante da crise de identidade do partido, a sua burocracia opta por seguir uma linha centrista moderada, se aproveitando da polarização com o PP e tirando os dividendos desta situação.
Entretanto, as novas lideranças do não aceitavam o caminho seguido, fator que fez com que o partido tivesse que optar por uma solução apaziguadora, representada pela figura de Pedro Sánchez, um jovem militante que cresceu nas bases do partido, mais alinhado às suas origens.
Para assumir o comando do PSOE, Pedro Sánchez teve que enfrentar uma série de resistências internas da burocracia, que tinha se acostumado com o bipartidarismo e com a gestão conservadora da economia. O principal fator de discórdia foi a possibilidade de aliança com o Podemos. Enquanto a burocracia do PSOE pretendia seguir a linha bipartidária e centrista, Sánchez ousou acenar ao Podemos em direção a uma coalizão para reverter as políticas neoliberais aplicadas anteriormente, inclusive pelo próprio partido. Diante desse quadro, a burocracia partidária tentou remover
Sánchez do controle, que conseguiu se manter afirmando a defesa de um programa mais alinhado com a militância jovem do partido, que rejeitava alianças com a direita e que exigiam uma mudança de rumas na política econômica. Essa sinalização ao Podemos permitiu ao PSOE assumir o governo depois da remoção de Mariano Rajoy, do PP, depois de um voto de censura seguido de um escândalo de corrupção em seu governo.
A aliança com do PSOE com o Podemos se repetiu na eleição de dezembro de 2019 (a segunda no ano), depois de uma série de idas e vindas nas negociações e permitiu com que um governo de coalizão fosse estabelecido no país, unindo a centro-esquerda com a esquerda. Isso só foi possível porque o PSOE passou por um processo de renovação dolorido, mas que garantiu o retorno de um pedaço do eleitorado trabalhador e jovem para o partido, o que fez com que seu percentual de votação subisse de 22% para quase 30%. Ainda assim, a situação é bem complicada, já que a Espanha viu emergir uma força de extrema-direita, o Vox, que logo se tornou o terceiro maior partido político do país no número de eleitores. Cabe lembrar que o Vox surge com força nos lugares onde a burocracia corrupta do PSOE comandava, como a Andaluzia. O desencanto do eleitorado pobre e trabalhador com opções de centro-esquerda ineficazes desencadeou a emergência de uma forma de extrema-direita.
Que lições podemos tirar para o Brasil diante disso? Penso que o paralelo do PSOE com o PT é evidente. Ambos são partidos de origem esquerdista que abandonaram parte importante de suas pautas e acabaram se envolvendo em escândalos de corrupção que fizeram uma parte da sua base pular fora. Tal como o PSOE em 2015, o PT, hoje, tem dificuldades para retomar a força que tinha e precisa buscar uma saída para tentar ganhar novos eleitores. Entretanto, o que vemos é o contrário. O partido ainda luta para negar a realidade que o jogou no chão e insiste em se portar como “a única esquerda possível” em um cenário que é ameaçado por outras forças.
A questão aqui não é cobrar do PT um autoflagelo ou algo do tipo, mas somente uma reflexão sobre os caminhos do partido em um momento em que a oposição se vê enfraquecida diante de uma extrema-direita que já chegou ao poder. Enquanto força para se manter como “a esquerda possível”, ao mesmo tempo que ataca qualquer tentativa independente no campo progressista, o PT enfraquece a oposição e o próprio partido. Enquanto ocupar esse papel, a extrema-direita vai nadar de braçada na polarização política. Só há um caminho possível: repetir o que fez o PSOE e tentar encaminhar um processo necessário de renovação para reoxigenar o partido e o campo progressista brasileiro. Enquanto isso não é feito, se faz cada vez mais urgente a emergência de novos atores e lideranças progressistas capazes de tocar um projeto independente e capaz de fazer frente ao desastre que nos assola.