Bolsonaro usou a tática mais velha do mundo para disfarçar uma interferência política: “promoveu” o superintendente da PF a um cargo teoricamente superior em Brasília. No jargão, isso se chama “cair para cima”.
Entretanto, o novo cargo de Carlos Henrique Oliveira, como diretor-executivo da PF em Brasília é eminentemente administrativo. Oliveira não terá sequer acesso às investigações que antes estavam sob seu comando no Rio de Janeiro, entre elas as que envolvem os filhos do presidente.
A irritação de Bolsonaro é que esse tipo de tática não engana mais ninguém.
Essa é a razão pela qual ele mandou jornalistas “calarem a boca”. A agressão demonstrou desespero e insegurança, diante do fato de que seus atos apenas estão confirmando as acusações mais grave de Sérgio Moro.
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Diretor da PF foi trocado para garantir mudança de chefia no RJ, diz Moro em depoimento
5 maio 2020
BBC Brasil — Em seu depoimento à Polícia Federal, o ex-ministro da Justiça e Segurança Pública Sergio Moro voltou a acusar o presidente da República Jair Bolsonaro (sem partido) de querer trocar o comando da PF para substituir o superintendente da corporação no Rio de Janeiro — onde ocorreriam investigações de interesse da família e do grupo político do presidente.
A troca efetivamente ocorreu: nesta segunda-feira (04/05), o recém-empossado diretor-geral da PF, Rolando Alexandre de Souza, determinou a troca na Superintendência.
Segundo Moro, no começo de março, Bolsonaro lhe enviou uma mensagem no WhatsApp pedindo mais uma vez a remoção do delegado da PF Carlos Henrique Oliveira do cargo de superintendente no Rio. O superintendente é uma espécie de coordenador da corporação no Estado. Oliveira assumirá como o nº 2 da PF em Brasília, mas o sucessor dele no Rio ainda não é conhecido.
“A mensagem tinha, mais ou menos o seguinte teor: ‘Moro você tem 27 Superintendências, eu quero apenas uma, a do Rio de Janeiro'”, disse Moro no depoimento sobre a mensagem de Bolsonaro.
Ainda segundo Moro, Bolsonaro disse que trocaria até o ministro se não pudesse mudar o superintendente da PF no Rio.
“O presidente afirmou que iria interferir em todos os Ministérios e quanto ao MJSP, se não pudesse trocar o Superintendente do Rio de Janeiro, trocaria o Diretor-Geral e o próprio Ministro da Justiça”, diz Moro em outro trecho do depoimento.
Bolsonaro falou rapidamente sobre o assunto no fim da tarde desta terça-feira, num encontro com jornalistas e apoiadores em frente ao Palácio do Planalto.
O presidente justificou seu desejo de trocar o superintendente no Rio de Janeiro por ser “o meu Estado”.
“O Rio é o meu Estado. É o meu Estado. É o meu Estado. Vamos lá. Caso do porteiro (em novembro de 2019, a TV Globo revelou depoimento de porteiro do condomínio Vivendas da Barra segundo o qual alguém na casa de Bolsonaro liberou a entrada dos matadores de Marielle Franco no local). Eu fui acusado de tentar matar a Marielle. O presidente da República acusado de assassinato. A Polícia Federal tinha que investigar”, disse ele.
“Porque é que não investigou com profundidade? Para tentar dizer que eu conhecia o (ex) policial militar (Ronnie Lessa), um dos acusados”, disse Bolsonaro.
No depoimento, Moro volta a dizer que a troca de Maurício Valeixo por Alexandre Ramagem no comando da PF foi feita “sem causa e com desvio de finalidade, como reconhecimento (sic) posteriormente pelo próprio Supremo Tribunal Federal em decisão proferida no dia 29 de abril, que suspendeu a posse do DPF Alexandre Ramagem”.
Em outro momento, porém, Moro diz que “não afirmou que o presidente teria cometido algum crime”.
“Perguntado se identificava nos fatos apresentados em sua coletiva alguma prática de crime por parte do Exmo. Presidente da República, esclarece que os fatos ali narrados são verdadeiros, que, não obstante, não afirmou que o presidente teria cometido algum crime”, diz um trecho do depoimento.
“Quem falou em crime foi a Procuradoria Geral da República na requisição de abertura de inquérito e agora entende que essa avaliação, quanto a prática de crime cabe às Instituições competentes”.
Sergio Moro falou à Polícia Federal no sábado, na Superintendência da corporação em Curitiba (PR). As declarações dele fazem parte de um inquérito aberto no Supremo Tribunal Federal por determinação do ministro Celso de Mello, a partir de um pedido do procurador-geral da República, Augusto Aras.
O inquérito visa a apurar o possível cometimento de crimes por parte de Bolsonaro e também de Sergio Moro, conforme o pedido de Aras – ao pedir demissão do cargo de ministro, Moro acusou Bolsonaro de tentar interferir na Polícia Federal para ter acesso a informações sobre investigações sigilosas, entre outras irregularidades.
Nesta segunda-feira, a defesa de Moro pediu a Celso de Mello que tornasse pública a íntegra do depoimento do ex-juiz, o que todavia não tinha sido decidido ainda pelo ministro do STF. A íntegra do depoimento foi divulgada primeiro pelo repórter Caio Junqueira, do canal de TV a cabo CNN Brasil – em seguida, a BBC News Brasil obteve uma cópia do depoimento. O material traz uma marca d’água na qual se lê “Versão Declarante”.
Superintendência do Rio: um desejo antigo de Bolsonaro
Ao contrário do que disse Bolsonaro em frente ao Palácio do Planalto nesta terça, o desejo de trocar o comando da PF no Rio não surgiu depois das acusações do porteiro do condomínio Vivendas da Barra, em novembro do ano passado: na verdade, a primeira troca na chefia da PF ocorreu ainda em agosto de 2019, por pressão do presidente.
Na época, o chefe da PF no Rio era o delegado Ricardo Saadi — Bolsonaro disse, na época, que ele precisava ser removido do posto por apresentar problemas “de produtividade”. Apesar do que disse o presidente, todos os indicadores das atividades da PF no Rio de Janeiro tinham crescido.
Bolsonaro quis nomear Alexandre Saraiva para comandar a PF no Rio
Na época, Carlos Henrique Oliveira acabou se tornando o superintendente da PF no Rio por vontade do então diretor-geral da PF, Maurício Valeixo.
Em agosto de 2019, Bolsonaro queria nomear para a Superintendência da PF no Rio o delegado Alexandre Saraiva – atual superintendente da PF no Amazonas, ele é de origem carioca, tendo se graduado em direito na Universidade Federal Fluminense.
Moro também falou sobre este assunto em seu depoimento. Segundo ele, Bolsonaro pediu a remoção de Saadi numa conversa no Palácio do Planalto, em agosto de 2019.
“Após muita resistência, houve, como dito acima, concordância do Declarante (Moro) e do Dr. VALEIXO, com a substituição; QUE o presidente, após a concordância, declarou publicamente que havia mandado trocar o SR/RJ por motivo de produtividade”, diz um trecho.
“Para o Declarante não havia esse motivo e a própria Polícia Federal emitiu nota pública, informando a qualidade do serviço da SR/RJ, o que também pode ser verificado por dados objetivos de produtividade”, acrescenta o depoimento de Moro.