Os últimos anos nos ensinaram o perigo extremo de transferir poder político excessivo ao judiciário e ao ministério público, e a falta de atenção a esse ponto, crucial em qualquer democracia representativa, foi um dos principais erros políticos cometidos pelos ŕecentes governos social-democratas; erros cujas consequências foram trágicas para o Estado Democrático de Direito.
A bem da verdade, boa parte desses erros nasceram antes da ascensão desses governos, e são derivados dos traumas da ditadura militar.
O medo de um Executivo autoritário fez o legislador estruturar poderes de contenção extremamente autônomos e independentes.
Com o ascensão do PT ao poder, em 2003, a política de fortalecer o judiciário e o ministério público passou a ser usada também para cooptar apoio de setores sociais refratários à esquerda. E foi pensando assim que a primeira nomeação de Lula para o STF, decepcionando a todos (e abrindo caminho para o abismo que viria a seguir), não foi um ministro progressista, comprometido com valores democráticos, como um Nilo Batista, que todos entendiam ser a pessoa ideal naquele momento, mas Carlos Alberto Menezes Direito, cujas principais “virtudes” eram: profundamente reacionário, militante anti-aborto, e “terrivelmente católico”.
É irônico, por isso mesmo, que a esquerda se horrorize que Bolsonaro afie os dentes para indicar, na próxima vaga do STF que se abrir, um ministro “terrivelmente evangélico”.
Entretanto, a preocupação do legislador de 1988 com a possibilidade de uma possível reemergência do autoritarismo se revela hoje profética. E quando, enfim, nos deparamos com esse risco, antecipado pelos constituintes, de um Executivo saudoso do poder militar, me parece incompreensível que a mesma esquerda que, no poder, apenas inflou o poder judiciário, de maneira desnecessária e irresponsável, com objetivos puramente fisiológicos, não veja a importância de termos um judiciário forte, independente, autônomo, capaz de conter os abusos do Executivo.
Refiro-me, naturalmente, aos setores da esquerda, Lula à frente, que estão criticando o STF pela derrota inflingida a Bolsonaro.
Ou seja, na hora em que o petismo tinha poder para conter os abusos do judiciário, fez o oposto: cevou-os ano a ano. Em toda a crise política que envolvia questões jurídicas, a esquerda tentava cooptar o judiciário dando-lhe mais poder, até o ponto culmimante de propor e sancionar as leis da Ficha Limpa, da Delação Premiada e da Organização Criminosa, excrescências jurídicas que produziram o desequilíbrio fatal que matou a república, produzindo um impeachment sem provas e levando à eleição de um louco autoritário para a presidência da república.
E agora, quando é hora de cobrar do judiciário que exerça a independência que ganhou do constituinte em 1988, e contenha os abusos do Executivo, o petismo se posiciona contra a instituição por medo de “lavajatismo”?
No caso da decisão do ministro Alexandre de Moraes, impedindo a nomeação de um capanga de Bolsonaro para a direção da Polícia Federal, os seus fundamentos são sólidos e sinalizam uma jurisprudência profundamente saudável do ponto-de-vista democrático e, sobretudo, do pluralismo político.
Esse é, aliás, o fundamento principal da decisão do STF:
“Reafirmo que, a supremacia absoluta das normas constitucionais e a prevalência dos princípios que regem a República, entre eles, a cidadania e o pluralismo político”.
No raciocínio jurídico do ministro, o presidente não é um imperador, e os partidos políticos com representação no congresso nacional, tem o direito de denunciar (e terem suas denúncias ouvidas pelas justiça) abusos e desvios de conduta do governo.
Para entender isso, é preciso atentar que a iniciativa para impedir a posse de Ramagem não foi do STF, mas sim do Partido Democrático Trabalhista (PDT).
Por ocasião da decisão de Gilmar Mendes contra a posse de Lula, estávamos tão absorvidos numa crise política em sua fase agônica que o fato dela ser basear no mandado de segurança de um partido político nos pareceu completamente insignificante. E naquele momento, pelas circunstâncias, era mesmo, porque nem o mandado do PPS nem a decisão de Gilmar puderam apresentar um elemento fundamental em qualquer denúncia: uma testemunha ocular.
E agora temos! Não estamos falando de bandidos presos, sob pressão do Ministério Público e de seus advogados para fazer um acordo, mas da mais alta autoridade política em matéria de justiça: o próprio Ministro da Justiça!
Em sua coletiva, ainda no cargo, Sergio Moro fez uma denúncia que, em outros países, teria derrubado todo o governo: o presidente da república vinha conspirando, há tempos, para substituir o diretor da Polícia Federal por alguém que aceitasse violar os princípios de autonomia técnica que a instituição deve guardar com tanto zelo. Uma denúncia vinda do próprio ministro da Justiça, com todo o risco e toda a responsabilidade que ela traz, tem evidentemente um enorme peso!
Não podemos deixar que a justa irritação política que temos contra Sergio Moro nos cegue para esse fato: sua denúncia é gravíssima!
E mais: ele apresentou provas!
Não foi uma “reportagem da Globo”. Não foram mensagens “roubadas” por um hacker. Não digo isso para desvalorizar a “vaza jato”, mas para acentuar a diferença fundamental: mensagens roubadas, por mais autênticas que sejam, não podem ser usadas em tribunais; mensagens vazadas por um dos participantes do diálogo, podem.
Moro apresentou mensagens trocadas com o presidente da república, e com uma deputada do núcleo duro do governo, Carla Zambelli. O presidente não negou; ao contrário, sua reação deixou claro que as mensagens eram verdadeiras. E a deputada não apenas admitiu a autencidade das mensagens, como divulgou mais trechos, numa tentativa meio patética de mudar a narrativa.
E o que dizia Bolsonaro, numa das mensagens trocadas com o ministro da Justiça?
“Mais um motivo para trocar”, pressionou Bolsonaro, referindo-se ao diretor da Polícia Federal, reclamando que a PF havia aberto uma investigação, a pedido do PGR e do STF, contra deputados que participaram de uma manifestação em favor da ditadura, do AI-5 e contra o congresso nacional.
Na mensagem trocada com a Carla Zambelli, que é do núcleo duro do governo, e que deixou claro que falava em nome do presidente (a ponto de prometer uma vaga no STF para Moro, além de tentar marcar um “jantar” entre Moro e esposa com Bolsonaro), a deputada tenta forçar o ministro a aceitar a nomeação de Alexandre Ramagem para a direção da PF. Toda a articulação do presidente Bolsonaro visava constranger e forçar a demissão de Maurício Valeixo, para poder interferir politicamente em investigações em curso na PF: essa é a denúncia de Moro.
Sim, o presidente tem a prerrogativa de nomear um delegado para o cargo de diretor da Polícia Federal.
Mas se há provas e testemunhos de que o presidente forçou a demissão do antigo diretor da PF apenas para nomear um amigo da família, com objetivo de interferir em investigações em curso, e transformar a PF numa agência de inteligência para seus próprios fins políticos e eleitorais, então estamos diante de um caso claríssimo de desvio de finalidade.
Estão certos os que cobram uma postura coerente em nossa posição perante o judiciário. Não podemos, num dia, denunciar abusos, e, no outro, aceitá-los contra nossos adversário. Mas não podemos esquecer os abusos do Executivo. Ou a “ameaça fascista” agora não existe mais? Quando o judiciário finalmente começa a conter os abusos de um governo autoritário, a esquerda jurídica vai se voltar contra o judiciário porque agora o elegeu como “inimigo político”?
Tudo isso se baseia num erro de origem, e que persiste até hoje.
A esquerda jurídica errou no início, quando tentou cooptar o judiciário e o MPF dando-lhes mais poder; errou no meio, quando elegeu o judiciário como “inimigo político”, ao invés de usar a ciência jurídica para desmontar a crise institucional; e erra no fim, quando repete, às avessas, o mesmo republicanismo tosco que usou enquanto esteve o poder: antes, esse republicanismo se caraterizava pela pusilanimidade de encher as cortes superiores de figuras reacionárias; o republicanismo invertido de hoje posa de horrorizado com um judiciário que tenta pôr um freio nos abusos do Executivo.
O judiciário nunca foi “inimigo político”. O judiciário foi antes vítima da inação de governos e partidos, que não propuseram reformas democráticas de concursos públicos e cursos de Direito, que não organizaram a luta intelectual contra os excessos judiciais (os quais começaram bem cedo, lá em 2004, então não há como alegar que não houve tempo), e que indicaram para tribunais superiores nomes de escassa coragem cívica para enfrentar as ondas de linchamento político geradas pelo consórcio mídia-oposição.
Se a esquerda não soube organizar um Executivo forte (forte em termos de capacidade de articulação política junto a outros poderes), capaz de conter os abusos do poder judiciário, agora não venha atrapalhar os movimentos necessários de um Judiciário forte, um dos últimos bastiões da república, junto com o legislativo, em defesa do interesse democrático contra os arreganhos autoritários do governo Bolsonaro.
Fiz um vídeo de 2 minutos resumindo minha opinião: