Em um artigo interessante, Diogo Schelp, no Uol, faz uma análise dos dados coletados por uma empresa chamada In Loco — a qual criou um “índice de isolamento social” monitorando a geolocalização de cerca de 60 milhões de celulares por todo o Brasil — que aponta para um afrouxamento da quarentena nos dias posteriores às declarações e atos de Jair Bolsonaro contrários às medidas de isolamento. Nos dias seguintes à infame confraternização do presidente com seus apoiadores, no dia 15 de março, e ao discurso da morte, quando disse que o coronavírus é apenas uma gripezinha em rede nacional de televisão e rádio, o isolamento social caiu significativamente, segundo a referida medição.
A leniência com que a pandemia está sendo encarada por muita gente foi confirmada pelos abundantes relatos sobre os parques e ruas pelo país inteiro que estiveram, no último fim de semana, lotados de pessoas (todas certamente com histórico de atleta).
É um efeito previsível: se a autoridade máxima do país diz que tudo bem sair de casa, naturalmente milhões de cidadãos o farão.
Outro resultado do comportamento tresloucado de Bolsonaro é a enorme pressão que governadores e prefeitos estão recebendo de empresários — bolsonaristas, por certo — para que autorizem a volta do comércio e das atividades normais de cada local. Além de criticar os atos sensatos dos governantes que instituíram quarentena, o presidente chegou a acusar governadores de que estariam inflando o número de mortos para lhe atingir politicamente. (Aquele “acuse-os do que você faz” que é atribuído a Lenin no submundo online da extrema-direita cabe aqui; uma acusação dessas, sem evidência alguma, só poderia partir de quem alteraria números de mortos em nome de interesses políticos.)
Anteontem (6), comemorou-se a permanência do ministro da Saúde, a quem Bolsonaro queria demitir porque estava “falando demais” e não estava tendo “humildade” o suficiente ao descartar as considerações epidemológicas de seu superior hierárquico. O preço da não demissão (do ministro da Saúde que está cumprindo seu papel em meio à pandemia, ressalte-se) parece ter sido um afrouxamento da quarentena em algumas cidades a partir da semana que vem.
Poderíamos continuar listando as atitudes de Bolsonaro que fatalmente aumentarão o número de mortos no país por conta da pandemia, inclusive a leniência criminosa para liberar os R$ 600 por pessoa aprovados pelo Congresso, fazendo com que mais e mais pessoas estejam indo às ruas para, enfrentando a morte, lutar pela sobrevivência.
Seria, contudo, despiciendo.
Ao contrariar a esmagadora maioria da comunidade médica e negar-se a simplesmente tomar como exemplo o que está acontecendo nos outros países do mundo para guiar suas decisões, o presidente é indubitavelmente responsável pela morte de milhares de brasileiros que permaneceriam vivos caso ele agisse com o mínimo de bom senso. Não são apenas números, mas pessoas reais, com entes queridos, sonhos, amores, gostos e personalidades únicas no universo.
Por isso, vamos bem se o designarmos desde já pelo que é: um genocida. É, sem exagero algum, diante da eliminação premeditada de um enorme contingente populacional, um novo Hitler, ou, talvez mais adequado ao seu tamanho, um Hitlerzinho tropical, como definiu Ciro Gomes ainda em 2018, aquele distante ano eleitoral durante o qual esta aberração política ascendeu na arena pública sob os auspícios de tantos e o menosprezo de tantos outros. (E pensar que teve gente preferindo perder para este facínora do que abrir mão da hegemonia em seu campo político.)
Diante deste Nero redivivo, um governante aparentemente insano que incendiará o país — desta vez com fogos crematórios de cadáveres —, alguns analistas tentam descobrir se o que move Bolsonaro é loucura ou método. Com todo o respeito por aqueles considerados loucos (até porque é comum a sociedade chamar de loucas pessoas extremamente amorosas, revolucionárias, humanas), me parece ser um pouco dos dois. Há uma evidente falta de sanidade no completo desprezo pela vida humana demonstrado pelo presidente, mas também existe um certo método neste criar inimigos, alimentar confrontos e, dessa forma, açular sua base de apoio.
(Nesta última ação temos, aliás, uma óbvia lição para quando o campo progressista voltar ao poder, bastando talvez uma substituição verbal: manter a base mobilizada é fundamental para os enfrentamentos políticos.)
De qualquer forma, quanto aos traços doentios de Bolsonaro, estes não são novos, como se sabe:
Não é preciso acreditar em carma ou justiça divina para perceber que a vida ensina. É comum, por exemplo, que um brigão deixe de sê-lo apenas quando encontra alguém mais forte e se dá mal.
Às vezes, nem assim. Não é raro que precisemos passar repetidas vezes por situações semelhantes para entendermos a lição que a vida quer nos dar e, então, nos tornarmos aptos a mudar o comportamento prejudicial em questão.
A violência, o autoritarismo e o desprezo pela vida humana de boa parcela da sociedade brasileira revelaram-se como fogos de artifício em uma noite de ano novo: ficou impossível não percebê-los. Incluem-se nesta boa parcela todos os que colaboraram, direta ou indiretamente, para a eleição de um genocida que, espantosamente, trombeteava aos quatro ventos seu apreço pela tortura e pela morte. E os que têm poder para pressionar por sua derrubada e não o fazem.
A lição da vida parece estar chegando.
Um companheiro de lutas mapeou bem a situação em um comentário: “O problema das pessoas seguidoras de Bolsonaro é que insistem num raciocínio que não alcança a abstração científica, a racionalidade dos modelos. Por estarem enviesadas, permanecem numa infantil estrutura de raciocínio concreto. Isso, desgraçadamente, só muda quando as estatísticas ganharem nomes de conhecidos e parentes. É um desastre que sejam tão embotados intelectualmente.”
A lição da vida está chegando. E será das mais amargas.