Mesmo sem decisões governamentais, grande parte dos japoneses já vinham adotando, voluntariamente, medidas de restrição social.
Agora, sob pressão de especialistas e do aumento de novos contágios no país, o governo japonês decretou estado de emergência e resolveu adotar medidas mais severas.
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Coronavírus: pressão de novos contágios faz Japão reforçar medidas de isolamento
Por Fatima Kamata
De Tóquio para a BBC News Brasil
Há 3 horas
BBC Brasil — Apesar de ter sido um dos primeiros países a registrar casos de infecção por coronavírus logo após a China, o Japão vinha se mantendo no grupo dos menos afetados pela pandemia da covid-19 em comparação à Europa e aos Estados Unidos.
No entanto, a pressão de especialistas diante da rápida contaminação comunitária em grandes centros urbanos fez o primeiro-ministro, Shinzo Abe, declarar estado de emergência nesta terça-feira (6/4) em sete das 47 Províncias japonesas.
Governadores das Províncias de Tóquio, Kanagawa, Saitama, Chiba, Osaka, Hyogo e Fukuoka, onde vivem 56,1 milhões de pessoas (45% da população japonesa), poderão adotar várias medidas independentes por conta própria para lidar com a pandemia.
A governadora de Tóquio, Yuriko Koike, disse que as pessoas só poderão sair para trabalhar, comprar alimentos e remédios, ir a hospitais ou ao banco.
O transporte público também continuará funcionando. As medidas, ao menos por enquanto, não são tão rígidas quanto as de alguns países europeus e não incluem punições — mas o mero fato de o estado de emergência ter sido decretado tem sido interpretado pelos japoneses como um sinal da gravidade da situação e de que não convém sair de casa.
A capital japonesa já havia sofrido o impacto da pandemia em um aspecto muito além do número de casos: com o adiamento dos Jogos Olímpicos, que ocorreriam ali em meados do ano. O evento precisou ser remarcado para 2021.
‘Reação lenta’
Shinzo Abe pediu aos moradores para não estocarem alimentos e remédios, já que terão permissão para fazer compras, além de ir para o trabalho e sair de casa para se exercitar.
O premiê também anunciou um pacote de ajuda de cerca de US$ 1 trilhão (o equivalente a 20% do PIB do país) para combater os efeitos da pandemia sobre a economia japonesa.
Na opinião do analista Carlos Akira Furuya, da seguradora Nomura Securities, o governo reagiu de modo lento. “O vírus começou a se disseminar no Japão muito antes de se espalhar para o resto do mundo. Mas os países do Ocidente anunciaram os planos na frente”, diz.
Acredita-se que a disciplina japonesa em manter o distanciamento social e a iniciativa de muitos japoneses em se isolar tenham feito com que o país mantivesse a pandemia sob relativo controle até agora.
A governadora de Tóquio já vinha insistindo para que a população permanecesse em casa nos finais de semana e evitassem se concentrar em aglomerações. Ainda em março, ela temia que houvesse uma “explosão de infecções” na capital japonesa.
Em dias normais, a cidade costuma receber cerca de 2,8 milhões de trabalhadores e estudantes de províncias vizinhas.
O aumento de casos não rastreáveis e contaminação de jovens acendeu o alerta de que pacientes assintomáticos ou com sintomas leves estivessem espalhando o vírus inconscientemente na capital.
“Gostaria de terminar esta luta no menor tempo possível. Estou pedindo a cooperação de todos os cidadãos”, afirmou Koike.
Mas, na semana passada, um painel de especialistas do governo tinha alertado o premiê sobre o risco de o sistema de saúde entrar em colapso se nada fosse feito para conter o aumento de casos de covid-19 em áreas urbanas.
Até pouco antes do anúncio do estado de emergência, o país tinha 4.111 casos confirmados e registrava 97 mortos. Tóquio lidera com 1.116 infectados, seguido de Osaka, com 423.
Lei de emergência
O estado de emergência não deverá mudar muito o que já ocorre no Japão, com as pessoas em isolamento social voluntário.
Sobre o motivo para o governo não obrigar a população a cumprir a medida, a resposta curta é que “a lei específica que regulamenta esse estado de emergência não prevê essa obrigação”, explica Eduardo Mesquita Kobayashi, advogado doutorando na Universidade de Tóquio.
O estado de emergência é fundamentado na verdade na Lei de Medidas de Combate a Novas Influenzas Pandêmicas, de 2012, e ela foi alterada em março deste ano para incluir a covid-19 em seu escopo.
“Ele pode ser declarado por até dois anos (embora desta vez o prazo seja de um mês) e prevê que os governos regionais designados na declaração do governo central possam impor tanto medidas obrigatórias como realizar meras solicitações”, explica.
Os governadores podem solicitar ou ordenar o fechamento de escolas, colocar restrições quanto ao funcionamento de lojas de departamento, cinemas e outros locais de aglomeração. Em caso de emergência, podem ordenar que empresas, transporte e logística entreguem suprimentos e equipamentos médicos.
O advogado explica que o pedido para que os cidadãos não saiam de casa é mera solicitação. É possível pedir que se restrinja ou se impeça o uso de locais como escolas, creches, e que não se realize eventos com público.
“Caso esse pedido não seja atendido, é possível ir um pouco mais longe, e instruí-los para que cumpram, mas não há sanções como multa ou prisão.”
Há duas coisas que o governo pode efetivamente fazer cumprir: uma delas é ordenar a fabricantes de insumos (por exemplo, máscaras e medicamentos) que reforcem os estoques — e o governo pode eventualmente apropriar-se desses bens. O descumprimento das ordens nesses casos pode levar a pena de multa e até 6 meses de prisão.
Acredita-se que a disciplina japonesa em manter o distanciamento social e a iniciativa de muitos japoneses em se isolar tenham feito com que o país mantivesse a pandemia sob relativo controle até agora
Outra possibilidade é usar imóveis e bens para fins de estabelecer ali uma instalação médica emergencial, mesmo que não haja consentimento do proprietário.
“Ou seja, o cidadão comum só é obrigado de fato a deixar o governo utilizar seu imóvel e outros bens (e esse uso será devidamente indenizado). Em termos de obrigações portanto, pouco muda para nós”, explica Kobayashi.
No Japão, embora muitas das possibilidades legais que permitiam impor restrições por decreto tenham saído do ordenamento jurídico, não existe uma proibição expressa impedindo o governo de legislar para obrigar o cumprimento do isolamento, afirma o advogado.
Algumas restrições mais rigorosas são até mesmo agora aplicáveis à covid-19, como a Lei de Doenças Infecciosas. Ela permite fechar locais e restringir a circulação de pessoas por até 72 horas.
Ajuda financeira
O surto de coronavírus terá um forte impacto na economia japonesa, que já se encontrava à beira da recessão em consequência do aumento do imposto sobre consumo de 8% para 10% ocorrido em outubro do ano passado.
Apesar de ter a maior dívida pública do planeta (238% de seu PIB), o Japão decidiu ampliar seu endividamento e anunciar um plano de apoio, “numa escala sem precedentes”, segundo o premiê. O pacote chega a cerca de US$ 1 trilhão, valor equivalente a 20% do PIB.
O analista da Nomura Securities, Carlos Akira Furuya, diz que o plano é necessário, porque quem mais está sofrendo com os efeitos do coronavírus são as pequenas e médias empresas, além da população de menor renda.
“Agora, a magnitude e a falta de clareza preocupam. É como o (plano que ficou conhecido como) Abenomics, que foi um plano econômico genérico. Um tiro de canhão. O que temos aqui é um choque de demanda, obviamente porque ela está sendo contida”, afirma.
O plano do governo anunciado nesta terça prevê medidas a serem implantadas em duas fases, começando com a assistência de emergência e seguido de uma recuperação econômica em forma de V.
Na primeira etapa, por exemplo, o governo planeja destinar ajuda no valor de US$ 2.800 para famílias cuja renda caiu significativamente devido à pandemia. Outra parcela irá para empresas, que poderão adiar o recolhimento de impostos durante o período de redução da atividade
Na opinião de Furuya, o que deve ser feito é estimular o consumo, para gerar demanda. “Se você apenas der dinheiro para a população, boa parte não vai chegar para o consumo, e sim para poupança. Funciona para assistência às empresas também. O que deveria ser feito é garantir que esse dinheiro pague os salários dos funcionários, fornecedores e aluguel.”
O governo planeja resolver esse problema na segunda fase, quando a propagação do coronavírus estiver contida. A ideia é adotar medidas para estimular os gastos dos consumidores, impulsionar o turismo e promover eventos e exposições de entretenimento.
Além de restaurar atividades econômicas, as medidas visam construir uma estrutura econômica resiliente e fazer os preparativos para novas pandemias.
A preocupação do analista Furuya é como o Japão depois vai conseguir pagar essa conta. O governo planeja emitir títulos adicionais para ajudar a financiar os gastos.
“O país já está superendividado. Sobraria aumentar impostos ou reduzir gastos. Mas o imposto sobre o consumo subiu para 10% (em outubro de 2019) justamente por causa do aumento dos gastos com previdência, saúde e assistencialismo às crianças. A conta não fecha”, diz.