Assisti ontem (30) à boa parte da entrevista de Atila Iamarino no Roda Viva. Apesar de estranhamente abster-se de criticar o genocida Jair Bolsonaro, mesmo quando as bolas eram levantadas pelos entrevistadores, houve alguns pontos altos na fala do biólogo. Por exemplo, as análises sobre a evolução da pandemia e sobre as mudanças radicais (e permanentes) no nosso modo de viver que o novo coronavírus está provocando, além do elogio às desprezadas ciências humanas, inclusive quanto ao seu papel de parceira das exatas na aplicação de medidas de contenção dos danos em uma catástrofe como a que estamos vivendo.
Perguntado sobre o “isolamento vertical” — proposta de combate à epidemia que mantém apenas os grupos de risco em quarentena e libera os demais para as atividades corriqueiras, normalmente apresentada como alternativa para que as economias dos países não sejam tão afetadas — disse que nem fazia sentido discuti-lo pois não era uma proposta científica, não havendo teste algum sobre sua eficácia.
Acabada a entrevista, fui mudando de canal até parar na Record, onde era transmitido um programa da Igreja Universal. Era pouco mais de 1h da manhã quando um apresentador com cara de compenetrado conversava por Skype com um bispo que supostamente falava da Coreia do Sul (sua esposa permaneceu ao seu lado mesmo sem participar da conversa). O tal bispo dizia que lá as pessoas estão saindo para as ruas, que não há quarentena e os aeroportos estão abertos, embora coloquem todos que chegam de viagem em uma quarentena de mais ou menos duas semanas. Não vi ele mencionar que a Coreia fez testes massivos na população, o que permitiu um isolamento mais direcionado.
No estúdio de onde era transmitido o programa estava o médico Anthony Wong, vestindo um jaleco para transmitir credibilidade e vociferando contra a quarentena. Sua base supostamente científica para defender o “isolamento vertical” é a seguinte: o novo coronavírus não resiste ao calor. Acontece que, embora haja indícios de que temperaturas mais altas prejudiquem o espalhamento do vírus, isto não é verificado em todos os países. Os autores de um estudo publicado no último dia 19 afirmam o seguinte: “Embora tenhamos verificado efeitos relacionados ao clima, enfatizamos a necessidade de usar as medidas de quarentena adequadas, mesmo nas regiões mais quentes. (…) Além do clima, vários outros fatores desempenham um papel na quantidade de casos em em cada região” (aqui, matéria do G1 sobre os estudos em relação ao tópico).
O “dr. Wong” mostra, então, uma tabela com o número de casos e de mortes por conta do coronavírus em alguns países, a qual fica sendo exibida por alguns minutos. O grotesco título da tabela era “Quarentena Não Faz Sentido”. Veja com seus próprios olhos, cara(o) internauta:
Como se lê acima, a tese criminosa do médico é a de que os países que adotam a quarentena têm muito mais mortes do que os países que não adotam. Uma relação de causa e efeito bizarra que ignora todos os outros fatores como número de testes, estrutura hospitalar, tempo decorrido até adotar as medidas etc.
Perguntado sobre o fato de que, no “isolamento vertical”, quem sai para a rua pode contaminar o grupo de risco que ficaria isolado, Wong responde que se todo mundo fica em casa “não tem ventilação” e “aí é que transmite mesmo”. A solução? Isolar apenas as pessoas do grupo de risco em pousadas ou hotéis, uma medida evidentemente inviável, considerando a alta parcela da população que se encontra em grupo de risco.
O “isolamento vertical” é defendido por pouquíssimos pesquisadores e seus argumentos foram devidamente desmontados pela comunidade científica, como ilustra esta reportagem da BBC. As motivações de quem defende essa alternativa estão sempre claras nos discursos: questões econômicas. Embora a pandemia esteja nos dando uma amarga lição sobre a importância da ciência, é bom lembrar que sempre há os pesquisadores e cientistas que chegam a conclusões não lastreadas em evidências mas que servem direitinho a interesses nebulosos de pessoas ou instituições ricas e poderosas.
Não demorou muito para o Dr. Wong tirar a fantasia de médico e explicitar os motivos da sua posição: “Tem conforto maior do que ir pra igreja em momentos de crise? É um absurdo não poder ir pra igreja. Não to falando por causa da igreja aqui [a Universal, responsável pelo programa], mas todas as igrejas.”
Tudo explicado. O problema da quarentena é que as igrejas estão fechadas. Faz falta o dízimo, não é? “Não se separa a saúde da economia! Não tem como!”, enfatiza o apresentador. Na parte de baixo da tela, em uma faixa horizontal, um letreiro pedindo para as pessoas doarem “para os necessitados” por meio de um aplicativo, do site da Universal ou de depósitos em conta bancária. “Rápido e sem complicações”. Um “Siga as orientações do Ministério da Saúde”, totalmente contraditório com a posição do programa, também passava por ali.
“Deixa correr naturalmente [o contágio]”, diz Wong em outro momento. “Não tem como cortar a curva. Tem que deixar correr no verão pra ter a imunização natural”. Sobre o colapso do sistema de saúde caso se faça isso, nenhuma palavra.
Um discurso criminoso como esse, sem base científica alguma, não pode passar na televisão aberta, na calada da noite, e ficar impune. Que o Ministério Público e os demais órgãos responsáveis por proteger a população cumpram seu dever.