Momentos como o presente são oportunidades de ouro para levantarmos as questões profundas, colocarmos em pauta os debates instigantes e fundamentais sobre os… fundamentos de nossa sociedade. Com cada vez mais gente em quarentena, é preciso discutir, por exemplo, por que cargas d’água é impossível a tanta gente seguir as recomendações oficiais diante da pandemia, seja porque precisa sair para a rua para garantir o sustento da família, seja porque mora em locais onde o isolamento é impossível na prática. O retrato da desigualdade social, um adorno fúnebre e constante nas páginas da história brasileira, é, agora, esfregado em nossos rostos. Se o governo não intervir de forma efetiva, a tendência é o caos social, pois o número de brasileiros sem acesso a itens básicos de sobrevivência (comida, por exemplo) pode explodir. Essas pessoas, cedo ou tarde, terão que dar um jeito de arranjar aqueles itens, o que pode tornar as ruas desertas das cidades cenários de saques, confrontos violentos e sabe-se lá mais o que — como se ruas desertas por todo o país não fosse cenário apocalíptico o suficiente.
Com preocupações sociais flagrantemente menores que as nossas, líderes de países europeus e mesmo o bufão Trump anunciam medidas que arrepiariam todos os pelos dos economistas liberais há poucos dias, mas hoje são consideradas questão de sobrevivência da civilização. É preciso que os Estados injetem dinheiro nas economias, afinal, estão descobrindo aos poucos os devotos do Deus Mercado.
Calhou de estarmos sob o governo mais imbecil da história do Brasil — quiçá da humanidade — em um momento desses. Bolsonaro, Guedes e sua trupe de aloprados não decepcionaram quem nada esperava deles, anunciando medidas econômicas que transitam entre os adjetivos tímidas e ultrajantes, como um voucher de R$ 200,00 para trabalhadores informais, mais ou menos o valor de um vinho comum em um jantar cotidiano dos amigos do Guedes.
Os liberais brasileiros introjetaram essa maluquice ideológica vendida como ciência (sempre cito a definição precisa do Ciro Gomes para o liberalismo econômico) a tal ponto em suas almas que não querem abandoná-la nem mesmo diante de um cataclismo sanitário e econômico mundial que exige, é claro como o Sol, que o Estado expanda seus gastos para proteger a saúde e a renda da população como se não houvesse amanhã. Até porque, se não o fizer, não haverá mesmo, ao menos para legiões de pessoas e para as economias de tantos países.
É lamentável que precisemos passar por algo assim para nos darmos conta de que o laissez-faire é fundamentalmente desumano e, sem qualquer exagero, assassino. Não podemos esquecer jamais que no início da crise a “proposta emergencial” do Paulo Guedes para combater o coronavírus era vender a Eletrobrás(!) e que tem muito empresário que somente libera os funcionários para ficar em casa quando o governo assim determinar, e olhe lá. Ver o que significa, na prática, o fato de o dinheiro valer mais que a vida em nossa sociedade não deixa de ser chocante.
O motivo pelo qual os liberais estão virando keynesianos assim como, diz a anedota religiosa, o ateu vira crente na hora da morte é que a devastação foi tamanha a ponto de afetar as bolsas e fazer desmoronar ruidosamente a economia global. Entretanto, pensando bem, um contingente enorme de cidadãos do mundo sobrevivem com muito menos — por mês! — do que o valor de um vinho tomado pelos amigos do Guedes e isso não é considerado trágico. O que demonstra de forma definitiva que a tragédia social do dia-a-dia só vira tragédia nacional quando afeta os ganhos do andar de cima.
Mas isso já sabíamos.
Interessa agora debatermos o que fazer para desatar esse nó quando o fim do mundo passar.
Um bom primeiro passo é garantir eleições limpas. Nesse início de quarentena, assisti ao documentário Privacidade Hackeada, que conta a história de como a Cambridge Analytica utilizava dados coletados por meio do Facebook para influenciar eleições no mundo todo. (Nos últimos momentos do documentário, a repórter britânica que investigou o caso cita a eleição de Bolsonaro em 2018 como exemplo de político autoritário que esse tipo de manipulação pode levar ao poder.) A Cambridge Analytica declarou falência, talvez para escapar de punições por seus crimes, mas não há qualquer regulamentação impedindo o Facebook ou outras gigantes da tecnologia de coletarem os dados de bilhões de pessoas e usá-los para fins desconhecidos. Um esforço global para regulamentar essa questão e, talvez, considerar o direito de dados (de saber o que fazem com nossos dados pessoais) como um novo tipo de direito humano parece ser um dos caminhos essenciais.
Por outro lado, os Estados precisam ser fortes o suficiente para bancar a participação de todas as pessoas, sem exceção, em suas economias locais (requisito básico para uma vida digna) e também para ter meios de ação diante de calamidades como uma pandemia. Isso significa que é preciso financiar os Estados nacionais, o que implica necessariamente em medidas como auditorias/revisões das dívidas públicas e cobrança de mais impostos dos milionários e bilionários. Como estes costumam esconder seu dinheiro em paraísos fiscais, é imperativo outro esforço conjunto dos países do mundo para que se faça uma regulação global efetiva por meio da qual sejam impedidos esses tipos de manobra criminosa.
Hum…
Pode até ser que esse tipo de coisa dê certo; porém, relendo agora, me parece tudo muito tímido para a implosão do sistema que pode estar se avizinhando. Precisamos colocar em pauta propostas mais radicais para o pós-devastação.
Que tal uma regulamentação global proibindo que os Estados nacionais direcionem o grosso de seus recursos para armas, guerras e defesa, como se faz atualmente? Quem sabe limitar a renda e o patrimônio de particulares? Um mundo sem milionários ou bilionários, já pensou? Imagine os oceanos de dinheiro que perambulam em contas desconhecidas ou que são gastos com armamento sendo usados para pesquisa científica, educação e infraestrutura. Seria um salto civilizatório sem precedentes para a humanidade.
Quanto à limitação de renda e patrimônio, não venham os liberais dizer que esse tipo de coisa tiraria o “incentivo para empreender” ou que os bilionários que criam coisas úteis “merecem” ser bilionários.
O primeiro argumento é, além de triste, falso, porque é evidente que há incentivos muito melhores e mais potentes para a criatividade humana do que o superficialíssimo “ficar rico”. Trabalhar pelo bem comum e pela evolução moral da espécie, por exemplo, se fossem objetivos valorizados como hoje se valoriza o “trabalhar para ter muito dinheiro”, seriam dois desses incentivos incomparavelmente mais potentes. E é possível, não tenhamos dúvida, mudar os valores de grupos sociais, de comunidades, de países ou do mundo todo.
O segundo argumento é igualmente falso, pois cada geração se utiliza dos esforços e dos conhecimentos deixados como legado pelas gerações anteriores, além dos esforços e conhecimentos de seus contemporâneos. É um ponto de vista bastante curto e impreciso, portanto, considerar que alguém, seja quem for, inventou algo “do nada” e por isso merece ter mais riqueza do que milhões de seres da mesma espécie.
Depois de proibir a existência de milionários e bilionários, será mais factível a regulação estatal de atividades essenciais para todos, retirando-as da lógica do lucro e posicionando-as sob a lógica do bem-estar coletivo. Os grandes aplicativos como os de comida e de transporte, por exemplo, que servem de intermediários para trocas comerciais entre pessoas, poderiam ser expropriados e, ao invés de gerarem lucros para algum bilionário qualquer, poderiam remunerar melhor quem realmente produz a riqueza ou presta um serviço; o excedente arrecadado pelo Estado, que gerenciaria o aplicativo, poderia ser revertido para investimentos públicos que beneficiem a todos.
Utopias? Ideias impraticáveis?
No mundo de algumas semanas atrás, com certeza. No mundo que teremos daqui a alguns meses, quem sabe…
O ponto é que chegou a hora de discutirmos mudanças profundas em nossa civilização, para que possamos criar um estilo de vida cooperativo, inclusivo e que permita a todos os seres humanos viverem com dignidade e desenvolverem seus potenciais criativos.