Ciro no Roda Viva e a noite das garrafadas

Em função do recrudescimento da crise do coronavírus, que derrubou bolsas no mundo inteiro e ameaça provocar, nas economias nacionais, um estrago maior do que nos organismos dos indivíduos infectados, a anunciada entrevista de Ciro Gomes ao programa Roda Viva, na TV Cultura, provocou enormes expectativas.

Com Lula ainda se recuperando das festas na Europa, onde visitou o Papa, recebeu o título de cidadão parisiense, tirou selfies com autoridades da academia francesa, da ONU e de organizações sindicais estrangeiras, e Fernando Haddad se limitando a postar, esporadicamente, um tweet sarcástico, era natural que as atenções se voltassem para a personalidade vulcânica e imprevisível de Ciro Gomes. 

Arthur Miller, o grande escritor e dramaturgo norte-americano, e que ficou ainda mais famoso pelo longo namoro com Marilyn Monroe, tem um livrinho delicioso intitulado Sobre Política e a Arte de Atuar, na qual analisa esse caráter histriônico e dramático de toda liderança. Logo no início da obra, Miller lembra que “não é novidade que somos movidos mais por nossas reações emotivas à personalidade de um líder, por sua atuação dramática, do que por suas propostas ou por seu caráter moral”. 

A observação de Miller, talvez um pouco exagerada, vale seguramente para a maneira como as pessoas olham para Ciro Gomes, o qual, entre todos os seus defeitos, não tem o de fazer o seu ouvinte bocejar. 

Não é por outra razão que o ex-ministro é sempre garantia de audiência, como novamente provou ontem em sua entrevista para o Roda Viva. A âncora Vera Magalhães, informou, antes mesmo de terminar o programa, que a audiência na TV aberta só tinha sido superada pela entrevista de Sergio Moro, hoje o “monstro sagrado” da política nacional, embora em declínio acelerado, ao menos entre aqueles que começam a se afastar do governo Bolsonaro. 

Durante o dia seguinte, o vídeo figurou em primeiro lugar no ranking do Youtube, feito raro para vídeos longos, quanto mais de conteúdo político. Em geral, os vídeos que figuram no topo desse ranking trazem chamadas como “Abrindo e Rindo dos Ovos da Páscoa” ou “Tentando abrir uma garrafa de maneiras impossíveis”. 

Trago essa informação porque ela prova um ponto: as crises têm o poder encantado de fazer as pessoas (e os algoritmos do Youtube) voltarem a se interessar por política. 

É importante ficarmos atentos a esse ponto, porque podem ser sinais – ainda incipientes – de um movimento de mudança na opinião pública, daqueles que observamos pouco antes de alguns momentos dramáticos de inversão dos ventos da política, como alguns observadores mais atentos identificaram nos meses que antecederam as “jornadas de junho” de 2013, antes das eleições de 2018, e antes das grandes manifestações no Chile, para citar um exemplo internacional. 

Sobre a entrevista em si, ela traz um Ciro Gomes clássico: uma voz cheia de adrenalina, agressiva às vezes, mas encorpada numa sintaxe e num vocabulário bem mais sofisticados do que a média. Um sertanejo culto,  revoltado e sem papas na língua. 

Em diversos momentos, todavia, Ciro exagera, puxando confrontos com jornalistas que, felizmente dessa vez, ele mesmo identificou, ainda no curso da entrevista,  como equivocados, como uma crítica infeliz que fez à jornalista Thais Oyama, insinuando que ele tinha afinidades com Bolsonaro. 

Entretanto, Oyama conseguiu irritar Ciro, e boa parte da audiência, ao insistir em perguntas,  estranhas para o momento atual, sobre a… Venezuela. 

Aliás, uma crítica que se pode fazer ao programa foi a obsessão por “pegadinhas” . Embora o Roda Viva seja caracterizado exatamente pelo espírito de confronto, e esta é a razão pela qual ele se tornou, de longe, o programa de entrevistas mais prestigiado do país, essa edição, em particular, apresentou alguns excessos. Não porque o confronto e a provocação não fossem importantes, mas por causa do momento vivido pelo país, em especial a crise do coronavírus. 

De qualquer forma, o entrevistado, mesmo acossado por perguntas inoportunas para este momento, teve tempo de sobra para apresentar suas ideias. Se não conseguiu expõ-las satisfatoriamente, a responsabilidade é mais do entrevistado, que se irrita com facilidade demais, do que dos entrevistadores, que nada fizeram além de seguir as regras tácitas do programa, que é não dar folga a ninguém. 

Por outro lado, os excessos de dureza dos entrevistadores acabam, frequentemente, se voltando em favor dos entrevistados, desde que estes não se percam em demasia nas respostas. É uma das características mais curiosas do Roda Viva que o entrevistado sempre emerja, ao fim do programa, com uma aura de “mártir”. 

Outro ponto interessante é que esses confrontos de Ciro com os repórteres, pontos baixos da entrevista, por desviar o foco, não produziram o mau estar que se esperaria, talvez porque os jornalistas e o próprio público meio que já se acostumaram com o “jeitão” arredio do entrevistado. Aí voltamos à citação do político como ator, feita por Arthur Miller. É difícil contestar que Ciro esteja sendo autêntico e franco em sua indignação, provavelmente porque esteja realmente sendo autêntico e franco, e esse é seu ponto alto, a sua virtude máxima. As pessoas perdoam quase tudo em quem transmite franqueza, ou seja, em quem fala realmente o que pensa. Talvez esse seja a principal característica do nosso tempo, e também ajude a explicar a ascensão de Jair Bolsonaro, que também tem essa “virtude”, de falar o que pensa. Bolsonaro pode ser um reacionário, um autoritário, um ignorante, mas em suas falas ele faz questão de se mostrar exatamente como um reacionário, um autoritário e um ignorante. Ele não esconde o jogo, como fazia, por exemplo, um Michel Temer, com seu jeito misterioso e equívoco.

A entrevista mostra que Ciro, sem sombra de dúvida, está no jogo. E aposta alto. Em dado momento, admite francamente que é pré-candidato a presidência da república em 2022. Isso é bom para ele, porque até o momento, não se vê nenhuma outra liderança de oposição lançando um desafio político tão direto. 

Bolsonaro, é claro, prefere antagonizar com o PT. Seus filhos já até admitiram isso: num dos debates na câmara pela prisão em segunda instância, o “picareta 03”, para usar uma expressão divertida de Ciro, disse com todas as letras que, para eles, é bom que Lula tenha muita visibilidade, porque isso ajuda a reavivar o antipetismo, o sentimento dominante que empurrou o eleitorado para o colo do bolsonarismo.

Logo no inicio da entrevista, respondendo a primeira pergunta, Ciro dá o tom de sua campanha: bater muito pesado em Bolsonaro, de maneira a marcar a si mesmo como oposição linha dura, evitando que essa pecha seja monopolizada por outros setores da esquerda, e ao mesmo tempo traçar uma linha divisória muito clara separando-o do que ele chama de “lulopetismo”, o que evitaria atrair para si a rejeição paralisante do antipetismo. 

Sobre a rejeição, vale lembrar aos incautos que, para entendê-la bem, é preciso considerar os estratos sociais: se pegarmos apenas as classes mais instruídas, com acesso às redes sociais, o antipetismo ainda é muito rígido. Esse é o eleitorado que Ciro pretende atrair para si.  Não se pode confundir, porém, esse eleitorado com “direita” ou “fascismo”. Esse eleitorado é formado, primordialmente, por uma classe média emergente, com renda familiar entre 2 e 5 salários, que cultua a disciplina e a ética como valores fundamentais, até porque são os valores que as mantém vivas, literalmente. 

Um ponto negativo de Ciro, nessa entrevista, foi não ter conseguido driblar as pegadinhas dos jornalistas para apresentar, em mais detalhes, o seu projeto de recuperação da indústria brasileira. Mas alguma coisa ele falou. Ciro lembrou, por exemplo, que as máscaras cirúrgicas, um manufaturado dos mais básicos, são todas importadas da China, fazendo com que, numa crise como essa de agora, em que precisamos importar grandes quantidades de produtos médicos, a nossa balança de pagamentos fique ainda mais negativa. 

Vários temas importantes foram abordados, inclusive a questão dos excessos identitários, uma das razões, sem dúvida, do sucesso conservador em estados como o Rio de Janeiro. Citando Marcelo Freixo e Marcia Tiburi, o ex-ministro faz uma aposta arriscada. Ao falar de temas que hoje são tabu na própria esquerda, pode atrair para si a animosidade da cúpula dourada dos identitários, formada por acadêmicos e celebridades políticas, mas ao mesmo tempo traz para a mesa uma questão estratégica, sobretudo para a esquerda. Se a questão identitária não for equacionada com muita inteligência, a esquerda vai continuar perdendo eleição, até porque a população evangélica – a que mais rejeita a sintaxe identitária – não apenas vem crescendo dramaticamente, como constitui, hoje, um dos setores mais dinâmicos da sociedade brasileira. 

O título do post se refere a um momento dramático da sociedade brasileira colonial, e onde eu vi algumas semelhanças com o que aconteceu no último domingo, 15 de março. 

Em 1830, o assassinato de Libero Badaró, um jornalista muito crítico à monarquia, pelas mãos de simpatizantes do imperador, provocou uma onda de revoltas em todo o país. Entretanto, os apoiadores de Dom Pedro I, que eram sobretudo portugueses, num gesto de arrogância, ainda assim decidiram fazer uma manifestação em apoio ao imperador. Populares revoltados reagiram jogando garrafas e pedras sobre eles. Pareceu-me um pouco o que aconteceu no dia 15, com a diferença de que as garrafas lançadas sobre os manifestantes pró-governo foram virtuais.

O acontecimento marca o início de uma série de revoltas que culminarão no fim da primeira monarquia. O repúdio e a perplexidade de tanta gente com o grau de ignorância das pessoas que foram às ruas no último dia 15, em flagrante desprezo pelo mais básico cuidado com uma questão de segurança nacional, e a participação do próprio presidente no ato em Brasília, podem ter deflagrado uma inflexão da opinião pública brasileira, e o início do fim do extremismo conservador no Brasil.  

 

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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