No cenário de filme apocalíptico que se estabelece ou se desenha para tantos países, dentre eles o Brasil, destaca-se a estultice de duas figuras conhecidas no mundo todo exatamente por esta característica. Donald Trump e Jair Bolsonaro, como bons bravateiros que são e com o quadro grave de mania de perseguição que apresentam, agiram “como se o coronavírus fosse um oponente político que pode ser atacado, constrangido e silenciado”, como disse Steven Aftergood, membro da Federação de Cientistas Americanos, se referindo às palavras e atitudes de Trump que minimizavam a gravidade da pandemia até esses dias. “Mas o vírus não está preocupado com Twitter ou com entrevistas coletivas”, arremata Aftergood (leia aqui a matéria da Folha com as declarações). Uma das pérolas de Trump foi afirmar, no dia 5 de março, baseado em “um palpite” e “muitas conversas”, que a taxa de mortalidade do coronavírus estimada pela OMS (3,4%) é falsa, sendo que “pessoalmente” ele acredita que deve ser menos de 1%.
Com os casos explodindo e se espalhando rapidamente por vários países, Bolsonaro disse na terça-feira passada (10), durante viagem aos EUA, que a “questão do coronavírus” é “muito mais fantasia”, “não é isso tudo que a grande mídia propala ou propaga pelo mundo”. Em seguida, o chefe da secretaria de comunicação do país, Fábio Wajngarten, que estava na comitiva do presidente da república, foi diagnosticado com o coronavírus. Bolsonaro foi então testado (deu negativo), apareceu usando máscara em uma live junto ao ministro da saúde e fez um pronunciamento em rede nacional recomendando que seus apoiadores suspendessem os atos marcados para hoje (15) por conta do risco de transmissão do vírus.
Foi um surto de bom senso presidencial que não durou muito tempo. Atos em diversas cidades foram mantidos e divulgados nas redes sociais do presidente. No ato de Brasília, Bolsonaro foi ao encontro dos seus apoiadores, tocou-os e manuseou os celulares de alguns — sendo que ele estava em isolamento por conta da possibilidade de portar o vírus, ainda que o primeiro teste não tenha sido positivo. O início da reportagem da Folha sobre o acontecimento resume bem o nível de insanidade do presidente da República:
O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) ignorou orientações dadas por ele mesmo na semana passada, ao estimular e participar neste domingo (15) dos protestos pró-governo sem nenhuma preocupação com a crise do coronavírus.
Bolsonaro esteve em contato com no mínimo doze pessoas que estão com o coronavírus e saiu apertando a mão de seus apoiadores, contra todas as indicações médicas. Um chimpanzé pilotando um Boeing, como definiu o Ciro Gomes em uma entrevista recente, virou eufemismo. O presidente do país confirma que é um perigoso sociopata que deve ser defenestrado da presidência do país com urgência.
A capacidade de Bolsonaro e de seus apoiadores de cavarem cada vez mais fundo o fosso de irracionalidade no qual o Brasil afunda surpreende pela total ausência de limites, mas sabemos há um bom tempo que os atuais donos do poder não são lá muito afeitos ao raciocínio lógico.
Em meio a uma pandemia mundial, me parece que vale mais a pena debatermos sobre as raízes do desastre. Como a humanidade chegou ao ponto de elevar idiotas da estirpe de Trump e Bolsonaro a cargos com tamanho poder? Suas atitudes de valentões estúpidos de quinta série provocam fúria, dor, destruição e morte em grau planetário. Em que sentido devemos trabalhar para impedir que isso se repita, no longo prazo?
A raiz psicológica do caos é, acredito eu, o egoísmo humano. Trump e Bolsonaro foram eleitos montados em discursos de ódio. A eleição de um ou vários inimigos, internos ou externos, como bodes expiatórios para a piora nas condições de vida reavivou ou alimentou instintos antigos presentes em nossa espécie. Na hora da sobrevivência, é cada um por si, gritam nossos impulsos ancestrais. Esse tipo de “violenta emoção” pode explicar, em boa medida, a escolha de boçais para comandarem nações inteiras.
Mas Trump, Bolsonaro e seus congêneres protofascistas em tantos países são somente os estopins. Há uma maquinaria ideológica cujas garras penetram em todos os lugares, nas escolas, nas famílias, nas empresas, nas mídias, nas relações, na mente das pessoas. O “cada um por si” está impregnado em todos nós. É sintomático que o sistema econômico dominante tenha sido batizado de capitalismo. Estamos acostumados com ele e o naturalizamos, é verdade, mas não deixa de ser uma aberração que o capital esteja de tal forma no centro de nossas civilizações a ponto de dar nome ao sistema que rege todas as trocas econômicas, sociais e humanas. A lógica da negociação, da vantagem, do lucro, da acumulação permeia até mesmo nossos relacionamentos amorosos.
A vida girar em torno do acúmulo de capital é emblemático. Elevamos o egoísmo ao valor supremo. Vença na vida, fique rico, aprenda a influenciar pessoas, cuide de seu patrimônio. Metas de vida absolutamente pobres, rasas, ilusórias mas que, no entanto, são vistas como desejáveis por bilhões de pessoas. Todas essas metas têm em sua raiz o egoísmo.
“O mercado se autorregulará, não se preocupe”, dizem todos os economistas ouvidos pelos grandes veículos de comunicação. Até lá, uma multidão de pobres e miseráveis come o pão que o diabo amassou. Ou morre de fome. O plano urgente do ministro da economia, Paulo Guedes, para combater a pandemia é… aprovar as p* das reformas que encolhem ainda mais o Estado em um momento no qual a intervenção estatal é crucial para que se salvem vidas e se impeça o colapso.
A pandemia do egoísmo instalou-se na humanidade muito antes do coronavírus. Os sinais estão à vista, diariamente, mas é em momentos de crise aguda como o que vivemos que eles saltam aos olhos. Só não vê quem realmente não quer.
Empresários lucrando horrores com álcool gel, por este ter se tornado item essencial do dia para a noite. Empresas do ramo da saúde cobrando valores absurdos para testar ou tratar a doença (alô, EUA). Medidas de segurança adiadas pela OMS, por governos, por entidades de esporte, por empresas em razão de motivos econômicos. Ausência de medidas enérgicas do Estado que permitam aos trabalhadores evitarem locais com maior probabilidade de contágio, como o transporte público lotado. Indiferença geral (e costumeira) quanto às pessoas em situação de rua.
Mesmo quem continua sua vida social como se nada estivesse acontecendo, indo a lugares com alta aglomeração de pessoas e onde se costuma usar entorpecentes altamente nocivos — e aqui me refiro especialmente ao álcool — que derrubam a imunidade e facilitam o contágio, está expressando um triste egoísmo. Eu mesmo, quando descobri que a letalidade do coronavírus atinge praticamente só os idosos e alguns grupos de risco, senti um alívio e dei uma relaxada. Mas e se eu pegar e transmitir para alguma pessoa que pode adoecer e morrer, tudo bem? Mais tarde refleti que não, obviamente não está tudo bem. Deveríamos todos agir como se fosse nossa vida que estivesse em perigo. Tomar todas as precauções necessárias. Sem pânico, mas com a maior responsabilidade possível. Correr o risco de transmitir o vírus para alguém que pode morrer é uma atitude socialmente aceitável, motivo até de piada, de memes. O egoísmo está impregnado em todos nós, em maior ou menor grau.
É preciso mudar o paradigma psicológico da humanidade. Substituir o egoísmo pela solidariedade. Deixar de incentivar socialmente a competição e passar a valorizar a cooperação. É uma ideia tão obviamente correta, a de que o amor ao próximo é mais benéfico para todos do que o salve-se quem puder, que mesmo os que destilam ódio em seus atos e palavras costumam se dizer cristãos, ou seja, seguidores do personagem histórico que tentou mudar o paradigma — sem muito sucesso, até aqui.
Quanto dinheiro e energia a humanidade já gastou na construção de armas ou na execução de projetos que visam apenas o lucro? Imagine toda essa potência direcionada para o bem coletivo. Imagine se o que movesse as pessoas não fosse mais o lucro, mas sim a evolução de todos, a expansão dos potenciais criativos humanos, a harmonia de nossa vida em sociedade. Poderíamos ter a cura para todas as doenças, uma rede de proteção social que não deixasse ninguém para trás, ninguém desassistido, condições dignas de vida e apoio das comunidades humanas para o desenvolvimento de nossas habilidades mais sublimes. Capacidade de responder coletiva e solidariamente a eventos catastróficos como uma pandemia ou um desastre natural.
Não se trata de uma utopia. Acreditar que a mente humana esteja presa para sempre neste autocentramento destrutivo e suicida é que é uma distopia. Existem muitos métodos, conhecidos há muito tempo, que podem mudar o funcionamento da mente humana. Técnicas ensinadas por filosofias orientais que conduzem ao domínio sobre os pensamentos, para que a mente funcione de forma mais amorosa e menos egoísta, devem ter espaço nos programas da esquerda para a educação, combinados com métodos educacionais libertários como o de Paulo Freire, que forneçam ferramentas intelectuais para que os alunos questionem a ordem estabelecida e possam liberar seus potenciais criativos e auxiliar na construção de outro tipo de sociedade, mais humana, mais fraterna, mais sábia.
Momentos de colapso como o que vivemos pedem, ou melhor, imploram que debatamos e priorizemos mudanças profundas em nossos projetos políticos e educacionais. Do contrário, o filme apocalíptico deverá acabar mesmo em hecatombe.