No dia do instantaneamente histórico episódio da retroescavadeira antifascista eu assisti, logo antes de dormir, ao vídeo da cena em que Cid Gomes avança contra os policiais amotinados e, em seguida, é baleado. Fiquei sabendo do vídeo por meio de um grupo de amigos no Whatsapp. Um dos amigos, militante de esquerda, havia comentado que nada justificava dirigir um trator pra cima de pessoas. Depois de ver as imagens chocantes, deitei em minha cama e permaneci um tanto atônito até pegar no sono.
Somente no dia seguinte fui entender o contexto daquela situação absurda. Os vídeos e os relatos da movimentação de Cid durante o dia do ocorrido tornaram evidente, para mim, que os atos criminosos de policiais encapuzados motivaram as ações e, por fim, o ato heroico. As acusações de “coronelismo” e “atitude eleitoreira”, inclusive por parte de pessoas de esquerda, são estapafúrdias. O senador colocou-se em uma linha de tiro, assumiu o risco de morrer para defender as liberdades de cidadãos que estavam sendo aterrorizados por policiais encapuzados. Se Cid está disposto a um ato desses apenas para garantir alguns votos, que surjam mais políticos eleitoreiros; estamos precisando.
Mais tarde, no mesmo dia, em outro grupo de amigos no Whatsapp, este com tendências mais à direita, algum meme sobre o assunto foi enviado e outro amigo questionou os motivos para o ato aparentemente tresloucado de Cid. Contextualizei o acontecido com as informações que tinha obtido ao longo do dia e o assunto passou a ser o perigo que representavam os atos criminosos dos policiais.
Conto tudo isso para ilustrar a importância da disputa de narrativas em um episódio emblemático como este. Os filhos do presidente da República, por exemplo, contribuíram para a construção da narrativa que apresenta Cid como um maluco inconsequente e os policiais criminosos como vítimas. Eduardo Bolsonaro escreveu no Twitter que a atitude de Cid foi insensata e que ele expôs “militares e familiares a um risco desnecessário”. Flávio Bolsonaro foi ainda mais longe ao afirmar que Cid provocou a reação “em legítima defesa de pessoas que estão reivindicando melhores salários”. A centralidade da guerra da informação para os embates políticos contemporâneos torna ainda mais lamentável a postura vacilante do PT e de suas principais lideranças diante do episódio da retroescavadeira. A nota do partido em solidariedade não a Cid, mas ao governador petista Camilo Santana — que, ao que consta, não levou tiro algum — foi um escárnio. Mas não surpreendeu. Mais uma vez o partido dos trabalhadores coloca seus cálculos políticos à frente do enfrentamento ao autoritarismo.
O PT demonstrou ter visão curta e autocentrada ao levar às últimas consequências uma estratégia suicida nas eleições de 2018 que resultou na entrega do poder central para um estúpido com tendências fascistas. (Para quem já estiver com os dedos posicionados para digitar que, sendo assim, Ciro não deveria ter saído do país no segundo turno das eleições de 2018, digo que foi realmente um erro do pedetista; mas não há como comparar um ato que seria simbólico, uma vez que o resultado do primeiro turno era virtualmente irreversível, com uma postura que poderia realmente ter mudado o resultado da eleição.) Toda agremiação política luta de forma constante por hegemonia, é evidente, mas essa tendência natural não impede eventuais gestos de grandeza e sabedoria política. Na Argentina, Cristina Kirchner, que, assim como Lula, liderava as pesquisas mas tinha uma alta rejeição, abriu mão de ser cabeça de chapa para, nas suas palavras, “convocar os mais amplos setores políticos e sociais” a se juntarem a ela e o então candidato a presidente, Alberto Fernandéz. Resultado: Mauricio Macri foi derrotado.
Comparemos sua postura com a de Lula. Em uma entrevista do fim do ano passado, Lula disse o seguinte sobre Ciro Gomes:
Uma das coisas que ele diz publicamente é que eu não deixei o PCdoB se aliar a ele. Você acha que o jogador do São Paulo ia deixar o jogador do Corinthians marcar um gol, só para agradar o Corinthians? O PT estava numa disputa, foi construir a sua aliança política e convenceu os outros partidos a vir junto. E o Ciro acha que o PT deveria ficar sentado e dizer “vai, todo mundo com Ciro, vai todo mundo com Ciro”? Mas que brincadeira que é essa?
O espírito de Lula e da direção petista está bem resumido nas palavras acima. Para ambos, a eleição de 2018 tratou-se de mais uma disputa política comum, na qual o PT buscou aliados como sempre fez. Percebe-se que não houve qualquer preocupação com a alta rejeição do partido e a consequente dificuldade de angariar apoio em setores mais amplos da sociedade. Resultado: escorreu pelo ralo a última chance de impedir a ascensão do bolsonarismo ao poder. Ressalte-se que, além da questão envolvendo o PCdoB, o PT trabalhou para impedir o apoio do PSB a Ciro em troca da… neutralidade do partido nas eleições.
Essas reflexões sobre as estratégias petistas são necessárias para pensarmos sobre os melhores caminhos para as próximas disputas eleitorais. O PT ensaia apoiar candidatos de outros partidos na eleição municipal deste ano em algumas cidades, como Marcelo Freixo (PSOL) no Rio de Janeiro e Manuela D’ávila (PCdoB) em Porto Alegre. Parece um recuo estratégico para não correr o risco de isolar-se no campo da esquerda. Ainda assim, diante do histórico do partido, soa como falsa a declaração da sua presidenta, Gleisi Hoffmann, de que o PT pode apoiar Flávio Dino (PCdoB) para a presidência em 2022.
Ainda mais importante em um debate sobre os rumos da esquerda é aquela questão fulcral que às vezes deixamos de lado: qual o melhor projeto para o país? O projeto petista tem inegáveis méritos — que o digam as milhões de famílias que pela primeira vez tiveram acesso a coisas essenciais para uma vida digna como luz, água, comida e educação — os quais podem ser verificados na experiência prática do período em que o partido governou o país. Assim como tem seus defeitos e limites, os quais também podem ser aferidos na prática. Política econômica predominantemente ortodoxa, incapacidade (ou falta de vontade) de fazer reformas estruturais como a tributária e a política, nomeações de conservadores para cargos de poder em quase todas as esferas do judiciário (com destaque para o desastre das nomeações para o STF), inação frente à desindustrialização do país e ausência de enfrentamento político e comunicacional mínimos para construir uma resistência às investidas golpistas da direita foram alguns dos limites do projeto petista, os quais foram fulcrais para que chegássemos a este quadro assustadoramente deteriorado em que nos encontramos.
Não há qualquer sinal de que o partido reconhece os erros ou de que revisará seus objetivos e métodos. Pelo contrário: qualquer menção a uma autocrítica é prontamente rechaçada por suas principais lideranças. Some-se a isso a tendência irremediável para o hegemonismo e temos uma sinuca de bico. Muito embora o PT seja o maior partido de esquerda do país e tenha uma base eleitoral considerável, não parece haver outra opção para os setores da esquerda não convergentes com o petismo que não, como diz o próprio Lula, partir para a disputa. Pelas movimentações até aqui, parece que o PDT e o PSB entenderam isso; o PCdoB e o PSOL demonstram, ao aproximarem-se do partido dos trabalhadores, divergir dessa análise. O fato é que, apesar do perigo fascista, a briga entre os partidos da esquerda deve prosseguir como acontece em um Gre-Nal ou Fla-Flu: sem ilusões de fidalguia.