Frederico Krepe: a esquerda e a solidariedade identitária

Por Frederico Krepe

Os eventos ao redor dos tiros contra Cid Gomes são de conhecimento geral da população brasileira e têm levado a várias discussões importantes. Desde a atuação das polícias no Brasil, até a crescente influência do bolsonarismo no seio militar e o seu total desrespeito por regras democráticas e consensos civilizatórios. A crise gerada pelos PMs amotinados foi motivo de reação de diversas forças do espectro político brasileiro, mas me chama a atenção na forma como setores da esquerda, especialmente PT e PSOL, e seus militantes nas redes reagiram ao ocorrido.

Um dos elementos que mais me chamou a atenção foi a falta de solidariedade de muitas pessoas e o tom seco e distante presente nos pronunciamentos, quando foram feitos, de várias lideranças (a única exceção foi o forte posicionamento de Dilma Rousseff). Tanto algumas figuras dos partidos como parte de suas respectivas militâncias tiveram uma imensa dificuldade em prestar um ato de solidariedade genuíno, sem amarras ou rancores e o que se viu, especialmente nas redes, foi muita gente atacando ou debochando de Cid Gomes, ou simplesmente se calando. Essa atitude é sintomática de algo que ocorre cada vez mais no seio de certos grupos de esquerda, a solidariedade identitária.

A solidariedade identitária parte do princípio de que só devemos ter genuína solidariedade e preocupação com aqueles que estão inteiramente incluídos no nosso grupo e pensam como nós. Nada fora disso é digno de nota. Muito dessa característica vem de uma cultura política cultivada pelo petismo desde a sua criação. A cultura política petista tem uma imensa dificuldade em se relacionar aqueles que pensam fora dos seus moldes ou que se afastaram, mas ainda são virtuais aliados. Foi assim com Brizola, com os comunistas no passado e hoje é assim com figuras como Marina Silva, Heloísa Helena, setores da esquerda do PSOL e lideranças como Ciro e Cid Gomes. O fato de estarem inseridos em tradições políticas diferentes e tecerem críticas ao PT faz com que a relação com determinados quadros seja sempre parcial ou protocolar se estes não aceitam se submeter à visão de mundo e estratégia política petista.

Esse comportamento ainda guarda algo mais básico, e muito mais perigoso, que é o clima constante de desumanização dos adversários, propagado pelo petismo. Em 2014, Marina Silva foi massacrada pela campanha petista de uma forma tão brutal que muitos nutrem um ódio desproporcional contra ela até hoje. Algo semelhante aconteceu com Ciro Gomes em 2018, já que o simples fato de se negar a subir no palanque petista no segundo turno, depois de ter sido atacado da forma mais baixa possível no primeiro, é suficiente para que ele seja pintado como um monstro. Com Cid Gomes a história é parecida. O senador ficou famoso pela frase “O Lula tá preso, babaca!” proferida e um ato político com lideranças do PT, mas se esquecem que ele também foi para a rua tentar ganhar votos para o Haddad. Não só isso, Haddad venceu em todas as cidades vencidas por Ciro e teve um desempenho extraordinário no Ceará. Todos esses fatos são descartados e o que sobra é o rancor e o ódio por quem está em raias diferentes, ainda que tenham inimigos comuns. É essa desumanização que vi se repetir com a reação de parte da militância influenciada por essas atitudes.

A solidariedade é um valor cada vez mais esquecido pela esquerda. A própria ação da esquerda parece se distanciar cada vez mais de uma orientação dada por valores. Pautas orientadas pela defesa da igualdade, da justiça, e da liberdade foram, sorrateiramente, dando espaço para reivindicações cada vez mais exclusivistas e divisivas.

Não é diferente no caso em questão. Só podemos ter solidariedade com aqueles que são do mesmo grupo que nós, qualquer um que seja diferente não merece nosso olhar. Deixamos de olhar para o universal, para o humano e passamos a nos preocupar somente para o grupal, o particular. A partir do momento que o grupal passa a desempenhar um papel de centralidade, esquecemos a razão, a empatia e a preocupação com o outro. Pior, pensamos estar com a razão completa e o outro estar completamente errado, o que faz com que sejamos violentos, arrogantes e nos comportemos de forma cada vez pior. Esse erro é extremamente comum no meio político e temos que tomar muito cuidado para não reproduzi-lo no cotiano de nossa ação política. A esquerda parece se esquecer que é exatamente esse o modus operandi da extrema-direita que tomou conta do país e repete os mesmos erros.

Penso que o momento exige refletir sobre o que realmente é ser de esquerda. Ser bom leitor de Marx, Lênin e outros não é o que nos faz de esquerda. Agitar gente na rua, construir um sindicado ou outro movimento também não. Tampouco levantar uma bandeira vermelha, colocar um boné do MST ou gritar “Marielle Vive!”, “Lula livre!” ou outras palavras de ordem. O que faz uma pessoa ser realmente de esquerda são os valores pelos quais ela luta para serem realizados na sociedade, valores de igualdade, solidariedade, justiça, liberdade entre outros. Todas as outras coisas citadas podem contribuir, passar a imagem de alguém de esquerda ou progressista, mas isso tudo é cosmético e visual. O verdadeiro conteúdo está nos valores que nos guiam e eles que devem ditar nossa ação política, não a ocasião, o cálculo político ou a busca por uma vitória institucional parcial. É urgente entendermos que o que nos move está além daquilo que mostramos aos outros, só assim conseguimos sair da solidariedade identitária em busca de algo mais forte e abrangente. Só assim nos reconectaremos com o povo e suas dores para podermos ganhar a hegemonia da sociedade novamente em direção a algo melhor. Só assim conseguiremos combater o autoritarismo que nos assola com força e apelo popular.

* estudante de pós-graduação em Filosofia da UFJF.

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