Anderson França: retroescavadeire-se

No Metropolis

Retroescavadeire-se: não se combate ditadura em 2020 como em 1964

A desordem que se instalou neste país não vai acabar na base do trombone com fita colorida, trompete, flor, poesia e ciranda

Por Anderson França
21/02/2020

Eu não vou perder meu tempo criticando Cid Gomes. Se você está sem tempo hoje pra me ler, resumo da coluna tá aqui: achei foi pouco. Não vai acabar a desordem que se instalou neste país, na base do trombone com fita colorida, trompete, flor, poesia, ciranda e debate sobre o close certíssimo.

Ninguém vai, queridos, NUNCA, ser 100% close certo. Política é o ofício dos que sabem conviver com a esgotosfera das mentiras, egos e disputas pelo poder. Política não é, nunca foi, uma delicada coreografia de bailarinos num teatro municipal. Dá tudo errado. É como o artista que anda sobre a corda bamba no Cirque du Soleil, casa cheia, filmando DVD. Ele ensaia isso 10 horas por dia e, então, vai até o meio da corda e cai. Se espatifa no chão, morre, o povo se desespera, as câmeras cortam a gravação, as crianças choram, vão guardar aquela imagem terrível. Isso, meu amigo, ISSO É POLÍTICA.

Não se iluda.

Tudo que as esquerdas venderam de utopia e negociação entre o poético e a realidade pra ganhar votos do jovem que quer agredir os pais na hora do jantar é mentira.

Você vota Haddad e Freixo, tua mãe fez a tia fascista no WhatsApp, apoiou, divulgou, votou e conquistou votos pra Bolsonaro.

A esquerda ciranda só ilude under 30.

Mas existe OUTRA esquerda ou OUTRAS FORÇAS DE OPOSIÇÃO que não sejam apenas no gogó e no debate comportado?

Meu irmão, minha irmã… Se tu aplaudiu Bacurau, e condenou Cid Gomes, trago más notícias.

O Pedro Cardoso fazendo Gabeira em O Que É Isso, Companheiro? e o Pedro Cardoso real, escrevendo maravilhosamente no Instagram todos os dias são, ambos, incríveis, mas não são a mesma pessoa, a mesma persona, no sentido de intervir na História. Apesar de o Gabeira de Cardoso ser igualmente sensível, como ambos. Educadíssimo e lúcido, como ambos, mas o cara tava num momento de botar um oitão e meter a tocaia em ninguém menos que o EMBAIXADOR DOS ESTADOS UNIDOS no Brasil.

Eu não estou de maneira nenhuma defendendo sequestro, terrorismo ou ação criminosa, eu estou dizendo que o Cid Gomes, gostando você dele ou não, pegou um trator e foi pro pau com os ôme.

Por menos que isso, você pichou “Fora Temer” e foi para ruas.

A esculhambação doentia que Bolsonaro fez com a jornalista da Folha de S.Paulo, as inúmeras violências DIÁRIAS contra a imprensa, minorias, sociedade, funcionários públicos, soberania nacional, favelas… Isso nos afunda numa lama perigosíssima, porque Bolsonaro e o governo federal vão usar a força que têm pra criminalizar pessoas, como criminalizaram Lula por dizer que somos governados por milicianos, convocando o ex-presidente para depoimento na Polícia Federal.

E esse jogo, essa disputa de quem bate mais, e quem reage mais, nos encaminha para um vale onde apenas o confronto pode existir, e isso não será bom, nem pra sociedade civil, nem pra mim, pra você, tampouco para a República, para nossa imagem no exterior, já totalmente defasada, desgastada, jogada à margem das importâncias.

Enquanto isso, todos os outros membros do Brics estão com economia crescente, evoluindo em diversas áreas, alguns deles, como a China e a Rússia, sendo o contrapeso nas relações macropolíticas com Europa e Estados Unidos.

E o estado brasileiro empenhado em violentar uma jornalista reconhecida internacionalmente, com prêmios, publicações e reportagens épicas. O estado que permitiu que as polícias militares se tornassem o quarto poder e, com elas e através delas, a milícia, que deixou de ser um problema no Rio e virou algo presente no país inteiro.

A morte de Adriano assume características cada vez mais suspeitas, o advogado de Bolsonaro diz que o ex-PM era INOCENTE, a antiga base de Bolsonaro está desfeita, o caos político é o cotidiano, entre o Planalto e o Legislativo e o Judiciário, constantemente ameaçados pelos militares que ocuparam até a Casa Civil.

Então, a esquerda e a militância que ainda se pensam no período dos governos do PT, que permitiam todo e qualquer debate dentro do espírito democrático, continuam perdendo tempo com ideações de luta, aplaudindo Petra Costa, assistindo a Marighela, Bacurau, especial de Natal, gritam “Marielle Vive”, mas na hora que uma pessoa mete a loka, sobe num trator, e vai pra linha de tiro…

Ah, não.

Coronelismo. Não. Cid e o irmão são loucos. Nunca botei fé. Olha aí.

Caiu a máscara.

E Brizola, amados?

Brizola com um trabuco na mão, na Campanha da Legalidade, pronto pra descer o ferro?

Brizola seria cancelado. Como, aliás, foi. Sabemos disso, que o PT demonizava Brizola.

Eu não acho que o caminho pro Cid seja ele se expor desse jeito, mas, meu amigo:
Eu não vou dizer que ele agiu errado. Ele cansou, meu amigo. Errado ou não, ele jogou o nome e o corpo pro escrutínio da História.

General Heleno pode dizer: “Foda-se o Congresso”, o presidente pode dizer de maneira suja que uma jornalista queria dar o “furo”. Mano, é FURO o nome que ele dá pra vagina? É esse o nome porco e o tratamento desgraçado que ele dá? É assim que ele se refere aos órgãos genitais de Michele e de sua filha?

Fazer essa pergunta é passar dos limites como colunista?

Então eu estou usando uma retroescavadeira pra debater um assunto que eu deveria ter compostura? Então para esse tipo de imundície que o chefe do Executivo faz – e que não começou hoje – eu tenho que recitar mantra?

Você acha que eu não tinha outra coisa pra escrever?
Estamos sequestrados pelo absurdo.

E a desordem social notória vai ser cobrada de nós internacionalmente.

Nós vamos pagar o preço na indústria, nos empregos, na credibilidade.

Eu subo na retroescavadeira, quando não me resta outra alternativa.
O Brasil é feito de lutas. Quem apagou isso mentiu.

Na favela, nos Quilombos, nas aldeias, nos conjuntos habitacionais, sempre houve luta.

Nós estamos muito próximos de uma convulsão social. E quem está minimizando isso deveria se trancar em casa e respeitar quem tem coragem de botar o próprio peito na mira.

A milícia que atirou em Cid estava aterrorizando uma cidade que só tinha a polícia, mas a mesma polícia estava envolvida nessa delinquência. Meu amigo, Cid não passou a vida em cima de trator. O que estamos presenciando é o momento em que o Brasil está pegando uma curva que não vai ter volta.

Nossa, Anderson, você é alarmista.

Eu vejo você dizer isso, sentado numa cadeira e bebendo chá, no meio de uma casa em chamas.

Ninguém queria chegar neste momento.

Chegamos.

Precisamos entender que as ditaduras de 2020 evoluíram. Não tomam mais o poder na marra, como antes. Agora se elegem. Usam o Judiciário, tecnologia. Não podemos combater as ditaduras de 2020, pensando na de 1964. Não vamos encontrar solução para o que acontece agora, esperando que caia do céu um herói Lula ou uma heroína Dilma pra nos salvar.

Sinto dizer, você precisa encontrar uma retroescavadeira pra chamar de sua.

Pra ontem.

* Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Metrópoles.

[Mas reflete a do Cafezinho, necessariamente]

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