Por Tatiana Ferreira*
Com base em entrevista com a Cônsul Geral da China no Recife, a reportagem elucida dúvidas frequentes sobre o conflito em Hong Kong
Nos últimos meses, muito se fala sobre o sistema social e econômico da República Popular da China nos meios de comunicação de massa e na internet. No fervor desse debate, um assunto se destaca: os protestos que abalaram a Região Administrativa Especial de Hong Kong (RAEHK). Sob a premissa de defender os direitos humanos e a democracia, manifestantes encheram as ruas da cidade e se levantaram contra o governo chinês. No Brasil, a grande mídia repercutiu a narrativa alinhada com a leitura norte americana sobre o caso e endossou o discurso de uma China opressora.
Para compreender o que está acontecendo em Hong Kong, é preciso entender um pouco da sua história e das verdadeiras razões que levaram os opositores a protestar. Tudo começa quando o governo imperial da antiga dinastia Qing assina três tratados com a Grã-Bretanha sobre a questão da cidade: o Tratatado de Nanquim em 1842, a Convenção de Pequim em 1860 e a Convenção para a Extensão do Território de Hong Kong em 1898. De acordo com a última convenção, o prazo de arrendamento era de 99 anos – ou seja, até 30 de Junho de 1997. O governo chinês recuperou a soberania da localidade, a qual foi colônia britânica por mais de 150 anos, no dia seguinte ao encerramento do acordo.
Desde o retorno da província à soberania chinesa, os sistemas sociais e econômicos de Hong Kong, assim como o estado de porto franco, o centro financeiro e de comércio internacional não sofreram alterações. Sob a Lei Básica (formulada de acordo com a Constituição e que estipula os sistemas e políticas implementadas), a vida original da população local também permanece inalterada. Por exemplo, Hong Kong ainda tem feriados de Páscoa, aniversário de Buda e Natal. Todas as noites de quarta-feira ou nas tardes de domingo, as pessoas ainda vão ao campo de corrida de cavalos para fazer apostas.
“Temos uma expressão muito vívida: o estoque continua a negociar-se, as corrida de cavalo continuam a realizar-se e nós continuamos a dançar”, comenta a Cônsul Geral da República Popular da China no Recife, Yan Yuqing. Outro sucesso reconhecido internacionalmente é a aplicação da política “Um País, Dois Sistemas”. Com sua implementação, os direitos e a liberdade dos residentes não foram reduzidos, pelo contrário: estão ainda mais garantidos do que durante o período colonial britânico.
“Durante os 20 anos de retorno de Hong Kong à China, os extremistas radicais, sob a manipulação de certas forças estrangeiras, têm organizado várias tentativas de prejudicar a prosperidade e estabilidade da cidade e subvertem a política de ‘Um País, Dois Sistemas’. Essas manifestações violentas são provas claras disso”, revela a Cônsul, Yan Yuqing, sobre a influência externa na organização e estruturação desses protestos.
De acordo com as notícias disseminadas pela mídia brasileira, o estopim para a onda de manifestações foi a suposta “facilitação de extradição para a China Continental”. Apesar de o projeto de lei ter sido proposto pelo próprio governo de Hong Kong, os defensores dos protestos e figuras influentes declararam sentir receio que essa medida enfraquecesse o marco legal. Com essa suposta fragilidade, foi levantado que a população estava com medo que cidadãos estrangeiros que passassem pela cidade pudessem ser julgados nos tribunais da China Continental.
A versão oficial é que um habitante de Hong Kong fugiu para casa após assassinar a sua namorada grávida em Taiwan, porém Hong Kong não tem jurisdição sobre o caso. A fim de transferir o suspeito para Taiwan e julgá-lo, o governo de Hong Kong propôs alterar a Portaria de Ofensores Fugitivos para permitir que Hong Kong conduza suspeitos de transferências especiais para a China Continental. Afinal Macau e Taiwan ainda não assinaram acordos sobre transferência de fugitivos. Ou seja, ao contrário de “enfraquecer fundamentos do Estado de Direito”, a emenda da portaria visa tapar brechas legais e impedir que Hong Kong se torne um “paraíso dos fugitivos”. Portanto, essa prerrogativa é falsa.
Segundo a explicação da Cônsul chinesa no Recife, Yan Yuqing, o sistema político da RAEHK é um Sistema de Responsabilidade do Chefe Executivo. Isso quer dizer que os poderes executivo e judiciário são independentes, mas limitados e com colaboração mútua. O mesmo ocorre com o legislativo. Vale ressaltar que o governo da RAEHK está sob a liderança do governo central da China e seu nível de administração é equivalente ao das províncias, regiões autônomas e municípios. No entanto, possui um alto grau de autonomia e poderes independentes. Além disso, tem o poder de revisão final e emissão de moeda.
Com exceção da defesa nacional, diplomacia e outros poderes estipulados por lei, a RAEHK também pode participar de assuntos internacionais e assinar acordos com outros países em nome de “Hong Kong da China”. “Se Hong Kong não for chamado de ‘região autônoma’, não consigo pensar em outro termo para denominar”, expressa a Cônsul, Yan Yuqing. “A prática prova que ‘Um País, Dois Sistemas’ é a melhor solução para o problema de Hong Kong e o melhor sistema institucional para manter a prosperidade e estabilidade a longo prazo após o retorno”, conclui.
Já em relação a tentativa dos Estados Unidos (EUA) em corroborar com a narrativa que enquadra a China como opressora dos direitos humanos e das liberdades individuais, o governo chinês compreende que as manifestações foram violentas e incapazes de levantar tais bandeiras. Segundo informações fornecidas pelo Consulado Geral da China no Recife, os manifestantes excederam os limites de protestos pacíficos, bloquearam o Conselho Legislativo, a sede da polícia e estradas. Além disso, quebraram lojas e violentaram agentes da polícia.
“Se isso acontecesse nos EUA, tenho certeza que a polícia norte americana empunharia armas para se defender sem hesitar. Eles possuem padrões duplos na área de direitos humanos”, analisa a Cônsul, Yan Yuqing. Apesar dessa situação, o governo chinês concluiu a primeira fase do acordo econômico-comercial com os EUA e espera que o o governo norte americano esteja no mesmo sentido que a China. “Sob o importante consenso alcançado pelos dois chefes de estado, os Estados Unidos devem resolver as divergências com base no respeito e expandir a cooperação baseada no benefício mútuo – promovendo as relações sino-americanas mais coordenadas, cooperativas e estáveis. Acredito que isso é uma boa notícia para outros países do mundo, incluindo o Brasil”, declara.
* jornalista e diretora de comunicação da FLB-AP de Pernambuco.