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Theófilo Rodrigues: “A esquerda brasileira não morreu”

Por Theófilo Rodrigues O filósofo Vladimir Safatle acaba de publicar no El Pais interessante artigo em que declara a morte da esquerda brasileira. Bem escrito, o texto é um daqueles que vale a pena ser lido e relido com atenção. O principal mérito de Safatle é propor uma relevante discussão sobre as dimensões da fragilidade […]

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Por Theófilo Rodrigues

O filósofo Vladimir Safatle acaba de publicar no El Pais interessante artigo em que declara a morte da esquerda brasileira. Bem escrito, o texto é um daqueles que vale a pena ser lido e relido com atenção. O principal mérito de Safatle é propor uma relevante discussão sobre as dimensões da fragilidade da esquerda brasileira hoje. Afinal, momentos de crise costumam abrir oportunidades únicas para debates programáticos e estratégicos. Sob esse registro, vale a lembrança de como a queda do Muro suscitou a organização de uma série de coletâneas com artigos dos mais diversos intelectuais sobre o futuro da esquerda como After the Fall, de Robin Blackburn, e Reinventing the Left, de David Milliband, entre tantos outros. Peço, contudo, licença para discordar de Safatle.

Minha discordância em relação ao texto de Safatle reside em dois aspectos: a primeira, de cunho político-conjuntural, refere-se à avaliação sobre a suposta morte da esquerda brasileira; a segunda, de caráter político-programático, diz respeito à sua leitura sobre o significado do populismo de esquerda.

Vamos tratar primeiro da suposta morte da esquerda brasileira. Nos últimos 17 anos a esquerda brasileira esteve no governo federal por 13 anos. Das últimas cinco eleições presidenciais (2002, 2006, 2010, 2014 e 2018), quatro foram vencidas pela esquerda. Então fica a pergunta: como assim a esquerda brasileira está morta?

Certamente a esquerda brasileira sofreu duas importantes derrotas nos últimos quatro anos. Primeiro, com o impeachment de Dilma Rousseff em 2016 e, em seguida, com a eleição de Jair Bolsonaro em 2018. Mas a derrota momentânea de um campo político não significa a sua morte. Do contrário, alguém poderia dizer que a direita brasileira morreu em 2002 e permaneceu dentro do caixão até 2016. Mas sabemos que não foi exatamente isso o que ocorreu.

Ademais, bom que se diga que a esquerda brasileira não é homogênea. Vejamos dois exemplos. O PSOL dobrou sua bancada na Câmara dos Deputados em 2018 e, em 2020, tem grandes chances de eleger Marcelo Freixo como prefeito da cidade do Rio de Janeiro. O PCdoB viu sua influência nacional ampliar após a reeleição do governador Flávio Dino no Maranhão, em 2018, além de ter grandes chances de eleger Manuela d´Ávila como prefeita de Porto Alegre em 2020. Essa esquerda, indicam as pesquisas eleitorais, não parece estar morta.

Confesso que a leitura de Safatle me remeteu imediatamente ao mesmo erro de avaliação cometido por Alain Touraine, um dos principais sociólogos franceses, quando declarou a morte da esquerda na década de 80. Em 1980, Touraine publicou um pequeno livro intitulado O pós-socialismo. Relembrando: após o período disruptivo de maio de 68, a sociedade francesa, que parecia querer respirar ares libertários, elegeu uma assembleia e um governo conservador que durou mais de uma década. Inconformado com a situação, Touraine apontou o fim da política socialista e a urgência da construção de um novo tipo de ação capaz de dialogar com os então novos movimentos sociais que surgiam. Disse Touraine, com uma inabalável certeza: “na França, como aliás em toda parte, o socialismo chegou ao final de seu caminho. Sua grandiloquência limita-se a uma política politiqueira e sua voz sufoca a voz dos novos movimentos sociais”.

Teria sido uma preciosa intervenção teórica e política sobre aquele momento histórico, não fosse por um pequeno detalhe que marginalizou o sucesso do livro: no ano seguinte, em 1981, o Partido Socialista francês, sob a liderança de François Mitterrand, venceu a presidência e lá permaneceu até 1995; em Portugal, o socialista Mario Soares foi eleito primeiro-ministro em 1983 e, em 1986, assumiu a presidência, de onde o Partido Socialista saiu apenas vinte anos depois, em 2006; na Espanha, Felipe González do PSOE foi eleito primeiro-ministro em 1982 e deixou o cargo apenas em 1996; e na Grécia, Andreas Papandreu, do PASOK, foi eleito primeiro-ministro em 1981 e só deixou o posto em 1989. Afinal de contas, nem sempre os sociólogos acertam em suas previsões.

Claro, alguém poderia argumentar que todos aqueles partidos de esquerda que venceram eleições nas décadas de 80 e 90 passaram por um aggiornamento programático rumo ao centro, na direção daquilo que Anthony Giddens convencionou chamar de “terceira via”, ou como Tarik Ali prefere, de “extremo-centro”. Concordo com essa avaliação. Mas não é essa a abordagem de Safatle.

Aliás, esse ponto me remete à segunda discordância em relação ao texto do autor. Embora não cite, Safatle claramente utiliza o conceito de populismo formulado por Ernesto Laclau e propagandeado por Chantal Mouffe. Mas quando dá um passo adiante para a definição do “populismo de esquerda”, há certo deslize.

Crítico da ideia de populismo, Safatle enxerga o “populismo de esquerda” como um tipo de articulação política homogênea. Nas palavras de Safatle, no populismo de esquerda o “povo” “nasce como uma monstruosa entidade meio burguesia, meio proletariado. Uma mistura de JBS Friboi com MST”. Tudo bem que essa possa ser uma forma de articulação do populismo. Mas não é a única. Mouffe e Laclau, por exemplo, entendem que o populismo de esquerda é aquele que articula uma política de democracia radical. Em “Hegemonia e estratégia socialista” os dois argumentam em defesa de uma política em que as lutas contra o racismo, o sexismo, a discriminação sexual e em defesa do meio ambiente precisam ser articuladas às dos trabalhadores num novo projeto hegemônico de esquerda. E parte da esquerda brasileira já tem caminhado nessa direção como, aliás, aponta o movimento dos Comuns capitaneado por Manuela d´Ávila.

A esquerda brasileira certamente está na defensiva, mas não está morta. Quem impediu a aprovação da capitalização na reforma da previdência de Paulo Guedes foi a esquerda brasileira. Quem impediu a aprovação do excludente de ilicitude de Sergio Moro foi a esquerda brasileira. O que talvez nos falte seja um olhar mais generoso para as pequenas experiências sociais e políticas que emergem cotidianamente no país. É esse o lugar em que germina a volta da esquerda para seu protagonismo na democracia brasileira.
Theófilo Rodrigues é cientista político.

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Comentários

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Clever Mendes de Oliveira

12/02/2020 - 19h12

Theófilo Rodrigues,
Concordo com você e avalio que Safatle deve ter feito um texto com um viés de polemista para que o texto dele tivesse bastante repercussão, mas acabou perdendo profundidade e mesmo correção na análise intentada.
E mesmo concordando, considero que o seu texto foi um pouco otimista com a atual fase da esquerda e bem ufanista. Ontem eu comentei o artigo de Safatle em um grupo na WhatsApp. Transcrevi minha mensagem no WhatsApp em comentário que enviei no blog O Cafezinho para Gilberto Maringoni junto ao post “Maringoni: Safatle e Lula juntos” de terça-feira, 11/02/2020 às 23h04, e que pode ser visto no seguinte endereço:
https://www.ocafezinho.com/2020/02/11/maringoni-safatle-e-lula-juntos/
Achei fraco o texto de Gilberto Maringoni. Ele faz parte da turma que acha fácil bater no PT, mais ainda quando se sabe que tudo pode ser resumido ao fracasso do governo da ex-presidenta às custas do golpe Dilma Rousseff.
Esses críticos quando criticam o segundo governo da ex-presidenta às custas do golpe Dilma Rousseff apenas revelam o desconhecimento (outro termo com o mesmo significado é ignorância) da realidade. E plenos de desconhecimento sentiriam ainda mais à vontade para criticar a ex-presidenta às custas do golpe Dilma Rousseff caso fossem informados que na verdade a queda do PIB em 2015 e 2016, em torno de 7%, ocorreu toda em 2015. Apenas por efeito estatístico do cálculo do PIB a queda foi apresentada como sendo em torno de 3,5% em cada ano.
Para esclarecimento pode-se dizer que se o valor da produção que é o valor do PIB for calculado como valor de produção diária e supondo que a produção é distribuída igualmente entre os dias do ano, com aumentos ou quedas de modo uniforme, a queda do PIB em 2015 medida pela diferença entre o valor total da produção em 01/01/2016 e o valor total da produção em 01/01/2015 corresponderia a queda de 7%. Por isso que quem acompanha o PIB trimestral vai verificar que em 2016 a variação do PIB trimestral quando comparado com o trimestre imediatamente anterior foi quase nada em 2016.
Assim, a cantilena de Gilberto Maringoni foi culpar o PT pela crise que a esquerda atravessa. No comentário que eu me referi acima eu lembrei que culpar o PT pela crise da esquerda hoje no Brasil revela mais um desconhecimento da realidade.
Os que não ficam presos só a realidade brasileira percebem como está eivado de desconhecimento da realidade mundial acusar o PT pelo problema atual da esquerda brasileira. Como eu disse lá em meu comentário para Gilberto Maringoni culpar o PT pelo fracasso da esquerda no Brasil “é ignorar que na Inglaterra, na Polônia, nas Filipinas, nos Estados Unidos, na Hungria não existe um PT para permitir que a direita radical assumisse o poder.”
Em meu comentário para Gilberto Maringoni eu menciono dois comentários junto ao post “O Grande Mal Estar, por Diogo Costa” no blog de Luis Nassif e de autoria de Diogo Costa e que pode ser visto no seguinte endereço:
https://jornalggn.com.br/opiniao/o-grande-mal-estar/
Tanto o post “O Grande Mal Estar, por Diogo Costa” como os vários links que eu indico em meus dois comentários auxiliam bastante a compreensão sobre a causa para o crescimento da direita mais radical e o enfraquecimento da esquerda. Aliás tenho reclamado bastante dos nossos intelectuais não levarem em conta os que dizem ou comprovam os autores dos artigos para os quais eu deixei os links.
Abraços,
Clever Mendes de Oliveira
BH, 12/02/2020

Paulo

12/02/2020 - 18h52

“A esquerda brasileira certamente está na defensiva, mas não está morta. Quem impediu a aprovação da capitalização na reforma da previdência de Paulo Guedes foi a esquerda brasileira”.

A capitalização era só um boi de piranha, naquele momento, em que o Parlamento, prestes a praticar uma atrocidade contra o povo brasileiro, precisava desesperadamente demonstrar que houve “debate” e “alterações na proposta original”. Só caiu porque o “grande estadista” Botafogo assim o determinou. Se não quisesse tirar, passava tranquilamente. O Congresso vendeu a Reforma em troca das emendas parlamentares, e teria vendido ainda com a manutenção da capitalização. Uma corrupção disfarçada, da parte dos congressistas; e uma concessão à política, da parte dos líderes e idealizadores da Reforma, nada mais…

Lúcio

12/02/2020 - 15h17

É difícil sequer comentar o artigo quando o autor não explicita o que ele entende por “esquerda” e quais as atribuições desse campo. Num país como o Brasil, sequer manter os hospitais públicos abertos já é uma conquista social. O problema é que gente como o Safatle não se contenta com um estado de bem-estar social que atenda igualmente bem ao rico e ao pobre, estilo Dinamarca. Ele quer um estado à cubana, dominado pela sua casta, tendo o resto da população como escravos. Nisso, a esquerda sempre foi e vai ser derrotada, sem que as classes dominantes sequer precisem se mexer muito. O próprio povo brasileiro, que engole uma quantidade absurda de sapos, sabe traçar a linha do inaceitável. O Safatle lamenta que o PT não tenha sequer tentado transformar isso aqui numa Venezuela, mas teria apenas sido derrotado mais cedo se tentasse.

    Flávio Lima

    15/02/2020 - 16h10

    Concordo Plenamente. É lamentável ver esquerdistas e alguns partidos se inspirarem em Cuba e China como modelos a ser seguidos, sendo q estes países são governados por comunistas autoritários e repressores ao invés de ter os países nórdicos, Canadá, Nova Zelândia e Alemanha q são democracias como um exemplo a serem seguidos. Eu sou de Centro-Esquerda, porém anticomunista e estou decepcionado de ver partidos de esquerda tendo “convenio, amizades e parcerias” com O Partido Comunista Chinês

Charuteiro Bahiano

12/02/2020 - 12h48

Tente não chorar !!

https://www.facebook.com/MAvancaBrasil/videos/473031566726983/

caio

12/02/2020 - 12h45

O texto do Safatle não foca tal derrota na representatividade parlamentar e sim na prática da esquerda para defender “o que é de esquerda”. Nos estados governados pela “esquerda” e com muitos deputados de PT, PDT, PSB e PCdoB temos visto a mesma implementação de políticas anti-povo e vende pátria em aliança com as oligarquias, esta “representatividade” é apenas simbólica, pois em prática estes partidos servem a mesma classe dominante a qual serve o governo bolsonaro, e no fim é isto que importa.

    Clever Mendes de Oliveira

    12/02/2020 - 18h14

    Caio (quarta-feira, 12/02/2020 às 12h45),
    A grande falha da esquerda tem sido se dimensionar maior do que ela é. Com o voto de dois senadores, a ex-presidenta às custas do golpe Dilma Rousseff teve menos de 25% dos votos no Senado contra o impeachment. Ou seja, retirado os votos de Katia Abreu e Armando Monteiro, a esquerda tinha menos de 20% dos votos.
    Se a esquerda for capaz de introjetar essa realidade, ela só não precisa ser tanto otimista e mesmo ufanista como o Theófilo Rodrigues, mas pode supor que mesmo em minoria tem sido muito competente na missão de civilização que ela cumpre.
    Abraços,
    Clever Mendes de Oliveira
    BH, 12/02/2019

Paulo Silveira

12/02/2020 - 11h39

Endosso quase todas as posições, um único adendo, Chantal é uma grande intelectual, não vive de ser propagandista das ideias do ex-companheiro.

Félix Beserra

12/02/2020 - 11h17

A esquerda não morreu, mas precisa assumir seus erros, se reinventar, combater a corrupção dentro de seus partidos, mudar algumas de suas ideologias políticas, econômicas e religiosas e reunir os menos favorecidos e as instituições sociais em torno de suas ideias e ações.

    Evandro Garcia

    12/02/2020 - 11h38

    Se precisa fazer isso tudo é porque morreu mesmo.

    Alan C

    12/02/2020 - 11h54

    Assumir os erros é pro PT, não pra esquerda.

Raja Natureza

12/02/2020 - 10h28

A esquerda brasileira ainda não morreu, mas está debatendo com Lula como vai ser o velório.

Alan C

12/02/2020 - 10h24

Li o texto do Safatle e achei bem fraco, cheio de paixão tola, superficial pra um jornalista experiente.
É mais ou menos como o seu time perder e vc quebrar a TV e dizer que o time acabou. Na rodada seguinte o time ganha, vc chora de alegria e compra uma TV nova.

Qual esquerda que ele se refere? Aquela que aumentou a representatividade na câmara e senado nas últimas eleições? Aquela que aumentou a quantidade de prefeitos e governadores no país?

Safatle precisa sair da bolha…

    caio

    12/02/2020 - 12h38

    A que não impediu a reforma da previdência. e que mesmo tendo tanto parlamentares eleitos como vc frisa, como se isto significasse algo em termos práticos, tem aplicado políticas direitistas a exemplo de Rui Costa e dos deputados do pt, pdt, pcdob e psb no Estado da Bahia em aliança com a direita tradicional.

      Samanta

      12/02/2020 - 13h02

      Rui Costa é bem avaliado pelos bahianos, é a unica coisa que interessa.

      Alan C

      12/02/2020 - 13h23

      Lógico, não é maioria, simples assim, mas que as bancadas, prefeitos e governadores cresceram, isso tb é um fato.

Arthur Fonzarelli

12/02/2020 - 10h08

“Quem impediu a aprovação da capitalização na reforma da previdência de Paulo Guedes foi a esquerda brasileira. Quem impediu a aprovação do excludente de ilicitude de Sergio Moro foi a esquerda brasileira.” Kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk

“É esse o lugar em que germina a volta da esquerda para seu protagonismo na democracia brasileira.”

Mais precisamente seria a democracia do tipo mensalão, do petrolão ou da planilha de propinas da Odebrecht…? Kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk

Abdel Romenia

12/02/2020 - 10h02

Sem mensalào, sem petrolào, sem bilhoes de propinas, vai ser dificl a vida bandida daqui pra frente…kkkkkkkkkkkkkkkk


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