Não deixa de ser irônico. Para os gurus da nova direita hoje no poder, ou “extrema direita”, a esquerda está mais viva do que nunca.
Todos os grandes jornais e revistas do Brasil são de esquerda. A maioria dos servidores públicos são de esquerda. As universidades foram inteiramente dominadas pela esquerda. A ONU é de esquerda. O presidente francês, Emmanuel Macron, e sua colega alemã, Angela Merkel, pertencem à famigerada esquerda globalista. Grandes corporações da tecnologia, como Google, Facebook, Amazon, Tesla, também são esquerdistas.
Holliwood, então, é um bastião de maconheiros radicais comunistas. O Oscar para o sul-coreano Parasita é a prova.
Para os gurus do outro lado, no entanto, a esquerda morreu. Ao menos no Brasil.
E agora?
Na verdade, não se trata de uma coisa nem outra. Nem a esquerda domina o Brasil e o mundo, tampouco ela bateu as botas.
Intitulado “Como a esquerda brasileira morreu“, um artigo do filósofo Vladmir Safatle provocou o debate que o chamado campo progressista mais gosta de fazer, desde que o mundo é mundo: especular sobre sua própria morte.
O colega da página, Theo Rodrigues, procurou refutar a tese central de Safatle com alguns exemplos históricos, citações de acadêmicos e pequenas vitórias parlamentares obtidas em 2019 (correção da reforma da previdência e retirada do excludente de ilicitude do pacote anti-crime).
Publicamos também, aqui no Cafezinho, um artigo de Gilberto Maringoni, no qual ele acusa Safatle de niilismo petista; não haveria sentido em falar em morte da esquerda, diz Maringoni, sem propor nenhum tipo de solução.
Peço licença aos três autores para discordar de todas essas teses: a esquerda não morreu, como diz Safatle; a razão de sua sobrevida, porém, não é a apresentada por Rodrigues; e, por fim, Safatle aponta sim algumas soluções, embora eu desconfie que apareçam no artigo por acaso, sem que o próprio autor as tenha percebido como tal.
O suposto falecimento da esquerda brasileira me lembra o romance A morte e a morte de Quincas Berro D’Água, de Jorge Amado. O protagonista é um cachaceiro, que teria “morrido” para a família ao abandonar a vida de homem sério e trabalhador. O livro começa, porém, com sua segunda morte, a morte real, física, quando seu cadáver é encontrado num quartinho sujo de Salvador.
No caminho para o enterro, seus amigos boêmios identificam um sorriso maroto no rosto de Quincas e levam seu corpo para curtir uma última farra. A aventura acaba em tragédia, quando todos morrem num acidente de barco, e o cadáver de Quincas desaparece, o que seria uma terceira morte.
Podemos transpor a metáfora do escritor baiano à política brasileira: assim como Quincas em relação à sua família, a nossa esquerda teria experimentado uma primeira morte, de ordem “moral”, quando se viu envolvida em escândalos de corrupção. Aqui não consideraremos os excessos midiáticos e judiciais, amplamente denunciados por este blog, mas apenas suas consequências políticas.
A segunda morte, física, real, ocorreu em 2018, na derrota para Bolsonaro. E hoje vemos os amigos boêmios da esquerda brincarem com seu cadáver por aí, numa última farra.
Esperemos que a vida não imite a arte e não haja uma terceira morte, onde todos os amigos da esquerda morram num naufrágio, e o corpo desapareça…
Aliás, é interessante refletir sobre essa curiosa transformação: até a década de 60, a esquerda era vinculada à severidade e austeridade jacobinas, e à disciplina militar e científica soviéticas. Boemia, despreocupação, libertinagem, eram associados a hábitos burgueses e aristocráticos. A partir das revoluções culturais, ou contraculturais, da década de 60, sobretudo no Ocidente industrializado, a esquerda passará a ser vinculada cada vez mais a uma postura libertária nos costumes. Olhando para esse fato à luz da história, tomo a liberdade de afirmar que isso representou a sua primeira morte, e seu nascimento como esquerda Quincas Berro D’Água.
Essa mudança não é trivial. A associação com a revolução cultural dos anos 60 torna-se um ativo simbólico importante da esquerda, mas que se transformou infelizmente numa caricatura, sobretudo porque o segundo pilar dessa revolução, e que a acompanhou, a revolução científica, não foi igualmente associado ao campo progressista. Como os grandes avanços tecnológicos do Ocidente se deram com forte investimento do Estado, e num contexto de guerra fria, onde boa parte desses recursos tinham como objetivo o financiamento da máquina de guerra, a esquerda procurou, de todas as maneiras, evitar qualquer associação com eles. A esquerda então ficou associada ao movimento hippie, mas não aos avanços da ciência da computação, da física quântica e da inteligência artificial, embora a comunidade científica por trás de todos esses movimentos sempre se tenha caracterizado como profundamente progressista e disruptiva.
No Brasil, tudo isso foi ainda mais marcante. Aqui não tivemos nenhuma revolução científica; tivemos, no entanto, uma revolução cultural profundamente associada à luta contra uma ditadura de direita.
A esquerda brasileira então também passou a ser associada aos valores da revolução cultural dos anos 60, o que desde logo se revelou uma herança dúbia do ponto-de-vista político e eleitoral. Até hoje, na cabeça de muita gente, esquerda é algo associado às canções de Chico Buarque e Caetano, e a festinhas enfumaçadas em centro acadêmicos.
É possível imaginar um empreendedor norte-americano nas áreas da ciência de informação, tecnologia aero-espacial, inteligência artificial, e que teve uma origem familiar modesta, olhando a si mesmo como alguém de esquerda. O mesmo vale para o empresário de produtos orgânicos da Califórnia ou da Suécia, com faturamentos anuais crescendo 20% ou 30% ao ano. É difícil, no entanto, conceber que o dono de uma indústria de biscoitos, ou de embalagens plásticas, no interior de São Paulo, ou o proprietário de uma grande fazenda de soja, sejam pessoas identificadas com as causas progressistas.
Nos EUA, justamente por constituir o maior império tecnológico e cultural da história, com oferta crescente de empregos e oportunidades nos quais se exige, ao invés de disciplina e subserviência, virtudes criativas, disruptivas e libertárias, há um espaço muito maior para que a esquerda (associada desde os anos 60 a essas virtudes) amplie sua participação no mundo do trabalho, da política e da economia. Entretanto, mesmo lá, essa associação também tem seu preço. A maioria da classe trabalhadora americana não trabalha em Holliwood, nem no Google, nem em centros de pesquisa em cibernética de Massachusetts. Em sua maioria, são pessoas que precisam acordar muito cedo, exercer trabalhos duros que exigem quase nenhuma criatividade, e manter, à custa de uma disciplina inimaginável para um intelectual de Nova York, um nível de poupança suficiente para pagar a saúde e a educação futura de seus filhos.
Se a esquerda americana enfrenta tantos desafios mesmo contando com essas vantagens estratégicas, a situação no Brasil é muito mais grave.
Aqui não temos Holliwood. Aqui a alta cultura, a pesquisa e as universidades são direta e completamente dependentes do Estado, e isso também não ajuda a esquerda.
Quando o conservadorismo consegue se vincular aos valores de disciplina, ordem, limpeza, ética, é evidente que ele se torna o ideal popular, porque são essas as virtudes mais fundamentais para as classes trabalhadoras.
Neste aspecto, até a semântica ajuda a direita; de um lado temos o que é “direito”, “right”, ou seja, correto, ordeiro, ético; de outro lado, temos a esquerda, que representa o que mesmo? O sonho, a aventura, o risco, a imaginação?
Não é de se admirar que a ideologia de esquerda tenha se tornado quase uma característica geracional dos jovens, algo como uma ingenuidade que vamos perdendo conforme amadurecemos. Tudo isso se reflete, a propósito, nas pesquisas de aprovação ao governo Bolsonaro, nas quais o apoio dos mais velhos permanece elevado e estável.
Se é assim nos EUA, onde há uma imensa classe média progressista, culta, disruptiva, ansiosa por novas revoluções tecnológicas, para as quais não apenas se sente preparada, como acredita que representarão oportunidades de empregos ou empreendimentos de alto nível, o que será do Brasil, onde não temos nenhuma classe média desse tipo?
Em virtude da altíssima instabilidade econômica e política do país, do atraso tecnológico, do subdesenvolvimento, as nossas classes mais instruídas, que representam um percentual pequeno da sociedade, acabam valorizando a estabilidade no emprego e a segurança econômica, mais do que a invenção e o conhecimento. E assim nasce a obsessão de nossos melhores cérebros por uma vaga no serviço público, independente de sua vocação pessoal.
Voltemos ao debate sobre a morte da esquerda brasileira. Na verdade, a acepção é absurda. Esquerda e direita, se entendidos de maneira mais profunda, mais filosófica, são aspectos ontológicos fundamentais do pensamento humano. São dois lados da mesma moeda.
Não existe direita sem esquerda, e vice versa. Não é a tôa que o bolsonarismo precisa, diariamente, alimentar a lenda de uma esquerda superpoderosa infiltrando-se por toda a parte, nas famílias, nas escolas, nas universidades, nos governos, no mundo inteiro.
A esquerda brasileira, por sua vez, também precisa da direita para alimentar sua ação política; daí sua irritação e suspeição contra o “centro”, que é um espaço onde ela receia perder a razão de sua própria existência.
Independente dos excessos, paranoias e narrativas de cada um, esquerda e direita continuarão a existir, eternamente, enquanto a humanidade for governada pela política, por causa dessa tendência profunda da nossa inteligência, talvez da própria biologia, talvez da própria matéria, em dividir-se em dois. Hoje se sabe que a toda partícula corresponde uma antipartícula: há o próton, e há o antipróton, o elétron, e o antielétron, o quark e o antiquark, a matéria e a antimatéria.
A polarização elétrica das partículas, por sua vez, com cargas positiva e negativa, é um fato provado da física.
Todos os nossos conceitos são baseados em dicotomias. Carl Schmitt explicou, em seu clássico O Conceito do Político, que a inteligência humana entende o domínio estético como uma dicotomia entre belo e feio, e o domínio moral como entre bom e mau; o político seria, portanto, uma dicotomia entre amigo e inimigo.
Uma teoria de esquerda ou de direita ainda está por ser escrita, mas está claro que ambos os conceitos são fluidos, modificando-se conforme a época, a geografia, e a subjetividade de quem os formula.
Norberto Bobbio costuma relacionar a esquerda a uma preocupação com a desigualdade e a injustiça social; pensadores como Hayek, entre outros, associam a direita à liberdade individual. Pensados assim, são conceitos complementares.
Ao explicar a crise mortal da esquerda brasileira, Safatle incorre, no entanto, numa explicação duplamente vulgar: de um lado, denuncia a decisão dos governos de esquerda, desde João Goulart, de pactuarem com setores da burguesia nacional (“mistura de Friboi com MST”, diz ele); de outro compara nossa inação ao suposto sucesso da esquerda francesa, que há meses se mobiliza contra uma reforma da previdência proposta pelo governo.
Ora, nem o primeiro exemplo é modelo de fracasso, nem o segundo, de sucesso. A esquerda brasileira, se vista desde suas primeiras vitórias, com Vargas em 1930 (não é correta a associação entre esquerda e democracia; a esquerda também pode ser autoritária e antidemocrática; o mesmo vale para a direita), conseguiu desenvolver fórmulas políticas muito bem sucedidas no campo do desenvolvimento econômico. O diálogo com setores econômicos é evidentemente fundamental. Não foi esse o erro de João Goulart, nem de Lula. O erro do PT não foi ter criado espaços de diálogo com grandes empresas. Aliás, foi o contrário. O PT não soube proteger as grandes empresas nacionais. O monstro burocrático que destruiu tantas grandes empresas, muitas delas estratégicas, foi cultivado pelo PT, com suas nomeações desastrosas para tribunais superiores e para o PGR, e as leis anticorrupção mal formuladas; esses erros deram origem a todo o tipo de abuso judicial, incluindo aí abusos da Justiça americana contra empresas brasileiras.
Quanto aos erros de Goulart, não foram os apontados por Safatle, citando Marighella. O erro da esquerda dos anos 60 foi não ter ouvido as ponderações de um jovem intelectual chamado Wanderley Guilherme dos Santos, que já havia previsto o golpe num livreto de 1962. Leonel Brizola, em entrevista ao Canal Livre, em 1980, faz a autocrítica definitiva da esquerda brasileira da época: não levou em consideração a necessidade de ganhar a confiança da classe média, não tomou os devidos cuidados com os avanços do imperialismo, e se deixou associar, imprudentemente, mesmo que apenas de maneira simbólica, a alguns setores extremistas da pequena burguesia.
Quanto à esquerda francesa de hoje, não é nenhum exemplo de sucesso. A França é o país onde a extrema direita avança mais rapidamente, e onde há uma esquerda muito envelhecida, que tem enormes dificuldades de formulação e inovação, preferindo se refugiar no papel confortável de ser apenas uma força de resistência conservadora à qualquer reforma.
Essa resistência é um papel importante, fundamental mesmo, mas é uma força conservadora. Seu objetivo é conservar as coisas como estão hoje, porque se entende que isso é melhor do que mudanças para pior.
É o mesmo papel que a esquerda exerce no Brasil, com menos barulho. Entretanto, a direita facilmente põe isso na “conta”. Basta fazer como fez o governo Bolsonaro: envia uma proposta muito reacionária ao congresso, justamente para que a esquerda se oponha, horrorizada, e acabe cedendo a uma versão melhorada da mesma proposta. E assim todos podem alegar “vitória”: a direita, porque aprovou uma reforma da previdência; a esquerda, porque teria trabalhado para reduzir os danos.
Essa “prova de vida” da esquerda, apresentada por Rodrigues, portanto, não me convence.
A função ativa, com isso, é exercida pela direita, porque a esquerda perdeu a capacidade criativa de formular um novo Direito do Trabalho e um novo Direito Previdenciário.
No Brasil, o que vemos? Uma esquerda formada principalmente por servidores públicos, herdeiros e youtubers milionários fazendo proselitismo diário contra tudo e contra todos, mas com pouca energia e disposição para organizar um debate científico sobre as novas relações de trabalho que as tecnologias vem impondo ao mundo.
Safatle aponta as contradições da esquerda, cujos governadores vem aprovando draconianas reformas da previdência em seus estados, enquanto seus partidos vociferam contra a reforma aprovada no congresso, inclusive expulsando parlamentares que decidiram votar em favor dela.
O exemplo de Safatle é emblemático. Esse debate sobre previdência vem engolindo a esquerda desde muitos anos, e sempre a dividindo: de um lado, temos a esquerda parlamentar, grande parte da qual tem como principal base política sindicatos de servidores públicos; de outro, temos a esquerda no governo, que precisa abrir espaço fiscal para fechar suas contas e realizar um mínimo de investimento.
Quando está no governo, a esquerda usa todo o seu capital político para convencer sua militância de que a reforma é necessária; quando está na oposição, faz o contrário; sendo que, na última condição, há sempre a situação esquizofrênica, como apontou Safatle, de ser oposição ao governo federal, mas ser governo em alguns estados.
Este é o ponto mais delicado no debate, porque a esquerda fez uma campanha contra a reforma da previdência sem nenhum esforço para agregar inteligência e informação, de maneira que o debate ganhou uma conotação puramente moral, de luta do bem contra o mal. Isso obviamente deixou os governadores em situação delicada, forçando-os a fazer suas próprias reformas de maneira quase clandestina, lastreados apenas nesse apoio puramente partidário e fisiológico de sua própria militância.
Haverá um momento em que a esquerda precisará abandonar essa postura dúbia: o mundo do trabalho está completamente transformado. É preciso enfrentar corporativismos e fazer reformas constantes da previdência. Não há tanto mistério, basta se olhar os modelos mais bem sucedidos no mundo e copiar. Para isso, no entanto, é preciso fazer um debate esclarecido, baseado em informações, e não em slogans de guerra.
A propósito, as decisões do PDT e PSB de “fecharem questão” no caso da reforma da previdência foram completamente contrárias ao discurso de “oposição propositiva”. Se um partido fecha questão, ele neutraliza a capacidade de seu parlamentar de levar adiante qualquer tipo de negociação visando a melhora de um projeto. Deve-se fechar questão apenas em casos realmente dramáticos, como uma votação sobre entrada do país numa guerra. A consequência desse erro foi traumática para os dois partidos.
As soluções propostas pela esquerda são sempre velhas, tradicionais, frequentemente impraticáveis, tipo “imposto sobre grandes fortunas”. Alguns agentes políticos parecem não mais se importar muito com a viabilidade política do que propõem.
A implementação de impostos sobre grandes fortunas não foi feita num governo de esquerda, por falta de condições políticas, então obviamente não será realizada numa administração tão radicalmente conservadora como a de Bolsonaro.
(Na verdade, em se tratando de justiça fiscal, a melhor solução é aplicação de impostos sobre grandes heranças, e não fortunas, porque as heranças são muito mais difíceis de serem escamoteadas; impostos sobre movimentação financeira acima de determinado valor também são bem mais práticos).
Entretanto, há uma série de avanços tributários que podem ser aplicados no Brasil: uso de ferramentas tecnológicas que permitam uma redução drástica da evasão fiscal no país; incentivos tributários ao emprego formal; simplificação máxima da tributação; maior rigor contra grandes sonegadores e mais tolerância com os pequenos.
Há uma série de iniciativas que poderiam ser conduzidas sem grandes obstáculos políticos.
A questão tributária obviamente é central para o desenvolvimento nacional, e por isso mesmo seria importante que os agentes políticos do campo progressista estivessem envolvidos num debate sério sobre o tema, discutindo soluções que pudessem ser encaminhadas e aprovadas pelo congresso nacional.
Naturalmente, temos um outro problema de ordem política (e um pouco de ordem eleitoral também): os deputados de esquerda não querem ser vistos apoiando qualquer medida que possa beneficiar o governo. Periodicamente, os lacradores de redes sociais divulgam estatísticas que mostram o percentual de apoio de cada parlamentar ou partido a projetos encaminhados pelo Executivo, de maneira que se cria uma pontuação “ideológica”, onde aqueles que jamais votaram em favor de qualquer projeto do governo serão os campeões da esquerda.
Para os partidos e parlamentares, contudo, que levarem a sério o conceito de fazer uma oposição propositiva, por mais doloroso e impopular (dentro de algumas bolhas) que isso seja diante de um governo liderado por um presidente com o caráter de Jair Bolsonaro, será preciso fazer política da maneira mais madura e pragmática possível. Há uma brecha importante na atual conjuntura, que é a disposição do legislativo de manter uma postura de autonomia e independência em relação ao Executivo, além da disposição do próprio Executivo, apesar das terríveis características de alguns de seus membros, de respeitar a independência do parlamento, e de estimular a desconcentração de poder e recursos em favor de estados e municípios.
Ao mencionar uma das razões da morte da esquerda brasileira, Safatle na verdade dá a linha para que ela possa renascer. É uma coisa que eu já publiquei por aqui e gostaria de acreditar que ele pescou a ideia no Cafezinho: Safatle lembra que a esquerda governa muitas cidades e estados, e que, em 2019, esperou-se que, dessas administrações, emergissem modelos de governança e projetos de desenvolvimento que pudessem ser usados politicamente por todo o campo progressista.
Pois é, Safatle. É exatamente isso. Onde estão esses projetos? Sabemos que o governo do Maranhão vem fazendo muita coisa interessante. Cadê a “união da esquerda” que não ajuda Flavio Dino a mostrar o que tem feito?
Entretanto, comunicação requer também iluminar os problemas, os vícios, os erros, para ajudar os governos a corrigirem-nos. Se a esquerda confundir comunicação com propaganda, cometerá outro grave erro.
Onde está o Consórcio do Nordeste? O que ele faz, do que se alimenta? Onde estão todos os milhares de prefeitos, vereadores e deputados de esquerda? Como falar em “união da esquerda” se não se discute nenhum projeto que possa ser efetivamente implementado ou defendido de maneira coletiva por essas administrações e parlamentares?
Sobre o artigo de Theo, me parece evidente que a esquerda não vai renascer através de narrativas acadêmicas complicadas. O povo não está interessado se a esquerda adotará o discurso deste ou daquele intelectual francês. O povo quer ação. E para haver ação, é preciso projeto. Onde está o projeto de desenvolvimento, onde está a teoria econômica, onde estão as iniciativas reais nas prefeituras e estados?
O debate sobre nomes (Ciro? Lula? Dino? Haddad?) apenas serve para atiçar divisões, fragilizando todo o campo progressista. O debate precisa se dar em torno de projetos, e para isso é preciso investir em inteligência: os partidos progressistas, ao invés de papo furado sobre “união de esquerda” podiam criar um fundo para financiar pesquisas, seminários, livros e vídeos, sempre focados na discussão de um projeto nacional. Fala-se na necessidade de se reindustrializar o país. Como fazer isso? Fala-se nos problemas de comunicação? Como melhorar o sistema nacional de comunicação sem que isso implique em acusações de “chavismo” que apenas paralisam o debate? Qual a melhor reforma política, que dê mais segurança à nossa democracia, e que igualmente evite qualquer acusação de autoritarismo? Como melhorar o nosso sistema de justiça, evitando crises como a que vivemos nos últimos anos?
Tudo isso exigirá, naturalmente, uma severa autocrítica de todos os erros cometidos nos últimos governos progressistas. Me parece, contudo, a única saída viável para reestabelecermos um núcleo duro político, capaz de, aos poucos (ou rapidamente, quem sabe), reconquistar o prestígio social que um dia teve, e voltar a ganhar eleições.