Em um episódio recente da série animada Rick e Morty, Rick, um cientista que é considerado o ser mais inteligente do universo, viaja por diferentes realidades paralelas e encontra outras versões de si mesmo, muitas das quais são nazistas ou vivem em um mundo no qual o nazismo impera. Em uma dessas realidades — na qual as pessoas têm “corpos de camarão”, em tamanho humano — Rick é perseguido pela polícia nazista dos camarões e, antes de ser espancado, reclama: “Porra, quando essa merda virou o padrão?”. Em outro episódio, Rick, ao encontrar um planeta povoado por cobras no qual está acontecendo uma guerra global por questões de raça, comenta, rindo:
— Quão engraçado é isto? Imagine ser uma cobra racista! “Ei, outra cobra, eu te odeio porque você é uma cobra da cor errada”. Meu Deus!
O discurso antinazista e antirracista proferido por uma série estadunidense de estrondoso sucesso é um evidente efeito da ascensão mundial de um pensamento que se aproxima perigosamente de ideias nazistas, racistas e fascistas — quando não as emula de forma desavergonhada. É inevitável, bem-vinda e urgente a reação dos que percebem a insanidade na qual parte da humanidade ensaia embarcar de novo.
South Park, outro desenho animado dos EUA, tão genial quanto Rick e Morty, foi ainda mais longe. Em um episódio da temporada de 2018, a Amazon abre uma filial na cidade em que se desenrola a série e, muito embora os consumidores fiquem felizes com a rapidez com que os produtos encomendados agora chegam em suas casas, os negócios locais quebram e os funcionários da Amazon são explorados pela megacorporação, trabalhando em condições desumanas. Um dos empregados é atropelado por um robô e a empresa afirma que foi “falha humana”, o que desencadeia a revolta dos trabalhadores, que fazem uma greve e causam uma convulsão na cidade. O trabalhador mutilado pelo robô — e empacotado em uma caixa da Amazon a qual não pode ser aberta, sob pena de seus órgãos “vazarem”, em um clássico nonsense southparkiano — torna-se o líder dos grevistas e faz discursos marxistas, falando em tomar os meios de produção e tudo mais.
Um crítico que conhece bem a série ficou impressionado com a virada esquerdista dos criadores de South Park, os quais adotavam posturas pró-capitalistas em temporadas anteriores. Para o referido crítico, a mudança se deve ao fato de que os efeitos maléficos do capitalismo estão evidentes nos dias de hoje: “Agora, qualquer um que preste atenção está bem consciente do que está acontecendo, e o quão totalmente sem limites o capitalismo se tornou” (tradução livre; leia aqui o artigo, em inglês).
A possibilidade real de que Bernie Sanders, um socialista declarado, concorra à presidência dos EUA certamente não estaria desconectada de um movimento mais profundo na sociedade norte-americana. Imagine a pane mental nos liberais brasileiros, tão servis ao propalado paraíso capitalista, caso Sanders vença Trump nas eleições.
Se a direita radicalizou de um lado, escancarando sua face violenta bem conhecida, a reação newtoniana só poderia ser uma radicalização em sentido oposto.
No Brasil, cairia bem uma radicalização, não só do discurso mas principalmente da prática, dos grupos políticos à esquerda. Uma radicalização em sentido amplo, abarcando desde a linha econômica até a mecânica interna de cada organização, que deve ser a mais democrática e transparente possível. Entretanto e ao mesmo tempo, é sábio que construam-se pontes com setores não tradicionalmente alinhados ao campo canhoto. Achar este equilíbrio não é uma arte simples, mas não me parece haver outro caminho.
Do contrário, corremos o risco de assistir novamente à ascensão das cobras nazistas, como em um episódio de série de ficção científica. Sem a parte engraçada.