Há um diálogo no filme Meia Noite em Paris, do Woody Allen, que para mim revela como se pode usar a arte para dar um pouco de leveza à polarização política.
O protagonista, um jovem escritor de temperamento liberal, eleitor democrata, após um início de discussão com o pai de sua namorada, um empresário republicano e conservador, tenta distensionar a atmosfera fazendo uma observação que nunca me saiu da cabeça:
“Ora, não vamos brigar só por causa de uma pequena diferença sobre o que devemos fazer com nossos impostos”.
Num regime democrático, cuja arquitetura institucional não está mais em discussão, e onde os valores básicos estão consolidados, onde está, de fato, a polarização?
Nos impostos!
Uma parte da sociedade acha que os impostos devem ser aplicados em programas sociais de combate à pobreza. Outra prefere aplicá-los em segurança pública. Tem aqueles que gostariam de dar prioridade absoluta à educação. E ainda os que tem planos grandiosos para o uso do dinheiro público como catalisador de um projeto nacional de desenvolvimento.
Isso na parte das despesas. Na parte da receita, da arrecadação, as divergências também são muitas. De onde arrecadar mais para financiar o Estado? De quem? Como?
Como uma das grandes reformas a serem discutidas este ano no Congresso Nacional será a tributária, é importante discutir o tema seriamente.
Eu queria falar de uma revolução tributária que está ocorrendo na… Rússia. Lendo um artigo de Branko Milanovic sobre os novos desafios do governo russo, publicado hoje numa revista europeia, encontro uma citação a uma reportagem do Financial Times, de julho do ano passado, intitulada “O papel da Rússia na criação do fiscal de impostos do futuro”.
O texto fala de uma revolução tecnológica no controle fiscal, conduzida pelo então diretor do serviço tributário do país, Mikhail Mishustin, e que lhe granjeou tanto sucesso que Putin decidiu transformá-lo em seu sucessor. E assim o fez: hoje Mishutin é o primeiro ministro da Rússia.
A revolução é a seguinte: o governo conectou as máquinas registradoras de todas as lojas do país a um computador central na Receita federal, de maneira a ser comunicado, instantaneamente, sobre qualquer venda de produto ou serviço. O programa é gerido por inteligência artificial, que compara as informações recebidas aos impostos efetivamente pagos por cada um. A evasão fiscal no comércio russo, que era superior a 20% (contra uma média de 9% em países como Inglaterra), caiu para 1%!
O governo também ofereceu um sistema de controle aos pequenos comerciantes informais. Através de um aplicativo de celular, que se pode baixar gratuitamente na internet, eles comunicam cada venda feita ou serviço prestado, descontando automaticamente um imposto de 4% em suas contas bancárias. “As pessoas gostam de agir dentro da lei”, explicou Mishutin.
Aplicativos como Uber, Ifood, etc, negociaram com o governo para que os pagamentos feitos através de seus sistemas tenham impostos também descontados automaticamente. O objetivo, segundo Mishutin, é criar um sistema de arrecadação muito simplificado, onde a Receita não precise aporrinhar o cidadão ou empresa mais tarde.
A arrecadação desse tipo de imposto, conhecido internacionalmente pela sigla VAT (value-added tax), cresceu 64% entre 2014 e 2018 na Rússia, contra um crescimento nominal de 21% no consumo no mesmo período.
O sistema permite ao governo russo, através do sistema de inteligência artificial, fazer um cálculo de inflação quase perfeito, além de inúmeras outras estatísticas úteis à implementação de políticas públicas.
Aqui no Brasil, tínhamos um sistema parecido, não no comércio, mas na produção de bebidas, o Sicobe, gerido pela Casa da Moeda, que foi descontinuado ao final de 2016, após uma dessas operações espalhafatosas da Polícia Federal.
Segundo a última estimativa do Sindicato Nacional dos Procuradores da Fazenda Nacional (Sinprofaz), o Brasil possui taxa média de evasão de quase 30% dos principais impostos (e 9% do PIB!), uma das maiores entre países com o mesmo nível de desenvolvimento.
Se o governo implementasse sistemas tributários mais eficientes, com uso de nanotecnologia, inteligência artificial, aplicativos e blockchain, poderia reduzir drasticamente a evasão fiscal, abrindo espaço para queda na dívida pública e aumento dos investimentos em educação, saúde e pesquisa científica.
Impostos sobre consumo são considerados pouco progressivos, porque pobres e ricos pagam a mesma taxa sobre um produto ou serviço qualquer. Mas eles são, de longe, os tributos mais fáceis de serem cobrados e o mais generosos, em termos de divisas, para o Estado.
A solução não é aboli-los, e sim compensá-los com políticas públicas.
Por serem horizontais, ou seja, por não diferenciarem a renda de quem os paga, sua implementação é politicamente mais fluida. Em outros termos, o problema da polarização política, tão dramático no Brasil, não seria tão grande neste caso.
Associados a um tipo de imposto de renda negativo para a população mais pobre, quer dizer, um imposto em que a pessoa recebe dinheiro ao invés de pagar, os tributos sobre consumo (VATs), se geridos por um sistema de controle moderno, com uso de inteligência artificial, como se faz na Rússia, podem ser uma boa saída para o problema de subfinanciamento do Estado brasileiro.