O governador Flavio Dino, do PCdoB, concedeu duas entrevistas importantes nos últimos dias. A primeira, para o Estadão; em seguida, para a Folha.
Em ambas, Dino defende a mesma coisa: que a esquerda saia de sua bolha e comece a costurar, desde já, uma “frente ampla”, incluindo liberais e setores do centro descontentes com o governo Bolsonaro.
A iniciativa é correta. Eu diria até óbvia.
Entretanto, Dino vem enfrentando resistências e críticas de duas áreas influentes do campo progressista.
De um lado, temos a esquerda pura, a esquerda parlamentar, que vive do voto proporcional. Essa esquerda tem pouco espaço político para defender qualquer tipo de aproximação com o centro, até porque ela construiu para si uma narrativa inteiramente vinculada à polarização ideológica. Ela precisa, a todo momento, provar que é esquerda, que é muito esquerda, que é a única esquerda 100% full power.
Além disso, é uma esquerda hegemonizada pela força econômica e política dos gabinetes. Tem pouca força de mobilização, quase nenhuma entrada na periferia, de maneira que depende excessivamente do eleitor radical da classe média, cuja presença hiperativa nas redes sociais torna-o um ativo estratégico, tanto nas campanhas eleitorais, como fora delas, nas batalhas diárias pela opinião pública.
De outro lado, temos a esquerda hipócrita, que passou um quarto de século fazendo todo o tipo de alianças com setores liberais e conservadores, que voltou a fazer alianças assim em 2018, e que já está articulando as mesmas alianças para as eleições municipais em 2020, mas que, mesmo assim, não admite que ninguém, a não ser ela, trilhe um caminho independente.
Essa é uma esquerda bastante problemática, porque precisa usar todo o tipo de violência simbólica para desviar o foco de sua hipocrisia. Como no mundo sombrio do livro de Orwell, 1984, essa esquerda desenvolveu uma espécie de duplipensar. Ela ataca, cancela, debocha, ridiculariza, qualquer outra esquerda que procure desenvolver um diálogo com setores liberais ou de centro, ao mesmo tempo que bate palmas quando a iniciativa parte de suas próprias lideranças.
Essa postura, incentivada por dirigentes partidários, enraizou-se na militância. Tornou-se uma subcultura, uma identidade social.
Na contramão dessas duas esquerdas, Flavio Dino trilha seu caminho, encontrando-se com o apresentador Luciano Huck, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, e… Lula.
Entretanto, embora seja admirável a coragem com que arrosta essas resistências, e a inteligência com a qual tenta costurar, desde já, uma estratégia para 2022, Flavio Dino também comete alguns erros graves de estratégia.
O erro mais grave de Dino é a submissão política a Lula.
Na entrevista ao Estadão, Flavio Dino usou uma expressão que arde nos ouvidos de qualquer democrata: ele chama Lula de “nossa liderança máxima”.
(Evitarei me estender acerca dos horríveis ecos semânticos, que remetem a imagens políticas que seria muito bom afastar, sobretudo vindas de um comunista preocupado em atrair o centro).
Lula foi um ótimo presidente. Eu tenho muita admiração por ele. Defendi-o por muitos anos dos ataques injustos da mídia e da justiça, e o considero uma liderança importante. Ao usar a expressão “liderança máxima”, contudo, Flavio Dino quer dizer o quê? Que ele próprio, ou qualquer outro quadro que não seja o Lula, são lideranças menores?
Poderíamos pensar que foi um deslize verbal, mas não. Na entrevista à Folha, Dino usa expressão parecida para se referir ao ex-presidente.
Como ele espera estabelecer qualquer diálogo com forças diferentes usando esse tipo de linguagem? Nem os bolsonaristas, creio eu, chegam tão longe no culto à personalidade.
Dino explica que a tal “frente ampla” significa unir pessoas, partidos e instituições com ideias diferentes. Isso apenas fará sentido se também aglutinar forças que não simpatizam muito com Lula ou com o PT, mas que entendem a importância de superar essas divergências em nome de um projeto maior. Entretanto, quem vai se unir a uma frente ampla que já tem uma “liderança máxima”? Não me parece uma maneira democrática de se iniciar a construção de nenhuma frente.
Além do mais, apesar de seus alertas de que não podemos repetir os erros de 2018, a estratégia de Dino repete exatamente… os erros de 2018. Lula está inelegível. Está hoje condenado em dois processos, os dois em segunda instância. Apesar da conjuntura judicial ter melhorado um pouquinho, não passou disso: melhorou um pouquinho. Bem pouquinho.
A votação no STF que determinou o fim da prisão em segunda instância, e que resultou na soltura de Lula, foi vencida com apenas um voto de vantagem. Este ano, Celso de Mello, que se tornou um voto crítico à Lava Jato, termina sua participação no tribunal, e Bolsonaro poderá indicar um substituto. Aliás, não me surpreenderia se Mello, que se recupera de uma cirurgia, antecipasse sua aposentadoria, até mesmo para evitar um voto contrário à Lava Jato…
No Congresso, avançam as articulações para se modificar a lei e se permitir novamente a prisão em segunda instância.
Os juristas irão escrever artigos furibundos e distribuir listas de assinaturas, mas este é um caso onde não há consenso mesmo no campo progressista. Alguns importantes quadros políticos da esquerda, como Randolfe Rodrigues, líder da oposição no Senado, apoiam a prisão em segunda instância, embora ao mesmo tempo considerem que Lula está sendo vítima de perseguição judicial. Eles separam uma coisa de outra. Isso para não falar na população, que também apoia a prisão em segunda instância, segundo inúmeras pesquisas.
Por falar em pesquisa, Dino menciona, com ar triunfante, que algumas delas indicariam possível vitória eleitoral de Lula. É um pouco triste ver uma inteligência como a de Dino, a esta altura do campeonato, e na contramão de tudo que ele mesmo vem dizendo, olhar a conjuntura pensando apenas no processo eleitoral. Já era tempo do campo progressista ter compreendido que o objetivo não é ganhar eleições, e sim governar, e governar com estabilidade, o que significa ter um mínimo de apoio institucional. A esquerda precisa reconquistar o apoio de militares, empresários, evangélicos, procuradores, juízes. É evidente que Lula – em razão dos inúmeros processos judiciais que ainda pesam sobre si (ainda que injustos em sua maioria), além de motivos de ordem puramente política – não tem condições de obter apoio nesses setores, fundamentais para a governabilidade.
Enfim, diante desta conjuntura, não seria absurdo cogitar que, em 2022, a “liderança máxima” pode ser levada novamente à prisão. Aí Lula, a quem Dino já elegeu – sem perguntar a ninguém, já que não houve, que eu saiba, nenhuma eleição neste sentido – chefe de todo o processo, terá de escolher um outro candidato à presidência da república. Essa escolha se dará novamente a alguns dias de eleição, ou dessa vez Lula será magnânimo e permitirá que seu partido e seus aliados tenham tempo de organizar uma campanha?
Numa das entrevistas dadas naquela sinistra salinha da Polícia Federal, em Curitiba, Lula admitiu, com essas mesmas palavras, que em 2018 queria ter o “orgulho de ser eleito dentro da prisão”. Pode ser que ele, enfim, possa realizar seu sonho em 2022.
Flavio Dino tem alguma expectativa de que será o nome escolhido? Caso seja, terá de visitar Lula regularmente na cadeia, para submeter a estratégia da “frente ampla” à sua apreciação?
Será que Dino realmente acredita nas juras de amor que o militante petista faz à sua pessoa, dizendo que ele seria um ótimo candidato, etc? Não percebe que, na primeira crítica mais tímida e cuidadosa que fizer à “liderança máxima”, será imediatamente cancelado e alvo de todo o ódio do mundo?
Dino está corretíssimo em sua luta para furar a bolha, mas isso apenas será possível se o objeto centralizador da estratégia for um projeto nacional, e não um nome, ou nomes, e se os articuladores deste processo, incluindo ele mesmo, Flavio Dino, demonstrarem autonomia, independência e senso crítico. Por que razão alguém iria investir tempo e energia em qualquer articulação conduzida por Flavio Dino, se ele deixa claro que não tem autonomia nenhuma?
Dino disputou duas eleições em seu estado, em 2010 e 2014, contra Lula e contra o PT. Ele deve sua bem sucedida carreira política apenas a si mesmo e a seu partido.
Há um outro ponto que merece ser examinado: a escolha de Luciano Huck como referência constante em artigos e entrevistas com Dino ou sobre Dino.
Flavio Dino está deixando correr solto demais esses boatos sobre uma possível chapa com Huck. Isso é absolutamente ridículo. Primeiro: Huck jamais fará chapa com Dino ou com qualquer nome da esquerda. Autorizar que essa bobagem seja cogitada apenas desvia o foco de um debate sério e objetivo. É bom para Huck e péssimo para o campo progressista, que tem seus próprios candidatos e seu próprio projeto. Ou não tem projeto, e a única bandeira será “derrotar o nazismo”?
Huck é um feroz neoliberal, que votou em Bolsonaro em 2018.
Huck não tem partido, não tem base social. Não participa de nenhum debate. Não vai a nenhum lugar que não seja um ambiente absolutamente controlado.
Ele é apenas, por enquanto, um funcionário da Globo que alguns setores da elite paulista gostariam de ter como presidente.
Não faz sentido dar a Huck mais importância do que ele tem.
Ademais, um governo Huck seria muito parecido com o de Bolsonaro do ponto-de-vista econômico.
Entendam-me bem, não acho errado dialogar com Huck; mas é preciso mais cuidado nos sinais enviados.
Se o objetivo é construir uma frente ampla, incluindo liberais, faria muito mais sentido ampliar o diálogo com Rodrigo Maia, do DEM. Ao contrário de Huck, que não é ninguém, Maia é o presidente da Câmara dos Deputados, e tem dado sempre mostras, nos momentos críticos, de alguém empenhado na defesa da democracia. Muitos o chamam, meio brincando, meio à sério, de primeiro ministro, sobretudo porque, diante dos excessos autoritários do bolsonarismo, ele tem atuado, frequentemente, como uma espécie de poder moderador. O DEM tem 267 prefeituras, 2.907 vereadores, 26 deputados federais, 6 senadores, e 3 governadores. O que é mais útil, conversar com Maia e DEM, ou com… Luciano Huck? Se um Eduardo Bolsonaro levar adiante o seu projeto de criminalizar o comunismo no Brasil, Huck não moverá uma palha, não dará uma declaração em favor do PCdoB; Maia, ao contrário, defenderá o PCdoB. Então me parece que o partido precisa ter mais senso de prioridade na construção dessa “frente ampla”.
O próprio PCdoB apoiou Maia na eleição para presidente para Câmara, de maneira que a legenda tem um capital acumulado junto a Maia. Na entrevista à Folha, Dino lembra que tem secretários filiados ao DEM. O caminho lógico, portanto, é por aí, não por Luciano Huck.
Ah, claro, com o DEM não pode ter frente ampla, porque o partido está se aliando ao PDT de Ciro, o anticristo do petismo… Bem, se o PCdoB se deixar levar por esse tipo de preconceito, comprando uma briga que não é a sua e não lhe interessa, então é melhor esquecer essa ideia de frente ampla, colar no PT desde já e pronto.
Outras legendas com representação na Câmara, como o PL, embora sejam liberais do ponto-de-vista econômico, tem dado mostras de insatisfação com esse lado autoritário do governo, abrindo uma brecha para o diálogo com o campo progressista.
Por outro lado, uma frente ampla só fará sentido se a esquerda tiver alguma coisa a oferecer, ou seja, se tiver votos e apoio popular.
Enquanto não der o grito de independência, porém, o PCdoB terá muita dificuldade para se tornar um bom articulador e, por conseguinte, obter bons resultados eleitorais, tanto em 2020 quanto em 2022, pondo em risco a própria existência do partido, por causa da cláusula de barreira. É bom lembrar que as eleições municipais deste ano serão as primeiras sem coligação proporcional, de maneira que será cada um por si. Quem cair nesse conto de “união das esquerdas” ficará a ver navios em outubro. A união virá, mas apenas no segundo turno; terá de ser orgânica, e não forçada ou costurada às pressas sob algum tipo de chantagem retórica de “ameaça nazista”; e terá, por fim, de ser construída horizontalmente, sem hegemonismos ou “lideranças máximas”.